Sem dúvida nenhuma, o grande arquiteto da Revolução Socialista na Rússia foi Vladimir Ilitch Ulianov, ou simplesmente Lênin. Apesar do muito que já foi escrito, ele continua sendo um ilustre desconhecido para a grande maioria dos militantes da esquerda revolucionária brasileira. O seu pensamento crítico, avesso ao dogmatismo, profundamente dialético, acabou sendo reduzido a fórmulas esquemáticas e empobrecidas. Muitos de seus ricos ensinamentos, especialmente no campo da construção da tática e da estratégia revolucionárias, foram deturpados por doutrinários de direita e de esquerda.

Aqui procuraremos abordar a contribuição teórica de Lênin ao processo revolucionário russo naquele turbulento ano de 1917 e recuperar aspectos menos conhecidos de sua elaboração teórico-política, especialmente as teses sobre o “desenvolvimento pacífico da revolução” — defendida entre os meses de fevereiro e julho e retomada em setembro daquele ano —, e sobre a necessidade de um período de transição entre o capitalismo e o socialismo.

O objetivo não será de apresentar receitas universais para as revoluções socialistas passadas ou futuras, mas de mostrar as inúmeras possibilidades que as revoluções reais — e não imaginárias — colocam para as correntes marxistas revolucionárias, e como é difícil se posicionar diante delas.

A particularidade da revolução democrática na Rússia: o duplo poder

Em 25 de fevereiro de 1917 o povo russo pôs abaixo a odiada autocracia czarista. Em seu lugar surgiu um governo provisório composto por setores da oposição liberal-burguesa, liderados pelo príncipe Liov, e por correntes socialistas reformistas, como os mencheviques e os social-revolucionários. Ao lado deste surgiu outro poder, criado pela ação revolucionária das massas populares: os Sovietes de operários e soldados de Petrogrado. Estava estabelecido, assim, um duplo poder.

Desde o seu nascedouro, o governo provisório deu sinais de que não poderia corresponder aos grandes acontecimentos que estavam sacudindo o território russo e europeu. Não se mostrava disposto a atender às principais reivindicações dos trabalhadores da cidade e do campo, que haviam sido forças decisivas na derrocada do czarismo. Não se comprometia com a decretação da paz, com a reforma agrária antilatifundiária e nem mesmo com as bandeiras democráticas, como a convocação de uma assembleia nacional constituinte livremente eleita. E, por outro lado, os Sovietes dirigidos pelos social-revolucionários e mencheviques não estavam determinados a arrancar dele essas conquistas. Num primeiro momento a própria direção bolchevique vacilou em relação a que atitude tomar frente ao governo provisório. Muitos defendiam uma posição de apoio crítico ou de neutralidade.

Lênin, que estava exilado na Suíça, mostrava muita preocupação com o desenvolvimento do processo revolucionário e com as posições de seus camaradas. Assim, escreveu cinco cartas analisando a situação política aberta após a revolução de fevereiro e expondo sua opinião sobre qual devia ser uma tática justa naquela nova, e imprevista, situação. Estas seriam denominadas Cartas de Longe. Ele iniciou sua correspondência vaticinando: “a primeira revolução terminou. Seguramente, esta primeira etapa não será a última de nossa revolução”.

“Ao lado deste governo (provisório)”, continuou ele, “apareceu um governo operário (…) ainda, relativamente débil, que expressa os interesses do proletariado e de todos os elementos pobres da população da cidade e do campo. Este governo é dos Sovietes de deputados operários de Petrogrado (…). Quem pretende que os operários devem apoiar ao novo governo em nome da luta contra a reação czarista (…) trai aos operários, trai a causa do proletariado, a causa da paz e da liberdade. Porque, de fato, este novo governo já está atado de mãos e pés ao capital imperialismo, à política imperialista belicista, de rapina, e já iniciou as transações (sem consultar ao povo) com a dinastia.”. E, concluiu, que aquele governo não podia dar ao povo “nem a paz, nem o pão, nem a liberdade”. O Pravda, órgão oficial dos bolcheviques, só publicou a primeira de suas Cartas de Longe. A direção considerava que as posições por ele defendidas não correspondiam à política oficial do Partido.

Em abril, Lênin chegou a uma Rússia ainda convulsionada e apresentou, pela primeira vez, a palavra de ordem revolucionária: “Todo Poder aos Sovietes!”. Neste período, elaborou dois importantes documentos: Teses de Abril, ou Sobre as tarefas do proletariado na atual revolução, e As tarefas do proletariado na presente revolução.

“Na Rússia”, escreveu ele, “o poder de Estado passou para as mãos de uma nova classe, a saber, da burguesia e dos latifundiários que se tornaram burgueses. Desta forma a revolução democrático-burguesa está consumada (…). A característica principal de nossa revolução (…) é a duplicidade de poderes (…). Esta circunstância excepcionalmente original, sem precedente na história da humanidade, levou ao entrelaçamento de duas ditaduras: a ditadura da burguesia (…) e a ditadura do proletariado e do campesinato (o Soviete de deputados, operários e soldados)”.

Mas ele tinha plena consciência da instabilidade desta situação atípica e dos perigos, e possibilidades, que ela colocava diante do proletariado revolucionário. “Não há sombra de dúvida”, afirmou, “de que esse ‘entrelaçamento’ não está em condições de se sustentar por muito tempo. Não podem subsistir dois poderes num mesmo Estado. Um deles precisa desaparecer (…). A duplicidade de poder não exprime senão um instante transitório no desenvolvimento da revolução, quando ela já ultrapassou os limites da revolução democrático-burguesa comum, porém ainda não atingiu uma ditadura ‘pura’ do proletariado e do campesinato.”.

Nestes dois artigos deixou claro que não acreditava na possibilidade da implantação imediata do socialismo na Rússia e que seria necessário um período de transição mais ou menos longo, dependendo de uma série de fatores objetivos e subjetivos. “Nossa tarefa imediata não é a ‘introdução’ do socialismo (…). O partido do proletariado não pode propor-se, de forma alguma, ‘estabelecer’ o socialismo num país de pequenos camponeses enquanto a grande maioria da população não tiver tomado consciência da necessidade da revolução socialista”, escreveu.

Apresentou então as medidas possíveis e necessárias que, naquele momento, permitiriam criar melhores condições para transitar ao socialismo: “Medidas como nacionalização das terras e de todos os bancos e consórcios capitalistas, ou ao menos o seu controle direto imediato pelos Sovietes de deputados operários etc. — que não significam de modo algum o ‘estabelecimento’ do socialismo — devem ser incondicionalmente defendidas e aplicadas (…). Sem estas medidas, que são passos para o socialismo, e tranquilamente realizáveis do ponto de vista econômico, será impossível curar as feridas provocadas pela guerra e impedir e iminente crise.”.

Ainda em abril escreveu o artigo Sobre a Dualidade de Poderes, no qual contestava aqueles que pretendiam derrubar imediatamente o governo provisório. O governo devia ser derrubado por ser oligárquico e burguês, mas isto não poderia ser realizado em curto prazo, pois ele ainda tinha um sólido apoio dos Sovietes e de parte significativa da população. Era preciso, em primeiro lugar, conquistar a maioria do povo para o lado da revolução. “Não somos blanquistas”, afirmou, “não somos partidários da tomada do poder por uma minoria. Somos marxistas, partidários da luta proletária de classe contra a embriaguez pequeno-burguesa.”.

No dia oito de abril, o comitê bolchevique de Petrogrado rejeitou as teses de Lênin por 14 votos a dois. Na maioria dos comitês partidários, a nova tática proposta foi recebida com desconfiança. A respeito das sucessivas derrotas sofridas, Sukhanov escreveu: “a massa do partido eleva-se contra Lênin para defender os princípios elementares do socialismo científico tradicional”. Bogdanov comentou: “É um delírio, o delírio de um louco”. Um ex-bolchevique, Goldenberg, afirmou irônico: “Durante muitos anos, o lugar de Bakunine na revolução russa tinha estado vazio; agora, foi ocupado por Lênin.”.

Kamenev, importante líder bolchevique, resistiu em publicar os artigos de Lênin. O primeiro deles acabou sendo publicado no dia 7 de abril com o título Sobre os objetivos do proletariado na revolução atual. No dia seguinte, o próprio Kamenev respondeu com um artigo crítico no qual afirmava: “Em relação ao esquema geral do camarada Lênin, parece-nos inaceitável, na medida em que apresenta como acabada a revolução democrático-burguesa e conta com uma transformação imediata desta revolução em revolução socialista.”. Tratava-se, neste caso, de uma distorção das ideias apresentadas por Lênin.

Os velhos bolcheviques, como Lênin os chamava, estavam presos a velhos esquemas enrijecidos. Ao contrário do que muitos afirmaram, eles não aplicavam as teses presentes em Duas táticas da socialdemocracia na revolução democrática — escrita por Lênin em 1905 —, e sim faziam uma leitura distorcida desta importante obra leninista e recuavam para uma visão esquemática predominante na II Internacional — já criticada por Lênin durante a revolução de 1905 —, que encarava a revolução como etapas rígidas, estanques, sem comunicação entre si. Segundo esta concepção, era preciso um longo período de desenvolvimento capitalista, sob o domínio político burguês, para que se pudesse avançar a uma segunda etapa da revolução. Não foi à toa que, quando os bolcheviques tomaram o poder e começaram a construir o socialismo, Plekhanov afirmou horrorizado: “Mas esta é uma violação de todas as leis da história”. De fato, a única coisa violada pela ação dos bolcheviques foi a visão metafísica da história que procurava se erigir em lei.

Lênin, buscando novamente esclarecer suas reais posições, escreveu uma série de cartas. A primeira intitulava-se Análise da situação atual. Nela, defendeu a justeza da estratégia e da tática aplicadas até a revolução de fevereiro — cujos fundamentos estavam expressos no seu livro de 1905. “Desde a revolução”, escreveu, “o poder está nas mãos de uma classe diferente, uma classe nova, isto é, a burguesia (…). A este nível, a revolução burguesa, ou democrático-burguesa, está concluída (…). As palavras de ordem e ideias bolchevistas, no seu todo, têm sido confirmadas pela história; mas, concretamente, as coisas resultaram de forma diferente; são mais originais, mais peculiares, mais variadas do que se podia ter esperado (…). ‘A ditadura revolucionária e democrática do proletariado e campesinato’ já se tornou uma realidade (…). ‘O Soviete de Deputados Operários e Soldados’ – aí tendes a ‘ditadura revolucionária e democrática do proletariado e campesinato’ já consumada na realidade.”. No entanto, continuou, “temos lado a lado, coexistindo simultaneamente, a regra burguesa (…) e uma ditadura revolucionária e democrática do proletariado e campesinato que vai cedendo voluntariamente poder à burguesia, tornando-se voluntariamente um apêndice da burguesia”. E concluiu: “Este fato não se enquadra nos velhos esquemas”. Portanto, os esquemas táticos devem se adaptar à realidade e não o contrário.

De novo ele se defendeu da acusação de querer saltar etapas na revolução. “Mas não estamos nós em perigo de cair no subjetivismo, de querer chegar à revolução socialista ‘saltando’ sobre a revolução democrático-burguesa – que ainda não está concluída e nem esgotou o movimento camponês? Eu poderia incorrer neste erro se dissesse: ‘Não ao czar, sim a um governo operário’. Mas, eu não disse isso (…). Afirmei que não pode haver outro governo (exceto um governo burguês) na Rússia que não seja o dos Sovietes de Deputados operários, trabalhadores rurais, soldados e camponeses (…). E nestes Sovietes (…) são os camponeses, os soldados, isto é, a pequena burguesia, que tem preponderância, para usar um termo científico, marxista, uma caracterização classista (…). Nas minhas teses, precavi-me seguramente a fim de não saltar sobre o movimento camponês (…) ou sobre o movimento pequeno-burguês em geral, contra qualquer brincadeira de ‘tomada do poder’ por um governo operário, contra qualquer tipo de aventureirismo blanquista (…). O controle sobre a banca, a fusão de todos os bancos num só, não é ainda socialismo, mas um passo rumo ao socialismo”.

O “desenvolvimento pacífico da revolução” e o problema da transição ao socialismo

Lênin passou os meses seguintes, pacientemente, esclarecendo suas posições para o conjunto da militância partidária. Os primeiros que aderiram às teses de Lênin foram Krupskaia, Stalin e Zinoviev. A crise política recrudesceu com as sucessivas derrotas militares russas, e Lênin conseguiu enfim impor sua posição ao conjunto do Partido. A primeira grande vitória se deu na Conferência das seções bolcheviques de Petrogrado, que se iniciou no dia 14 de abril e na qual conseguiu obter 20 votos contra seis.

No dia 18 de abril, quando ainda transcorria a conferência, o ministro de negócios estrangeiros do governo provisório, Miliukov, lançou uma nota acintosa afirmando que “o povo desejava continuar a guerra até a vitória total e que o Governo Provisório mantivesse todos os tratados”. Dois dias depois mais de 100 mil manifestantes saíram às ruas contra a declaração guerreira do ministério e entraram, pela primeira vez, em choque com tropas do governo. Um grupo de bolcheviques, contra as indicações de Lênin, chegou a levantar a palavradeordem “abaixo o governo provisório!”.

Isto contrariava frontalmente a tática apregoada por Lênin, que se baseava no processo de acumulação de forças e de “desenvolvimento pacífico da revolução”, através da conquista gradual de uma maioria segura nos Sovietes. Escreveu Lênin: “Lançamos a palavra de ordem de manifestação pacífica, mas alguns camaradas (…) lançaram outra palavra de ordem que anulamos, mas não o fizemos a tempo de evitar que as massas seguissem a palavra de ordem do Comitê de Petersburgo. Dissemos que a palavra de ordem ‘Abaixo o governo provisório!’ era aventureira, que agora não se podia derrubar o governo e, por isso, lançamos a palavra de ordem de manifestação pacífica. Só queríamos fazer um reconhecimento pacífico das forças do inimigo, sem lhe dar combate, mas o Comitê de Petersburgo virou um pouco mais para a esquerda, o que neste caso é, naturalmente, um gravíssimo crime (…). No momento da ação era despropositado ir ‘um pouco mais para esquerda’.”.

Imediatamente o governo e as forças conservadoras acusaram os bolcheviques de serem agentes do governo alemão. A onda reacionária foi tão grande que foi preciso efetuar um acordo no interior dos Sovietes: os bolcheviques lançariam uma nota desmentindo as acusações e esclarecendo suas posições e a direção dos Sovietes, por sua vez, exigiria a retirada da nota de Miliukov. O incidente acarretou sua demissão do ministério. Esta foi a primeira grave crise do governo provisório. Lênin criticou a vacilação da direção dos Sovietes que poderia ter se aproveitado da crise para exigir que todo o poder fosse transferido para ela e assim conduzir a revolução por um caminho menos traumático, através da constituição de um governo efetivamente operário e popular ainda que sob hegemonia dos mencheviques e social-revolucionários.

A crise, ao contrário do que propunha Lênin, levou à constituição de um governo de coalizão no qual ingressaram dois mencheviques e vários social-revolucionários, a maioria dirigente dos Sovietes. Houve, assim, uma aproximação maior entre os dois órgãos de poder e uma submissão gradual dos Sovietes ao governo provisório burguês.

Na 7ª Conferência nacional dos bolcheviques, iniciada em 24 de abril, as posições de Lênin foram novamente vitoriosas por 71 votos contra 38. Ratificou-se ali a tática de “desenvolvimento pacífico da revolução”, que se expressava na palavra de ordem “Todo poder aos Sovietes!”. E fez-se uma crítica à palavra de ordem “Abaixo o governo provisório!”. Escreveu Lênin: “É preciso derrubar o governo provisório, mas não agora e nem pela via habitual”.

Outro ponto de divergência era quanto à existência ou não de uma fase de transição na revolução russa, que conduziria ao socialismo. Neste ponto Lênin condenou, novamente, a tese que afirmava ser preciso passar diretamente para o socialismo, sem etapas intermediárias — sem nenhum processo de transição. “O camarada Rikov diz não haver período de transição entre o capitalismo e o socialismo. Não é assim. Isso é romper com o marxismo”, afirmou Lênin. Para ele, a Rússia vivia um momento de transição ao socialismo. “O defeito principal de todos os raciocínios dos socialistas em que a questão é formulada em termos demasiados gerais — transição para o socialismo. Entretanto, é necessário falar dos passos e medidas concretas. Alguns deles amadureceram, outros ainda não. Vivemos um momento de transição. É evidente que avançamos formas que não parecem com as dos Estados burgueses: os Sovietes de deputados operários e soldados (…). São formas que representam os primeiros passos para o socialismo (…). Os Sovietes (…) devem tomar o poder, mas não para implantar uma república burguesa corrente, nem passar diretamente para o socialismo (…). Para que então? Devem tomar o poder para dar os primeiros passos concretos, que podem e devem ser dados, para esta transição”.

Na resolução “sobre o momento atual” escreveu ainda, “o proletariado da Rússia que atua num dos países mais atrasados da Europa, no meio de uma imensa população de pequenos camponeses, não pode propor-se como fim a realização imediata de transformações socialistas”. E, em seguida, apresentou o programa desta “transição ao socialismo” na Rússia pós-fevereiro: nacionalização da terra, o controle do Estado sobre os bancos – e a sua fusão num banco central único –, controle sobre os maiores consórcios capitalistas, sistema mais justo de impostos progressivos sobre rendimentos e bens. Mesmo na aplicação destas medidas, ainda não socialistas, seria necessário “uma extraordinária prudência e precaução”, pois seria preciso “conquistar uma sólida maioria da população e conseguir a sua convicção consciente na preparação prática desta ou daquela medida”.

Em primeiro de junho se reuniu o I Congresso de Toda a Rússia dos Sovietes. Num total de 1090 delegados os bolcheviques tinham apenas 105. Todas suas teses foram fragorosamente derrotadas, mas Lênin teve uma grande atuação na defesa das propostas bolchevistas. Quando o ministro dos correios e telégrafos, o menchevique Tseretéli, afirmou “Não existe neste momento, na Rússia, um partido político que possa dizer: deem-nos o poder, vão-se embora, nós ocuparemos o vosso lugar”. Uma voz ao fundo respondeu: “Existe! O nosso partido não o recusa: a todo momento está pronto para tomar todo o poder”. Era Lênin. Muitos riram do que parecia uma petulância do dirigente de uma corrente política que tinha apenas 10% do Congresso.

Nesta mesma ocasião os bolcheviques resolveram convocar uma grande manifestação contra a guerra. Esta decisão foi duramente criticada pela direção dos Sovietes, que os acusou de fazerem o jogo da contrarrevolução. O partido, com a concordância de Lênin, resolveu recuar organizadamente para não se isolar das massas que ainda apoiavam a direção reformista dos Sovietes. No entanto, para mostrar força e influenciar o governo provisório, esta própria direção foi obrigada a realizar uma manifestação. No dia 18 de junho mais de 500 mil pessoas tomaram as ruas de Petrogrado e grande parte delas aderiu às palavras de ordem bolcheviques: “Abaixo os dez ministros capitalistas!” e “Todo poder aos Sovietes!”. Os bolcheviques ainda possuíam uma organização relativamente pequena, e pouca representação nos Sovietes, mas suas ideias já começavam a influenciar milhões de pessoas.

A ofensiva reacionária e o fim do desenvolvimento pacífico

No final de junho a situação política se tornou desesperadora após sucessivas derrotas do exército russo. A mortandade nos campos de batalha e a fome adubavam o solo da revolução em processo. Finalmente, o primeiro regimento de metralhadoras de Petrogrado decidiu pôr abaixo o governo provisório e recebeu apoio dos marinheiros de Cronstadt.

Os bolcheviques desaconselharam firmemente a rebelião afirmando que as condições ainda não estavam maduras e que se deveria esperar mais. No entanto, a situação havia fugido do controle da vanguarda revolucionária. Os operários também estavam agitados e aderiram ao movimento. Não podendo impedi-la, sob pena de se isolar agora das massas avançadas, decidiram participar transformando o protesto armado em uma manifestação pacífica — evitando provocações desnecessárias. Uma curiosidade: o jornal bolchevique Pravda chegou a sair com um espaço em branco na capa. Ali seria publicada uma conclamação do partido contra a realização da manifestação que acabou sendo retirada, mas não houve tempo de incluir o outro texto trazendo a nova diretiva partidária.

Entre 3 e 4 de julho ocorreram manifestações de caráter revolucionário que reuniram cerca de 500 mil pessoas. As manifestações foram reprimidas à bala pelo governo de Kerensky. Nos choques morreram centenas de pessoas. Lênin afirmou que aquele movimento havia sido “algo significativamente maior que uma manifestação e menor do que uma revolução”.

O governo provisório e as forças conservadoras não perderam tempo e passaram à ofensiva contra os bolcheviques. Lênin foi perseguido e obrigado a se refugiar na Finlândia. Os jornais bolcheviques foram fechados e o Partido passou para a clandestinidade. Temerosa, a direção dos Sovietes se subordinou ao governo provisório e aderiu à onda antibolchevique. O duplo poder se esvaiu. O único poder, de fato, passava a ser o governo provisório dirigido por Kerensky e este rapidamente se transmutava em um regime discricionário sustentado pelas forças militares reacionárias. A revolução passava, segundo Lênin, por mais uma “viragem histórica” que exigia que fosse alterada a tática.

No dia 10 de julho Lênin escreveu: “Todas as esperanças de um desenvolvimento pacífico da revolução russa se desvaneceram definitivamente. A situação é esta: ou a vitória da ditadura militar ou a vitória da insurreição armada dos operários (…). A palavra de ordem da passagem de todo poder aos Sovietes foi a palavra de ordem do desenvolvimento pacífico da revolução possível em abril, em maio, em junho e até 5-9 de julho, isto é, até o poder passar de fato para as mãos da ditadura militar”.

No artigo A propósito das palavras de Ordem, escrito poucos dias depois da vitória da contrarrevolução, ele voltou ao tema. “A palavra de ordem de passagem de todo poder aos sovietes”, afirmou ele, “foi justa durante o período passado de nossa revolução, digamos de 27 de fevereiro a 4 de julho (…) neste período passado da revolução, reinava a chamada ‘dualidade de poder’, que exprimia (…) a situação indefinida e de transição (…). Eis o que garantia a via pacífica de desenvolvimento. Era a palavra de ordem do desenvolvimento pacífico da revolução, que de 27 de fevereiro até 4 de julho era possível e, naturalmente, o mais desejável, e que hoje já é absolutamente impossível (…). Assim poderia ter acontecido se o poder tivesse passado oportunamente para os Sovietes. E isto teria sido o mais fácil, o mais vantajoso para o povo. Tal caminho seria o mais indolor e por isso mesmo era preciso lutar por ele com toda energia (…). A via pacífica do desenvolvimento da revolução foi tornada impossível. Começou a via não pacífica, a mais dolorosa”. Diante deste novo quadro os bolcheviques realizaram, no final de julho e início de agosto, o seu 6º congresso. Ali foi ratificado o abandono da palavradeordem “todo poder aos sovietes!” e a insurreição armada começou a ser preparada.

Aqui cabe uma advertência: o denominado “desenvolvimento pacífico da revolução”, apregoado por Lênin, não tinha nenhuma relação com a tese de “via pacífica para o socialismo”, defendida pelas diversas correntes reformistas nos séculos XIX e XX. A via proposta por Lênin não se confundia com a gradual conquista de posições dentro da institucionalidade (democrática) burguesa. O pressuposto de Lênin era o da existência de um duplo poder, no qual o poder operário e popular (os sovietes) possuía força política, moral e militar reais — superior mesmo àdo governo provisório burguês. Não se tratava, assim, de chegar ao socialismo respeitando a lógica e as regras do jogo eleitoral — criados para manter a dominação de classe da burguesia —, e sim rompendo com elas e construindo e fortalecendo uma outra institucionalidade mais avançada e mais democrática: a institucionalidade operária e popular. Esta era a condição para o “desenvolvimento pacífico da revolução russa”.

Derrotados os bolcheviques, a reação voltou-se contra os Sovietes e o próprio governo provisório, composto por social-revolucionários e mencheviques, e visto com desconfiança pelos setores mais conservadores da sociedade russa. O general Kornilov, comandanteemchefe do exército, exigiu a dissolução imediata dos Sovietes e dos comitês de fábricas. Não conseguindo seu intento, no dia 25 de agosto, lançou seus exércitos, apoiado pelo imperialismo inglês e francês, contra Petrogrado.

Constituiu-se então um vigoroso movimento de resistência dos soldados revolucionários e operários armados, dirigidos pelos bolcheviques. Kornilov foi rapidamente derrotado e preso. Novamente a iniciativa passou às mãos da revolução. O governo de Kerensky se enfraqueceu e os bolcheviques adquiriram grande autoridade moral e política. Acabaram sendo vistos pelas grandes massas como única força capaz de defender as conquistas da revolução.

O crescimento do Partido bolchevique neste período foi assustador. O número de filiados passou de 24 mil em fevereiro para 240 mil em julho e, em poucos meses, passou a ser maioria nos Sovietes de Petrogrado e de Moscou. Nestes dias, após a vitória sobre Kornilov, Lênin constatou uma nova “viragem histórica” no processo revolucionário russo e propôs uma alteração na tática — retomando a linha do desenvolvimento pacífico abandonada em julho. 

Os compromissos e as novas perspectivas do “desenvolvimento pacífico”

No dia primeiro de setembro Lênin escreveu o interessante, e pouco conhecido, artigo Sobre os compromissos, que antecipava em alguns anos os argumentos que seriam desenvolvidos no seu livro Esquerdismo, doença infantil do comunismo. Escreveu ele: “A ideia corrente que o homem de rua dos bolcheviques, encorajada por uma imprensa que os calunia, é de que os bolcheviques nunca concordarão com um compromisso com ninguém (…). Contudo, devemos afirmar que esta é uma ideia errada (…). A Revolução Russa está a experimentar uma viragem tão abrupta e original que nós, como partido, podemos conceder um compromisso voluntário (…) com os nossos adversários mais próximos, os partidos pequeno-burgueses ‘dominantes’, os socialistas revolucionários e os mencheviques”.

Continuou ele: “O compromisso da nossa parte é o nosso regresso à exigência de antes de julho de todo poder aos Sovietes e um governo de social-revolucionários e mencheviques responsável perante os Sovietes (…).Um tal governo poderia ser instalado e consolidado de um modo perfeitamente pacífico (…) e proporcionar fortes possibilidades para grandes progressos nos movimentos mundiais pela paz e vitória do socialismo. (…) os bolcheviques podem e devem concordar com este compromisso apenas em atenção ao desenvolvimento pacífico da revolução – uma oportunidade extremamente rara na história e extremamente valiosa (…). O compromisso equivaleria ao seguinte: os bolcheviques, sem fazerem qualquer exigência de participação no governo (…), abster-se-iam de exigir a transferência imediata do poder para o proletariado e camponeses pobres e de empregar métodos revolucionários de luta por essa exigência. Uma condição evidente (…) consistiria na liberdade completa para propaganda e convocação da Assembleia Constituinte sem mais demora.”.

Segundo Lênin, os bolcheviques não apresentariam outras condições, pois confiavam “na evolução pacífica da revolução”, e que suas posições triunfariam “pacificamente” graças “à verdadeira e completa liberdade de propaganda e à instalação imediata de uma nova democracia na composição dos Sovietes e no seu funcionamento”. E concluiu: “Talvez isto já seja impossível? Talvez. Mas se ainda houver uma probabilidade em cem, o esforço para concretização desta oportunidade ainda valerá a pena.”.

Dentro deste espírito, Kamenev propôs ao Soviete de Petrogrado a seguinte resolução: “Dado que a rebelião contrarrevolucionária de Kornilov foi preparada e apoiada por certos partidos cujos representantes pertencem ao governo, o Comitê Executivo Central dos Sovietes considera que a única solução possível atualmente é a formação dum governo composto por representantes do proletariado revolucionário e dos camponeses.”. O programa proposto pelos bolcheviques era: República democrática, dissolução da Duma e do Conselho de Estado, convocatória de uma Assembleia Nacional Constituinte, confiscação dos latifúndios e sua entrega aos comitês agrários, controle operário da produção, nacionalização das principais indústrias, impostos severos sobre capitais e lucros e proposta imediata da paz às potências beligerantes.

A proposta bolchevique conseguiu, pela primeira vez, ser aprovada. Foram 279 votos numa reunião com 400 delegados. A palavra de ordem “Todo poder aos Sovietes!”, que havia sido abandonada em julho, voltou a ter atualidade.

A hora da insurreição armada

Poucos dias depois, esta situação propícia para uma transição pacífica ao socialismo já havia passado. Mesmo assim Lênin defendeu a publicação de seu artigo na íntegra com a advertência de que se tratava de um pensamento atrasado, mas concluiu: “mesmo os pensamentos atrasados não deixam por vezes de ter interesse”. Os mencheviques e os social-revolucionários de direita não acataram a proposta de Lênin e do Soviete de Petrogrado, criando novamente um impasse no processo revolucionário e impondo uma nova tática assentada na preparação da insurreição armada.

Lênin chegou à conclusão de que a insurreição estava na ordemdodia. As condições para ela estavam ameaçadas de apodrecerem, e com elas a possibilidade de uma revolução vitoriosa. Os bolcheviques já eram maioria nos sovietes mais importantes. “A história não nos perdoará se não tomarmos o poder imediatamente”, afirmou ele.

As posições de Lênin sofreram uma dura oposição de Kamenev e Zinoviev. Numa primeira reunião do Comitê Central, no dia 15 de setembro, a proposta de Lênin não conseguiu ser aprovada. Nas reuniões seguintes também não. Lênin resolveu abandonar o exílio onde se encontrava desde julho e voltar a Petrogrado. Em 3 de outubro ele já estava em solo russo e na reunião do CC, ocorrida em 10 de outubro, as suas posições finalmente saíram vitoriosas por 10 votos contra dois.

Abriu-se, então, a polêmica sobre a data da insurreição e quem a dirigiria. Trotsky defendeu que ela deveria ser comandada pela direção do congresso dos Sovietes, que se reuniria em outubro. Lênin defendeu que não se devia esperar e sim colocar a tomada do poder como fato consumado ao congresso e entregar-lhe o poder. O impasse continuou até o dia 16 de outubro, quando uma nova assembleia extraordinária do CC decidiu, por ampla maioria, pelas posições de Lênin.

Kamenev e Zinoviev discordaram da posição do CC e fizeram uma campanha interna contra as posições do partido e a notícia da decisão dos bolcheviques sobre a insurreição acabou chegando à imprensa burguesa, comprometendo gravemente o sucesso do movimento revolucionário. Lênin pediu a expulsão dos dois dirigentes sob acusação de traição. Proposta que foi prontamente recusada.

No dia sete de novembro, coincidindo com a abertura do II Congresso dos Sovietes, os bolcheviques tomaram o poder em nome do proletariado revolucionário. “Vamos proceder agora à construção da ordem socialista”. Estas foram as primeiras palavras que Lênin pronunciou na plenária daquele histórico congresso. Mais tarde ele diria que tinha sido mais fácil tomar o poder na Rússia do que dar os primeiros passos na construção da nova sociedade socialista.

 

* Este artigo pertence ao livro Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução, publicado pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi.

** Augusto César Buonicore é historiador, presidente do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros, Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução. Todos publicados pela Editora Anita Garibaldi.

 

Bibliografia 

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