A trajetória do líder revolucionário russo, o significado histórico de sua obra e seu legado para as lutas contemporâneas e o desenvolvimento da teoria marxista são abordados, em entrevista ao Portal Grabois, pelo professor Fábio Palácio. Estudioso da obra de Lênin, Palácio é doutor em Ciências da Comunicação pela USP e professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão, além de diretor nacional e presidente estadual da Fundação Maurício Grabois.

Leia a íntegra da entrevista

FMG: Qual o maior legado de Lênin para a luta política dos trabalhadores?
Fábio Palácio:
Vladímir Ilitch Uliánov, o Lênin, é com certeza o maior líder revolucionário do século XX. Foi o comandante da Revolução Russa de 1917, primeira experiência de poder proletário da história da humanidade. Mas Lênin não foi apenas um líder político. Embora tendências à direita e à esquerda tentem reduzir sua contribuição à dimensão especificamente política, a verdade é que ela vai muito além. Lênin foi um dos principais responsáveis por fazer do marxismo uma das mais férteis correntes de pensamento da contemporaneidade. Embora seja óbvio que suas teorizações são de natureza política – o que de resto é uma característica de todo o marxismo –, Lênin abordou, sob o prisma do materialismo histórico, praticamente todos os problemas cruciais de sua época.

É verdade que muitas das questões discutidas por ele em seu tempo não são repetíveis nas condições contemporâneas — pelo menos não na forma estrita em que se impuseram naquele momento. Contudo foi ali, sob a pressão dos terríveis dilemas colocados pelos contextos pré e pós-revolucionário, que foram elaboradas, com a contribuição decisiva de Lênin, noções de fundamental importância para o desenvolvimento da teoria marxista. É útil revisitar essas questões à luz do momento atual, pois são problemas que, abordados de maneira embrionária na época de Lênin, cresceram de importância ao longo das últimas décadas, e hoje se colocam no coração dos desafios contemporâneos que emanam do processo revolucionário.

FMG: Que questões seriam estas?
Fábio Palácio:
Citaria em primeiro lugar a teoria do imperialismo, por meio da qual Lênin desenvolveu o pensamento de Marx sobre a natureza do sistema capitalista. Não que ele tenha sido o primeiro a tratar do fenômeno. Anteriormente, vários autores já haviam apontado a emergência do imperialismo. Destaco John Hobson – cuja obra Imperialismo : um estudo foi a primeira a abordar o tema de forma profunda e rigorosa – e o dirigente da social-democracia alemã Rudolf Hilferding, primeiro a analisar o imperialismo pela ótica da teoria marxista.

No entanto, como afirma outro grande pensador marxista do século XX, György Lukács, “a superioridade de Lênin consiste […] em sua articulação concreta da teoria econômica do imperialismo com todas as questões políticas do presente”. Isso quer dizer que, em seu Imperialismo, fase superior do capitalismo, Lênin não faz uma abordagem puramente econômica, mas busca apresentar, por trás dos monopólios e do capital financeiro, a dinâmica concreta das classes. É uma típica obra de economia política marxista.

Por outro lado, como afirma o historiador Tamás Krausz em seu monumental Reinventando Lênin, a teoria do imperialismo fundamenta o pensamento do líder bolchevique no que respeita à questão nacional. Segundo Krausz, “todo o seu conceito teórico-econômico e político da questão nacional foi determinado por um pensamento já examinado em relação ao imperialismo, nascido de sua identificação da subdivisão hierárquica tripartida do sistema mundial, com base na ‘lei’ do desenvolvimento desigual”.

Quando fala em “subdivisão hierárquica tripartida”, Krausz refere-se ao fato de que, em seu trabalho A revolução socialista e o direito das nações à autodeterminação, Lênin identificou três tipos de países na hierarquia das nações. Havia, primeiro, os países capitalistas avançados da Europa ocidental e os Estados Unidos. Nestes, os movimentos nacionais progressistas da burguesia há muito estavam extintos. Um segundo grupo abrangia a Europa oriental, incluindo Áustria, Bálcãs e, especialmente, a Rússia. Nesses países, foi apenas no século XX que se desenvolveram os movimentos nacionais democrático-burgueses e que se intensificou a luta nacional. Países neocoloniais como China, Turquia e Irã compunham um terceiro grupo, que abrigava nações cuja formação ainda estava em andamento. Foi com base nas diferenças históricas entre esses três grupos de países que Lênin formulou a lei do desenvolvimento desigual.

De que forma a teoria do imperialismo determina a visão de Lênin sobre a questão nacional?
Lênin desenvolve sobre a questão nacional uma visão profundamente dialética, que leva em conta aspectos contraditórios do problema. O capitalismo dá margem ao desenvolvimento de duas tendências. Por um lado, as centrípetas, integracionistas: com o capitalismo intensifica-se a derrubada de fronteiras; ampliam-se os elos econômicos, políticos, comerciais, científicos e culturais entre as nações. Por outro lado, as tendências centrífugas, que envolvem o despertar dos movimentos de libertação nacional e a luta contra todas as formas de opressão colonial. Lênin via ambas as tendências como leis do capitalismo.

Por isso ele evitava visões unilaterais sobre o problema. Criticava tanto o nacionalismo estreito quanto aquilo que chamou de “internacionalismo abstrato”. Como podemos ler nas Notas críticas sobre a questão nacional, defendia tanto “a igualdade das nações e idiomas e a proibição de quaisquer privilégios a esse respeito” quanto a “luta intransigente contra a contaminação do proletariado pelo nacionalismo burguês”.

Sabemos que, desde o famoso “Operários de todo o mundo, uni-vos!”, o internacionalismo sempre foi uma tradição do movimento operário. Lênin, absolutamente sem desconsiderar essa tradição, foi duro crítico daqueles que se aferravam ao internacionalismo puro, e não consideravam o papel revolucionário da defesa da nação. Criticou a palavra de ordem levantada por Piátakov – “Abaixo todas as fronteiras” – afirmando que aquele dirigente mergulhava na metafísica, desconsiderando as necessárias conexões e transições entre o nacional e o internacional. Ele chamou essa visão de “economicismo imperialista” e destacou que, na atual quadra histórica, o Estado nacional era indispensável.

Então a novidade da abordagem leninista, em oposição à social-democracia tradicional – incluindo Rosa Luxemburgo, entre outros revolucionários que subestimavam a questão nacional –, é que soube edificar exigências relacionadas ao fim da opressão nacional e colonial (incluindo suas formas linguística e cultural). Lênin via a opressão nacional como forma específica da dominação de classe, um tema que seria desenvolvido mais à frente por teóricos como Gramsci e, mais recentemente, Domenico Losurdo.

Foi a partir dessa visão que se desenvolveram as exigências à autodeterminação como parte do movimento político democrático. É verdade que as elaborações do movimento operário sobre o chamado direito das nações à autodeterminação, hoje um princípio das relações internacionais, já se desenvolviam desde a Primeira Internacional, que incluiu o tema em seu programa de 1865, após o levante polonês de 1863. Mas o tema ganharia nova dimensão com a abordagem leninista, a qual teria profundos impactos em diversos acontecimentos do século XX, determinando de variadas formas a luta anticolonial e influenciando eventos históricos como a Conferência de Bandung e o movimento dos não alinhados.

O fato é que, embora a luta pela liberdade nacional estivesse apenas principiando na época de Lênin, ele já previa que muitos países seriam empurrados de volta às circunstâncias do período colonial, através dos perversos mecanismos da submissão econômica. No caso da Rússia, Lênin conseguiu perceber a posição ambígua do país, que, ao passo que se achava em posição subordinada em face das potências capitalistas centrais, também era potência colonialista, ainda que as colônias estivessem integradas de variadas formas ao Estado russo. A percepção desse fenômeno permitiu a Lênin, com base numa visão equilibrada sobre relação entre integração e autonomia, propor a construção daquilo  que o pesquisador australiano Roland Boer classificou como um tipo totalmente novo de Estado, ao mesmo tempo centralizado – exigência colocada pelo enfrentamento ao imperialismo – e descentralizado, dado que guardava pleno respeito à autonomia das nacionalidades.

Como dirigente político, Lênin enfrentou múltiplos e distintos desafios nos momentos pré e pós-revolução. Que ensinamentos podem ser extraídos daquele período para a luta política atual?
Com a passagem da primeira geração do marxismo, nucleada por Marx e Engels, o movimento operário passou a ser influenciado, em boa medida, por um pensamento revisionista que tinha como marca o cultivo de uma atitude teórico-política economicista. É o período em que o teórico e líder social-democrata alemão Eduard Bernstein polariza largos contingentes de militantes e muitas organizações vinculadas à Segunda Internacional.

Em O que fazer?, referindo-se à vertente russa do bernsteinianismo, Lênin sintetiza as ideias dessa vertente afirmando corrompem a consciência socialista “aviltando o marxismo, pregando a teoria da atenuação das contradições sociais, proclamando que é absurda a ideia da revolução social e da ditadura do proletariado, reduzindo o movimento operário e a luta de classes a um tradeunionismo estreito e à luta ‘realista’ por reformas pequenas e graduais. Era exatamente o mesmo que se a democracia burguesa negasse o direito do socialismo à independência e, por consequência, o seu direito à existência; na prática, isto significava tender a converter o nascente movimento operário em apêndice dos liberais”.

Lênin percebeu que, por meio desse fenômeno, o liberalismo penetrava nas fileiras da social-democracia pregando a renúncia à luta de classes em nome da “paz social”. Ironicamente, Lênin chamava essa concepção de “paz com escravismo”. Em Os destinos históricos da doutrina de Karl Marx, ele afirma: “O liberalismo, podre por dentro, tenta reanimar-se sob a forma de oportunismo socialista”. Lênin também chamou atenção para o fato de que não era fácil enxergar esse movimento oportunista como tal, pois nenhum de seus membros tomava a iniciativa de romper abertamente com o marxismo.

O revisionismo de Bernstein tinha como essência uma espécie de determinismo economicista. Negava a luta política da classe operária, a luta pela conquista do poder proletário, para concentrar-se exclusivamente nas lutas econômicas e salariais. Em nome da “espontaneidade” do movimento, rebaixava a consciência operária às formas de luta meramente sindicais. Postulava o triunfo da social-democracia unicamente pela via parlamentar. Desacreditava da luta de classes e da revolução socialista. Não concebia o caráter em última instância contraditório entre liberalismo e marxismo.

O mais curioso é que formas economicistas de consciência assediavam também a parcela mais consequente do movimento operário, representada por nomes como Rosa Luxemburgo, Liebknecht e Karl Kausty. Mesmo essa vertente, baseada numa leitura reducionista da obra de Marx, ainda subestimava o papel do elemento subjetivo para o alcance do objetivo transformador. Pensavam que a revolução seria decorrência unicamente do agravamento das contradições objetivas do capitalismo. Como afirma Tamás Krausz referindo-se a Rosa Luxemburgo, “a ação efetiva da teoria e da organização revolucionárias é […] em última instância, trazida à tona pelo automatismo espontâneo do desenvolvimento capitalista, e o ato de tomada de consciência entra em cena como um deus ex machina para transformar as necessidades econômicas latentes […] em liberdade de ação consciente”.

Ou seja: mesmo os setores mais consequentes da II Internacional apostavam suas fichas no amadurecimento das condições objetivas como fator suficiente para o alcance do socialismo. Com base nessa concepção, limitavam-se à propaganda do objetivo final. Não se preocupavam em determinar o caminho concreto para o alcance do objetivo. A crise e o colapso do sistema capitalista se encarregariam de tudo por si sós. Ou seja: concebia-se de forma mecânica a passagem do capitalismo ao socialismo. O socialismo, nessa perspectiva, era um produto do desenvolvimento objetivo das forças produtivas. Ora, isso é verdadeiro, mas não é toda a verdade.

Lênin lutará arduamente contra essa tendência. Na visão do líder bolchevique, o proletariado não deve esperar o momento revolucionário emergir das crises do sistema capitalista. Ele deve ser ativo em fomentar as contradições e conduzir  o rumo dos acontecimentos. Mesmo uma crise de grandes proporções não necessariamente leva ao socialismo, pelo contrário: como bem hoje o sabemos, pode facilmente conduzir aos horrores do fascismo.

Ciente dos limites da “espontaneidade revolucionária”, Lênin vai destacar como solução o incremento do papel da organização revolucionária como fator decisivo para a luta transformadora. Segundo sua análise, a classe operária estava sujeita à sociedade burguesa não só econômica e politicamente, mas também no plano da consciência. As ideias preconcebidas associadas à ordem dominante penetravam – como, aliás, já o haviam indicado Marx e Engels – de forma profunda na consciência operária. Por isso o líder bolchevique via na luta de ideias um aspecto essencial da luta política de classes. As ideias, contudo, não brotam espontaneamente — sobretudo no seio da classe trabalhadora, sujeita às poderosas pressões impostas pela força do ideário burguês.

A fim de construir anteparos a essas pressões, o proletariado deve desenvolver sua própria ideologia. Ela não se constrói do nada: tem como fundamento, de um lado, a experiência social e política vivida, e de outro a herança cultural que precisa ser apropriada de maneira crítica. A partir dessas formulações, Lênin conclui que “não pode haver movimento revolucionário sem filosofia revolucionária”. Essa constatação deveria se traduzir em esforços diários de propaganda que embasassem a revolução, considerando, é claro, condições locais e nacionais. Esses esforços só poderiam ser conduzidos por uma organização de vanguarda. Não à toa Lênin, em O que fazer?, afirma: “Só um partido guiado por uma teoria de vanguarda pode desempenhar o papel de combatente de vanguarda”.

Em outras palavras, ideias revolucionárias não brotam espontaneamente nas massas. A consciência transformadora viria de fora. A classe operária, por si própria, alcançaria se muito a consciência sindical. Não surpreende, portanto, que Lênin imputasse importante papel à vanguarda revolucionária. Sua teoria do partido revolucionário superou o determinismo econômico então em voga, destacando a iniciativa do sujeito como elemento indispensável do processo revolucionário.

A teoria da organização de vanguarda de Lênin assume grande importância em nossos dias, quando se volta a falar, à moda de Bernstein, em “espontaneidade”, embora essa ideia se apresente muitas vezes a partir de termos novos, como “horizontalidade” e outros, a sugerir o esgotamento do que chamam de “organizações políticas tradicionais”.

Lênin se dedicou profundamente às reflexões teóricas que envolviam o processo de construção do socialismo. Qual o legado dessas reflexões para o desenvolvimento da teoria marxista?
Após a morte de Engels, em 1895, o marxismo conheceu um período de relativa estagnação teórica. É verdade que a teoria econômica do imperialismo se desenvolveu nesse período, mas, no que respeita aos fundamentos filosóficos, o marxismo praticamente não se desenvolveu. Gianni Fresu, citando o pesquisador tcheco Lubomír Sochor, afirma que até 1920 a produção marxista restringiu-se, de um lado, a obras de divulgação do pensamento de Marx e Engels e, de outro, à polêmica com o revisionismo. Nesse período, segundo ele, não nasce “nada de novo e original em chave filosófica, salvo as poucas exceções que Sochor identifica em Labriola, Plekhanov e […] Lênin que, além de ter escrito Materialismo e Empiriocriticismo, nos anos do exílio na Suíça sente a necessidade de confrontar-se com os limites de seu próprio conhecimento filosófico, aprofundando-se na obra de Hegel”.

Portanto, no caso de Lênin, é possível identificar duas grandes contribuições. Primeiro, a defesa da doutrina materialista, feita em Materialismo e Empiriocriticismo. Ali Lênin voltava-se contra os deformadores da teoria marxista, que confundiam materialismo com empirismo vulgar e propunham um “retorno a Kant” ou, mesmo, a filosofias ainda mais conservadoras, como as do bispo Berkeley ou a do filósofo David Hume. Essas concepções, é claro, não apareciam dessa forma. Vinham embaladas sob o rótulo daquilo que Lênin chamou, no artigo Em defesa do materialismo militante, de “a última moda europeia”. Grassavam, naquela época, a filosofia empiriocriticista de nomes como Ernest Mach e Richard Avenarius. Sob a fachada de “renovação do marxismo”, eles propunham a substituição do materialismo por velhas modalidades de idealismo então apresentadas sob novas roupagens.

Ocorre que, entre o final do século XIX e o início do século XX, o positivismo – corrente de pensamento dominante em toda a Europa – passou a influenciar também os intelectuais que atuavam no movimento operário. Sob influência dessa corrente metodológica, o movimento trabalhista passou a oscilar entre o subjetivismo extremo e modalidades de materialismo vulgar. Esse fenômeno representava a face teórica do florescimento do revisionismo. Resgatando o agnosticismo de Kant e Hume, as tendências bernsteinianas negavam que o socialismo pudesse ser justificado teórica e cientificamente. Diziam que falar de objetivos últimos, finalísticos – como se Marx algum dia tivesse feito isso – era pura metafísica. Removiam dessa forma, dos planos do movimento operário, quaisquer referências à perspectiva socialista. Cabe lembrar que essa tese ainda hoje é o ponto de partida ideológico da social-democracia.

Se para Kant tudo o que escapa à experiência é “metafísica”, para os revisionistas, como dizia Lukács em seu Lênin – um estudo sobre a unidade de seu pensamento, “todo pensamento que ultrapassa praticamente o horizonte da sociedade burguesa é […] um pensamento ilusionista, um utopismo”. O mesmo Lukács advertia ainda para o fato de que essa posição política dita “realista” acaba por sacrificar “os interesses reais de toda a classe […] em favor dos interesses imediatos de determinados grupos”.

Como sabemos, Lênin combateu duramente essa tendência. Entretanto, em Materialismo e Empiriocriticismo ele se concentra-se mais na defesa de um materialismo tradicional do que propriamente no desenvolvimento da dialética sob uma ótica materialista. Esse primeiro livro de filosofia vai ser complementado mais tarde por seus estudos sobre Hegel, que hoje acessamos por meio do livro que ficou conhecido como Cadernos Filosóficos, o qual reúne as anotações de leituras de Lênin sobre Hegel e outros pensadores.

Essas anotações iriam confirmar a visão de Lênin segundo a qual o afastamento de parte do movimento operário em relação ao marxismo, sob a forma de bernsteinianismo, vinculava-se filosoficamente à guinada positivista e neokantiana do final do século anterior. Lênin reabilita Hegel como parte de sua crítica aos rumos que havia tomado a Segunda Internacional, particularmente após a maioria de suas organizações votar a favor da entrada de seus países na Primeira Grande Guerra.

A leitura da Lógica de Hegel ajudou Lênin a capturar conceitualmente a nova situação histórica e a se adaptar politicamente à nova conjuntura. Com base no grande filósofo alemão, ele pôde perceber com maior clareza os impasses gerados a partir da absorção ideológica, pela Segunda Internacional, do amálgama entre subjetivismo e empirismo. A leitura de Hegel ajudou a fundamentar o afastamento em relação à Segunda Internacional.

Hegel permitiu a Lênin reconstruir dialeticamente os nexos entre objetividade e subjetividade, que haviam sido rompidos na Segunda Internacional. Esse ganho de consciência teve consequências extremamente virtuosas no campo político. Como afirma Krausz, a releitura de Hegel suscitou em Lênin uma reinterpretação radical do subjetivismo. Ele “percebeu as circunstâncias históricas que provocaram o despertar da consciência dos indivíduos e das massas e compreendeu que isso poderia fornecer ‘fundamento’ para a política revolucionária”.

Com base em seus estudos de Hegel e Marx, Lênin enfatizou as ideias, a prática e a organização como elementos decisivos para a mudança revolucionária. Passou a combater ainda mais firmemente a persistência do velho dualismo gnosiológico burguês, que tem seu ápice na obra de Kant. Esse dualismo separa o elemento objetivo do subjetivo, resultando ora em determinismo vulgar e economicismo, ora em subjetivismo extremo que resvala facilmente para o niilismo. Não se consegue alcançar assim, por um lado, o fato de que o desenvolvimento das situações políticas tem um lado objetivo – responde a leis do desenvolvimento social. Por outro lado, esquece-se que essa objetividade não existe em si mesma e que a própria subjetividade também é parte das condições objetivas.

Em outras palavras, não se compreende aquilo que o próprio Marx lembrou em diversas ocasiões: o sujeito é, ele mesmo, força material. Nas Teses sobre Feuerbach, por exemplo, Marx afirma, sobre o materialismo burguês, que “não toma a própria atividade humana como atividade objetiva”. Ou seja: a iniciativa do sujeito também determina a objetividade das coisas. Não podemos pensar que o sujeito e a consciência estão fora do mundo – a menos, claro, que tenhamos uma compreensão naturalista da objetividade.

Lênin deixa claro que, quando Marx expõe as relações de produção como chave para a explicação da sociedade, está expondo apenas o esqueleto da sociedade. Mas ele nunca se limita a isso: também investiga as estruturas políticas e ideológicas correspondentes a essas relações econômicas. É o que vemos, por exemplo, em obras como O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Com essas constatações, aprofundadas a partir da leitura de Hegel, Lênin afasta-se ainda mais do economicismo que subestima o papel do sujeito revolucionário. Ao contrário disso, ele passa a enfatizar o papel das questões políticas e ideológicas (a organização revolucionária, a consciência de classe etc.). No final de sua vida, esse amadurecimento resultará na definição do processo transformador que decorria na Rússia como tendo o caráter de uma revolução cultural, termo cunhado no artigo intitulado Sobre a cooperação – um de seus últimos.

Em síntese, o amadurecimento definitivo do marxismo de Lênin só seria alcançado com a leitura de Hegel, a pontos de muitos dizerem que aquilo que hoje chamamos de leninismo nasce a partir daí. Da mesma forma que Marx voltou a Hegel antes de escrever O Capital, Lênin fez o mesmo antes de sua obra maior: a Revolução Russa. Ambos os mestres daquilo que hoje é, não sem motivo, chamado de marxismo-leninismo sentiram a necessidade de retornar aos fundamentos. Agiram como já o próprio Hegel o prescrevera ao postular, em sua Ciência da Lógica, que todo autêntico avanço “é antes um retroceder”. Conforme pensava o gênio da filosofia clássica alemã, “precisa-se admitir […] que o avançar é um retorno ao fundamento, ao originário e verdadeiro, dos quais depende. Por isso, como afirma Kevin Anderson, um dos principais estudiosos de Lênin, “precisamos celebrar o fato de que o principal líder da Revolução Russa, Lênin, foi o primeiro marxista após Marx a pôr a dialética em seu devido lugar, o centro da teoria marxista”.

Qual o principal legado de Lênin para o avanço da perspectiva socialista em nosso tempo?
Esse legado é múltiplo, mas eu destacaria sua teoria da transição ao socialismo. Entre os anos de 1917 e 1923, que compreendem o imediato pós-Revolução Russa, a liderança comunista viu-se diante da pressão esmagadora engendrada pelos dilemas que ameaçavam a sobrevivência do nascente regime socialista. A situação era extraordinariamente complexa e difícil. Naquele momento, sacrifícios inauditos foram realizados. Ao final de três ou quatro anos de guerra civil — aos quais se devem somar outros três, decorridos anteriormente, de participação russa na Primeira Guerra Mundial —, o país encontrava-se em situação falimentar, de quase completa destruição. A transição ao socialismo se revelava, ali, tarefa extraordinariamente complexa e difícil.

Logo após a revolução, durante a cruenta guerra civil movida pelas elites tzaristas com o apoio das potências imperialistas, medidas de socialização haviam sido implantadas como recurso de sobrevivência – dado que a burguesia, obviamente, se recusava a colaborar com o novo regime. Nas condições incrivelmente difíceis da extrema ruína e da fome, o partido e o governo, sob a direção de Lênin, elaboraram  e puseram em prática um sistema de medidas que recebeu o nome de comunismo de guerra. Não se limitando à nacionalização da grande indústria, o poder soviético levou a cabo a nacionalização das médias empresas e de uma parte significativa das pequenas empresas. Foi introduzida a requisição de alimentos, que consistia na entrega pelos camponeses ao Estado soviético dos excedentes de produtos agrícolas. Em fins de 1918 foi estabelecido o trabalho geral obrigatório. Foi proibido o comércio privado e introduzido um sistema de racionamento.

A insuficiência aguda de produtos e meios de produção obrigou o poder soviético a renunciar provisoriamente ao princípio socialista da distribuição segundo o trabalho e a tomar no geral a via da distribuição igualitária. Só desse modo era possível, naquelas complexas condições, abastecer o exército e a população das cidades com uma ração regularmente distribuída, embora muito escassa. As nacionalizações e expropriações forçadas, contudo, aumentavam as resistências ao novo regime. Lênin viu-se obrigado a recuar, sob pena de perder o apoio político de grande parte do campesinato num país que, como sabemos, era àquela época de imensa maioria camponesa. Ademais, era preciso garantir a cooperação do máximo possível de atores e segmentos sociais, tendo em vista a tarefa da reconstrução do país, que se impunha.

É assim que, em um contexto de aprofundamento dos problemas econômicos, após o período em que vigorara o chamado comunismo de guerra (1917-1921), Lênin evolui no modo de enfrentamento dos problemas práticos então colocados. Ele propõe a Nova Política Econômica (NEP), uma abordagem inédita sobre a economia socialista, que buscava, por meio de concessões à iniciativa privada e da criação de sociedades mistas, a exploração de processos capitalistas em benefício da reconstrução econômica. Introduzia-se, em termos práticos, uma modalidade de capitalismo de Estado sob controle da classe operária como forma concreta de transição ao socialismo nas condições de um país semifeudal.

A situação carregada dilemas imensuráveis, pois é óbvio que, com o reforço da pequena economia camponesa e o restabelecimento da indústria privada e do livre comércio de mercadorias, alguma reanimação do capitalismo ocorreria inevitavelmente. Com ela, os kulags e a burguesia das cidades ganhariam algum fôlego. Lênin não estava alheio a nada disso. Mas sublinhou que não havia saída: era necessário correr esses riscos em nome da reconstrução nacional. Teorizou que, com o poder nas mãos do Partido Comunista, e apoiando-se nos postos de comando da economia como a grande indústria, a terra, os bancos, os caminhos-de-ferro e o comércio externo, era viável admitir certa restauração do capitalismo sem minar as bases da ditadura do proletariado.

A NEP significava a passagem da destruição direta e completa da velha formação capitalista – abordagem que havia predominado nos anos de guerra civil – para o método da sua liquidação gradual e prolongada. Já na primavera de 1918 Lênin havia usado o termo capitalismo de Estado para descrever a supervisão, pelo Estado soviético, dos trustes e da administração de empresas, a fim de disciplinar o caos da produção capitalista em pequena escala. O conceito traduzia a orientação pela qual se buscava superar a anarquia da pequena produção, privilegiando o capital estabelecido em larga escala, especialmente as grandes empresas estatais, que estariam, no entanto, voltadas à produção para o mercado. Essa orientação materializava aquilo que Lênin chamou de “recuo ordenado”. Para fundamentar a adoção das medidas, ele sublinhava as diferenças fundamentais entre uma revolução burguesa e uma revolução proletária no plano econômico. No Sétimo Congresso do Partido Comunista bolchevique, realizado em 1918, ele afirma:

“Uma das diferenças fundamentais entre a revolução burguesa e a socialista consiste em que para a revolução burguesa, que nasce do feudalismo, se criam gradualmente, no seio do velho regime, novas organizações econômicas que modificam gradualmente todos os aspectos da sociedade feudal. A revolução burguesa tinha uma única tarefa – varrer, afastar, destruir todas as peias da sociedade anterior. Cumprindo esta tarefa, qualquer revolução burguesa cumpre quanto dela se exige: intensifica o crescimento do capitalismo. Completamente diferente é a situação em que se encontra a revolução socialista. Quanto mais atrasado é o país que, em virtude dos ziguezagues da história, teve de começar a revolução socialista, mais difícil é para ele passar das velhas relações capitalistas para as socialistas.”

Com o avançar do processo revolucionário, Lênin passou a opor-se firmemente à ideia de “introdução do socialismo”. Dizia que uma nova forma social não pode ser simplesmente “introduzida”, ainda mais por decreto. As medidas a serem tomadas, argumentava, são aquelas que já “estão perfeitamente maduras, técnica e culturalmente”. Essas observações reforçavam a ideia de formas transicionais. Ora, não é preciso pensar muito para constatar a dimensão da contribuição fornecida por Lênin, com teorizações com esta, ao desenvolvimento da estratégia socialista. Não à toa, um teórico e líder como João Amazonas costumava destacar o caráter “notável” da contribuição de Lênin nesse campo. Diria que, mais até do que a URSS, uma experiência como a chinesa pôde se beneficiar bastante dessa teorização, mesmo porque teve mais tempo para estudá-la com profundidade e absorvê-la.

Quais outros aspectos da vasta obra de Lênin você destacaria como fundamentais para serem revisitadas para auxiliar na compreensão dos acontecimentos políticos e econômicos atuais?
Haveria ainda outras contribuições importantes. Destaco apenas uma delas, pela importância que tem para o atual momento de defensiva revolucionária: a valorização da atividade político-prática, tendência que já vinha de Marx e Engels. Lênin desenvolve essa perspectiva desde tenra idade. Já em seu artigo Anarquismo e socialismo, de 1901, ele se refere ao anarquismo como “negação absurda da política na sociedade burguesa”, que culminaria paradoxalmente, a longo prazo, na “subordinação da classe operária à política burguesa sob a aparência de negação política”. Atual, não?

Lênin criticava duramente a atitude de deduzir ações políticas de princípios abstratos. Acreditava que noções como a de “revolução permanente”, desenvolvida por Párvus e Trótski, ou a dedicação desmedida dos anarquistas a finalidades extremas, tudo isso era deduzido de princípios abstratos que não consideravam as condições concretas. Para ele, a dialética era, em última instância, uma crítica da razão abstrata que ajudava a extrair sabedoria prática do campo da política.

Lênin contribuiu sobremaneira para o desenvolvimento da tática política do proletariado – uma tática ampla e aglutinadora, que visa a evitar os perigos do isolamento político diante do inimigo experiente e poderoso. Assumia posição crítica contra teorias que bloqueavam a esfera de atividade do movimento revolucionário ou o conduziam ao isolamento por intermédio de danosas ações individualistas. No mesmo espírito, rejeitava o terrorismo, forma abstrata de ser revolucionário de maneira independente de qualquer situação, que operava sob o voluntarismo do “ser sempre e em toda parte mais revolucionário do que todos os outros”.

Como ele afirma no Esquerdismo, doença infantil do comunismo, não pode existir autêntica atividade política sem alianças, acordos e compromissos. E alianças, evidentemente, devem ser feitas entre elementos heterogêneos do ponto de vista político e ideológico. Àqueles que temiam participar de coalizões amplas, ele mandou um recado, em O que fazer?: “Só podem recear as alianças temporárias, mesmo com elementos inseguros, aqueles que não têm confiança em si próprios”.