O surgimento do marxismo coincide com o avanço colonial expansionista, a consolidação de um proletariado e os primeiros movimentos feministas. “Três processos históricos que colocam em discussão a injusta divisão do trabalho, que existia no plano internacional, e na família patriarcal, entre homens e mulheres”, diz Losurdo.

Em seu livro A Luta de Classes, uma história política e filosófica, lançado ontem, o autor demonstra como esse tema central na obra de Marx manteve-se presente durante todo o século XX e se intensifica com clareza desesperadora neste novo século. Mais que isso, Losurdo revela que, mesmo as novas personificações desses conflitos estavam presentes na obra marxista.

A proclamação da obsolescência da teoria marxista por intelectuais e políticos na década de 1950, para Losurdo, configurou-se um erro duplo, ao disfarçar a realidade capitalista. “Jungen Habermas, por exemplo, fala do estado de bem estar social como o apagar da luta de classes, desconsiderando que o welfare state nada mais é que o resultado da luta de classes, assim como seu desmonte atual é consequência de uma luta de classes reacionária”, analisa.

Pluralidade de lutas

Sugeria-se uma igualdade social, que só havia para observadores míopes, como Ralf Dahrendorf, e uma ignorância conveniente de conflitos anticoloniais que irrompiam no Vietnã, em Cuba e no “Terceiro Mundo”. A luta pelos direitos civis da população negra nos Estados Unidos, ainda submetida à violenta segregação, discriminação e opressão, também não era considerada parte da luta de classes.

O filósofo então resgata, com perspicácia, uma expressão pouco destacada do Manifesto Comunista, de Marx e Engels: “lutas de classes” (kampft klassen). “A história de toda sociedade que existiu até agora é a história das lutas de classes” e estas assumem “formas diversas”. Um plural de sentidos que ele desenvolve a partir da percepção de que a luta de classes se expressa, não apenas no ambiente do trabalho, entre burguesia e proletariado, mas também no ambiente doméstico, entre homens e mulheres, e entre nações, contra o imperialismo e o neocolonialismo. Conflitos que sempre estiveram no cerne da obra de Marx e Engels e que são convenientemente ignorados por autores que negam sua força teórica.

Losurdo cita Engels, quando afirma que a primeira opressão de classe coincide com o sexo feminino pelo sexo masculino. “Àquela época, a mulher tem que viver a escravidão doméstica aberta ou um pouco escondida. Hoje, as mulheres operárias lutam para não ficarem segregadas nos setores inferiores do trabalho”, pontua. Losurdo comenta que a reintrodução da escravidão doméstica das mulheres com o avanço do Estado Islâmico deixa claro o modo como essas lutas podem sofrer retrocessos violentos.

Para além da perenidade das lutas de classe do capitalismo, mesmo nos países em que o socialismo foi adotado, o próprio Lênin observou que havia luta de classes, e que ela apenas mudou de forma. “O empenho para desenvolver as forças produtivas, melhorando as condições de vida das massas populares, ampliando a base social de consenso do poder soviético e reforçando a sua capacidade de atração sobre o proletariado ocidental e sobre os povos coloniais, tudo isto constituía a forma nova assumida na Rússia soviética pela luta de classes”, explica Losurdo.

Para exemplificar como se dava essa disputa pelas ideias, ele cita personalidades da revolução como o católico Pierre Pascal, que saudou-a por dar fim à guerra, passa a criticar o comunismo por ter acabado com os ricos e se tornado um sistema de pobres e paupérrimos. “Mesmo Trotski falava da socialização da miséria naquele momento de saída da guerra em que a União Soviética vivia um desastre típico dos pós-guerras”.

A revolução visava a transformar a Rússia de um país miserável, em um país rico. A etapa de organização do setor produtivo era necessária e temporária. “O capitalismo destrói as riquezas e a natureza e o comunismo tem a superioridade de desenvolvê-las e preservá-las Não podemos pensar na ideia de igualdade sem o desenvolvimento das forças produtivas”, explica Losurdo. Por outro lado, a revolução não enfrenta apenas a desigualdade interna entre classes, mas também a desigualdade internacional, com a enorme riqueza que os países capitalistas acumulam a partir da espoliação dos países mais pobres.

Lutas transnacionais

Com o fim da União Soviética, a consolidação da hegemonia capitalista no Ocidente, e a eclosão da pior crise econômica mundial, Marx volta a frequentar as escolas de economia que engrossam os coros evocando o “retorno da luta de classe”, que, conforme defende Losurdo, nunca tinha desaparecido.

Losurdo demonstra que a dominação de uma nação por outra tem a configuração de uma luta de classes. Na Irlanda, os camponeses eram sistematicamente expropriados pelos colonos ingleses, transformando sua luta numa “questão nacional”. A luta de libertação nacional do povo irlandês não só era uma luta de classes. Marx já dizia que é nas colônias de fato que a intrínseca barbárie da civilização burguesa se revela em toda a sua repugnância.

A Irlanda é apenas uma face da marcha expansionista colonial que cobria o planeta e esmagava até mesmo civilizações ricas e complexas como a China. “Houve a tentativa de reintrodução da escravidão na Europa por Hitler, ou pelos japoneses na Ásia,  o que forçou lutas nacionalistas e raciais”, acrescentou Losurdo. O Império do Sol Nascente imita o Terceiro Reich e radicaliza a tradição colonial. A luta de classes de todo um povo para escapar da escravização encontra seu intérprete em Mao Zedong, que em novembro de 1938 sublinha a “identidade entre a luta nacional e a luta de classes” que veio a se produzir nos países contra os quais o imperialismo japonês investiu.

Ele lembra que a luta heroica de Santo Domingo (o atual Haiti) contra a escravidão e o exército napoleônico, foi insuficiente para sua autonomia, devido a dependência econômica dos EUA, ou seja, a independência política é insuficiente frente à dependência econômica. Atualmente, cita ele, os colonos judeus desapropriam terras de palestinos e tornam uma luta étnica numa questão nacional.

Lutas de raças

Os séculos XVIII e XIX chamam os teóricos a refletir sobre esse sucesso expansionista, acompanhado de profundas turbulências internas dos países colonizadores. Ao desafio de análise, a cultura dominante à época só tinha uma explicação: o triunfo do Ocidente equivalia ao da superioridade da raça branca, enquanto as convulsões operárias na França se deviam a sua miscigenação devastadora. Foi esse argumento de natureza e o abandono da história que levaram Marx e Engels a elaborarem a teoria da luta de classe.

Não se tratava de providência divina em favor de uma raça. O sucesso ocidental exprimia o expansionismo da burguesia industrial e a sua tendência a construir o mercado mundial esmagando e explorando povos e países militar e economicamente atrasados. Os protagonistas das revoltas europeias nada mais eram que proletários cada vez mais numerosos e conscientes de sua classe com o avanço industrial.

A partir da teoria marxista, os Estados Unidos, vistos como prova da superioridade branca, passa a ser entendido como uma nação em que o conflito de classes era amenizado pela farta oferta da propriedade da terra expropriada dos nativos para os proletários, enquanto a escravização dos negros possibilitava o controle férreo das classes oprimidas. O “superior senso moral e prático dos americanos” vai por água abaixo com a sangrenta guerra civil, entre a burguesia industrial do Norte e a aristocracia escravista do Sul. A entrada dos escravos no conflito contra os seus patrões explicita o cenário da luta de classe.