Quanta visibilidade têm transgênero e não-binários? Os resultados de um estudo brasileiro publicado no dia 26 de janeiro na revista Scientific Reports, ligada ao periódico científico Nature, procura responder, pela primeira vez, qual a proporção de brasileiros (adultos) que não se identificam com o gênero que lhes é atribuído, desde o nascimento.

O estudo por iniciativa do psiquiatra ligado à Faculdade de Medicina da USP, Giancarlo Spizzirri, feito a partir de metodologia Datafolha, levantou uma amostragem que revela uma proporção de 0,69% transgêneros e 1,19% não-binários entre pessoas adultas, ou o equivalente a quase 3 milhões de indivíduos. É importante ressaltar que esses números nada têm a ver com orientação sexual, portanto não “mediram” desejo voltado para homens, mulheres, etc, por exemplo. Gays e lésbicas, por exemplo, são orientações sexuais que compõem uma população ainda maior, estimada em cerca de 10%, segundo estudos diversos.

Outro aspecto a ser ressaltado é que dados sobre esta população costumam ser obtidos no sistema de saúde. No entanto, nem todas essas pessoas querem ou podem passar por alguma intervenção cirúrgica ou tratamento hormonal de transição de gênero. Com isso, o sistema de saúde cria uma rede limitada dessa população.

Para discutir a importância desses dados, Spizzirri e Raí Eufrásio, pesquisador(a) independente sobre LGBTQIPA , que também participou da pesquisa, falaram com exclusividade em live durante a semana da Visibilidade Trans, celebrada no dia 29 de janeiro.

Além dos dois, o artigo “Proportion of people identified as transgender and non-binary gender in Brazil”, foi elaborado em conjunto com Maria Cristina Pereira Lima, Hélio Rubens de Carvalho Nunes, Baudewijntje P. C. Kreukels,  Thomas D. Steensma e Carmita Helena Najjar Abdo.

Para ler a íntegra do artigo da Scientific Reports, CLIQUE AQUI

Cisgênero, transgênero e gênero não-binário

O estudo procurou contabilizar o invisível, na medida em que esta população é ocultada pela hegemonia heteronormativa e binária (macho e fêmea, masculino e feminino) da sociedade. Conforme explica Raí, que se identifica como pessoa não-binária, cisgênero é a pessoa que tem consonância com o gênero que lhe foi designado, ou imposto, no nascimento. “Normalmente, na nossa sociedade, a pessoa que nasce com pênis é designada como homem e a pessoa que nasce com vagina é mulher. Essa imposição do gênero a partir da leitura do genital é o que temos como corrente na nossa sociedade”, diz.

Desta forma, a pessoa que se identifica com esse gênero designado é cisgênero, se não, é transgênero. Dentre transgêneros, há pessoas binárias e não-binárias, conforme transgêneros se identifiquem no feminino ou no masculino, assim como travestis que são uma identidade transfeminina. Não-binários não se identificam como masculino ou feminino.

Mesmo (homens) gays e (mulheres) lésbicas que se consideram binários, portanto cisgêneros, podem também se sentir nessa “flutuação” entre o masculino e o feminino, ressalta Spizzirri. “São pessoas que estão entre o binarismo, fora dele ou não se identificam com nenhum deles”, explica, salientando que os conceitos mencionados são termos guarda-chuva que envolvem diversas identidades.

Como diz Raí, a melhor abordagem a qualquer pessoa é observar como ela se refere a si mesma. Em caso de dúvida, perguntar respeitosamente como ela prefere ser tratada. Ou seja, no convívio social, não é preciso dominar a terminologia científica para expressar respeito pelo outro, senão aceitar sua subjetividade.

Uma metodologia inclusiva

A metodologia do Instituto Datafolha foi utilizada para entrevistas em locais públicos, com perguntas específicas que evitassem recusas ou constrangimento dos entrevistados, que interferissem no resultado. Desta forma, foram feitas perguntas de fácil compreensão para depois os pesquisadores categorizarem as pessoas entre cisgêneros, transgêneros ou não-binários. A distribuição dos cerca de seis mil entrevistados é feita por cidades de diferentes portes em todas as regiões do país, justamente para que a amostragem fosse representativa do país.

“Esperamos a eleição de 2018, quando as questões de gênero foram muito discutidas, para não haver viés ou incomodar algumas pessoas”, disse Spizzirri, observando que a abordagem evitava falar em uma pesquisa sobre identidade de gênero, para falar em “um assunto importante para a sociedade”. Raí acrescenta que foi preciso contextualizar o momento eleitoral no artigo para demonstrar como a pesquisa poderia ter sua realização dificultada em função do tema polêmico.

“Ninguém recusou responder à pesquisa a partir dessa metodologia”, disse Spizzirri, informando o treinamento dado aos entrevistadores para acolherem diferenças com imparcialidade. As pessoas respondiam se se encaixavam nas alternativas oferecidas sobre sua consonância com gênero, sexualidade, orientação e corpo, por exemplo. A precisão das perguntas também não permite inferir especificidades comportamentais, preferências, condições materiais ou estilo de vida.

Existe um certo ineditismo internacional na pesquisa, porque são poucas os levantamentos populacionais sobre diversidade de gênero. Há estudos americanos feitos por telefone com a terminologia especializada e uma cartilha para explicar os termos. Outros estudos feitos pela internet conseguem uma abrangência maior de informações e mais sensíveis a especificidades. “No final das contas, são nove estudos feitos no hemisfério norte, cada um com sua abrangência e limitações”. Em se tratando de pesquisa sobre temas tabu, Raí salienta sempre a necessidade de coonsiderar uma certa subnotificação.

Resultados emergentes dos dados

Apesar disso, a pesquisa brasileira conseguiu detectar algumas especificidades como o fato de pessoas trans serem mais jovens que não-binárias, que, por sua vez, estão menos envolvidas em relacionamentos que outras populações. Outra revelação curiosa é que a diversidade de gênero se mostrou presente homogeneamente por todas as regiões pesquisadas, quando se imaginava que seria mais presente nas capitais e regiões metropolitanas normalmente mais tolerantes a diferenças.

“Essa informação chama a atenção por mostrar que essas populações estão espalhadas por localidades que não contam com acolhimento adequado em saúde ou educação, por exemplo”.

Spizzirri evita levantar hipóteses sem um estudo empírico, mas Raí arriscou dizer, por observação, que acredita que a população transgênero seja mais jovem por ter uma menor expectativa de vida. O psiquiatra complementa que o Brasil é destacado internacionalmente como “o país que mais vitimiza com desfecho de morte as pessoas transsexuais, o que talvez guarde alguma relação com o dado da pesquisa”.

Para entender as motivações sobre relacionamentos de pessoas não binárias, ele acredita que seria preciso uma pesquisa mais específica para levantar evidências.

Outro debate que aparece na pesquisa é o percentual de 85 para homens trans que relatam enorme sofrimento com suas características físicas, em relação a 50% de mulheres trans. Embora o estudo não aponte resultados para isso, Spizzirri acredita que pode estar relacionado com o fato do atendimento médico e psicológico para mulheres trans estar mais estabelecido na sociedade. “Talvez falte um reconhecimento das demandas de homens trans, que acabam sofrendo sozinhos, sem apoio social”, sugeriu.

Raí lembra que homens trans precisam frequentar ginecologistas, um ambiente comumente de mulheres cisgêneros. Isso acaba refletindo-se no abandono desse tipo de atendimento, colocando a saúde em risco. Spizzirri, por outro lado, observa que a própria formação de profissionais se saúde, educação, e outros, deveria contemplar questões de diversidade de gênero.

A principal demanda é o acolhimento

Quando a questão são as demandas específicas dessas populações que espalham pelo país com receio de procurar equipamentos públicos, Raí sugere que não se trata de “revolucionar a medicina”, mas apenas acolher com respeito e procurar compreender as características fisiológicas dessas pessoas.

Na educação, por outro lado, já houve iniciativas para fazer esse acolhimento por meio do debate, de “forma muito leve”, sem complicações. “Não seria caro, nem difícil, nada de outro mundo, mas não há vontade política de implementar”, criticou Raí. “Pior que o silêncio que havia, agora é a cooptação política do tema, transformando o preconceito em plataforma política“, analisou ele (ela).

A pesquisa também observou que 60% da pessoas transgênero não sentem necessidade de intervenção médica. Raí diz que a observação mostra que, com o tempo, cada vez menos travestis e transsexuais sentem necessidade de aceitar imposições cisgêneras. “Vai se tornando comum ver travestis de barba, homens trans com seios, que não deixam de sê-lo por isso. Da mesma forma que pessoas não-binárias não precisam ser andróginas para se considerarem não-binárias”, explicou. Mas Spizzirri, também imagina que algumas dessas pessoas talvez não levantem a hipótese de intervenções médicas por ignorância ou falta de oferta de atendimento.

Raí termina comentando como o vereador de São Paulo, Thammy Miranda, e o ator de Hollywood, Elliot Page, por exemplo, colocam em discussão na sociedade qual a cara da trangeneridade. “Eles mostram que é uma cara muito diversa. Assim como outras pessoas famosas apresentam formas diferentes de apresentar sua identidade de gênero, sexo, orientação sexual ou expressão de gênero e expressão artística, que devem ser conceitos diferenciados”.

Spizzirri encerra dizendo que, cada vez mais se observa uma “fluidez” do gênero, cada vez “menos estanque” entre homem e mulher.

Sobre a continuidade da pesquisa, ele mencionou a necessidade de aumentar o escopo de questões na pesquisa, assim como a ampliação de identidades de gênero e orientações sexuais. Raí ainda lembrou da invisibilidade das pessoas intersexo que nascem com características que não se definem claramente entre masculino e feminino e acabam sofrendo mutilações que reverberam por toda a vida.

Assista à íntegra da entrevista abaixo: