Paulo Abrão

Paulo Abrão, secretário nacional de Justiça e presidente da Comissão de Anistia, ao iniciar o evento que lembrou a passagem dos 50 anos do golpe militar na noite de quarta-feira (2) no Teatro da Universidade Católica (Tuca) da PUC de São Paulo fez uma espécie de testamento político sobre o significado trágico do período em que o Brasil foi governo pelo arbítrio e a violência. Segundo ele, o ato era para demarcar os valores e posições em torno de uma batalha que tem sido difícil, demorada, mas vitoriosa. Não só porque algumas conquistas democráticas estão sendo implementadas, mas fundamentalmente porque os atos em torno da verdade, da memória e da justiça sobre os crimes do passado em todo o Brasil têm reunido amplos segmentos da juventude.

Esse é o melhor exemplo do compromisso e da esperança com a não repetição daqueles acontecimentos trágicos, com o “nunca mais”, com o legado de conquistas de uma geração anterior e que agora precisam ser aprofundadas, afirmou. “Teremos muitos 50 anos pela frente, como o do AI-5 (Ato Institucional número 5), o do 477 (o decreto-lei nº 477, de 26 de fevereiro de 1969, também chamado de AI-5 das universidades, baixado pelo ditador Artur da Costa e Silva para punir professores, alunos e funcionários de universidades), o de várias prisões arbitrárias, de muitas mortes, de muitos desaparecimentos, de muitos episódios desses 21 anos de atraso para a sociedade e para o Estado brasileiro”, disse ele.

Negacionismo

Para Paulo Abrão, é preciso dizer com voz ativa que a sociedade brasileira não aceita, em nenhuma hipótese, a tomada do poder com uso da força das armas, a ruptura institucional. Segundo ele, o Brasil está vencendo o negocianismo, o medo de discutir o passado, porque hoje é muito mais difícil sustentar teses de que a torturas não existiu e negar que o Estado criou deliberadamente um aparato sistemático de destruição de vidas. “Essas estruturas foram engendradas por dentro das administrações, com dinheiro do povo, como centros de torturas”, afirmou.

O progresso do enfrentamento político com o legado da repressão, na opinião de Paulo Abrão, ainda é contraditório. “Se esse nagacionismo das graves violações dos direitos humanos no passado tem caído por terra a partir da visibilidade das vítimas, a partir da escuta pública da resistência brasileira, que foi vetada por muito tempo, e que agora são obrigados a ter que ouvir, ainda não conseguimos dar o passo adiante para vencer a justificação da violência, o espectro simbólico da ditadura militar, o espectro ideológico daqueles que ainda insistem em julgar o golpe como um mal necessário, daqueles que insistem em dizer que a repressão, a violência e a opressão foi apenas uma resposta ao exercício livre da resistência de um povo que soube lutar”, enfatizou.

Mobilização cultural

Segundo ele, a ditadura matou desde o seu primeiro dia. Assassinou no Rio de Janeiro e no Recife no primeiro dia do golpe. Prendeu, torturou e abusou dos direitos de milhares de militares que disseram não, que não aceitaram serem instrumentalizados para instaurar um regime ditatorial. Prendeu sindicalistas, caçou mandatos políticos, desde o seu primeiro instante. “A sociedade brasileira resistiu porque ela tinha o legítimo direito de resistir. E agora vamos disputar esse novo caráter nacional. Porque falar de memória e instituir a disputa política é dizer que a historia não é mais contada pelo viés, pelo olhar dos vencedores de então”, destacou.

Paulo Abrão disse que por meio dessa grande processo de mobilização cultural virá à tona questão que ainda não foram resolvidas. Ele lembrou que seguimentos das elites políticas e econômicas até pouco tempo atrás diziam ser um erro levantar esses temas ou discutir esses assuntos, pois causaria instabilidade democrática. “Estamos dizendo que não, que é o contrário, que não é possível olhar para o futuro sem reconhecer cada erro do passado. Isso é construir uma nova a ética social. Isso é construir uma nova cultura nas nossas relações. A cultura da transparência, da verdade e da memória. Uma luta contra a cultura do jeitinho, dos favores, da ausência de justiça social”, asseverou.

Militares

Essas iniciativas, de acordo com Paulo Abrão, estão criando um grande movimento nacional para gerar uma consciência critica no povo brasileiro em favor da democracia, dos direitos humanos, “pois não existe democracia sem um profundo respeito a todos os direitos humanos, na sua completude”. “É por isso que estamos inaugurando monumentos ao ‘nunca mais’”, destacou, enfatizando que no Rio de Janeiro um deles foi erigido em frente ao Clube Militar e dedicado aos militares cassados por seus pares. “Porque a dignidade desses militares esquecidos é também o exemplo que queremos que contamine os militares do presente, aqueles que hoje estão dentro das Forças Armadas, para que nunca atentem contra o seu povo, para que nunca instrumentalizem uma instituição tão cara para o Estado e a democracia para fins de realização de intempéries pessoais”, afirmou.

Segundo ele, não existia no Brasil um único espaço de memória desses militares dignos de exemplo. “Vamos seguir com o processo memorialização. Quebramos o tabu, o medo. Estamos dizendo que falta muita coisa, muita gente não foi devidamente reparada, que os arquivos não foram totalmente abertos, que os crimes não foram devidamente apurados. Isso é inaceitável. A verdade não se constrói exclusivamente pelos processos administrativos das comissões instaladas. Ou pelo exercício da memória, dos testemunhos das vítimas, a quem devemos duplamente: pelas liberdades que temos hoje e por se sacrificarem em vir novamente prestar seus testemunhos, contar suas histórias para enfrentar as mentiras instauradas e correr o risco da vitimização, da relembrança da dor das noites mal dormidas, dos projetos de vida interrompidos, das frustrações não totalmente curadas.”

Mensagens

Paulo Abrão disse ainda que falta gerar um ambiente para consolidar a força do “nunca mais” como um valor da democracia. “Hoje são muitos os jovens que têm uma crítica muito forte ao excesso de pragmatismo político. Eles têm razão. Mas temos a responsabilidade de não permitir que essa crítica ao pragmatismo político se transforme em ceticismo com a política. Porque o que a ditadura quis fazer era isso. Ela criminalizou a vida política, a política, a participação popular, a liberdade de pensamento, a organização social. Não podemos ter descrença com a política como a forma de organização da nossa vida social. Se não concorda com os políticos que hoje estão aí, se candidatem, participem, filiem-se aos partidos políticos. Se não concordam com partidos que estão aí, organizem-se, Fundem novas organizações partidárias”, asseverou.

Mesmo as discordâncias com o sistema, disse, precisam ser tratadas no âmbito da política. “Organizem-se. Lutem apara alterá-lo! Mas em nenhuma hipótese deixemos que a vitória da ditadura, na sua cultura autoritária projetada para frente, seja dada com a descrença dos jovens na política. Acho que isso é falar do primeiro dia do golpe. É falar dessa ruptura com a democracia, com as instituições. Parece-me que essa é uma das principais mensagens para além de toda a luta permanente pelos restos mortais, pela democratização das nossas vidas sociais. Os cinquenta anos do dia ou da semana do golpe tem de se transformar numa defesa intransigente da importância d apolítica nas nossas vidas”, resumiu.

Marinheiro viajado

Após a inauguração do monumento ao “nunca mais” em frente ao Tuca — um dos 16 que serão instalados ao longo do ano, um projeto da Comissão de Anistia em parceria com o Instituto Alice —, começou o ato no teatro, apresentado pelo ator o Sérgio Mamberti simbolizando uma homenagem a todos os artistas vítimas da ditadura. O auditório do teatro que foi criminosamente incendiado nos tempos da ditadura, e que em 1978 o 1º abrigou o 1º Congresso Nacional pela Anistia, estava repleto. No palco, se apresentaram antigos frequentadores, como o poeta Thiago de Mello — recebido de pé pela plateia — e o músico Sérgio Ricardo — nos anos 1970 eles participaram do show “Faz Escuro Mas Eu Canto”, o mesmo título de um livro de Thiago de Mello.

Sérgio Mamberti

O poeta lembrou que fora adido cultural no Chile, durante o governo do presidente  Eduardo Frei, quando recebeu a informação de que, pelo ministro de Relações Exteriores Gabriel Valdés, do golpe militar no Brasil. E recordou que em 1º de abril de 1964, na casa de Santiago — onde hoje funciona a Fundação Pablo Neruda —, recebeu Neruda, à época senador e membro do Comitê Central do Partido Comunista do Chile, com um rádio de boa frequência para ouvirem um pronunciamento de João Goulart.

Thiago de Mello e Sérgio Ricardo

Segundo Thiago de Mello, Neruda, sentado em uma cadeira de balanço, disse: “O teu povo não vai sair às ruas para defender a liberdade. Isso jamais acontecerá no Chile. Aqui, até as donas de casa sairão às ruas com as vassouras”, O poeta afirmou, com ironia, que ficou “magoado”. Para ele, os comícios das “Diretas já!”, em 1984, demonstraram que Neruda não tinha razão: “Ah, se o poeta estivesse vivo para ver que esse povo sabe lutar!”. Em 1964, disse Thiago de Mello, Salvador Allende, “marinheiro viajado nos mares da política”, advertira que o golpe no Brasil abriria portas para outros golpes na América Latina e que o Chile provavelmente não escaparia.

Coro Luther King

Algum tempo depois, Thiago de Mello, ainda na atividade diplomática, recebeu um malote com os jornais e viu na primeira página do Correio da Manhã a figura do líder comunista Gregório Bezerra descalço, só de calção, “o peito todo lanhado, o sangue ainda escorrendo, puxado por uma corda”. “Este não é meu pais”, afirmou. Duas semanas depois veria, também no Correio da Manhã, a imagem de outro comunista, Astrojildo Pereira, “apaixonado pela obra de Machado de Assis”. “Tomei sozinho a decisão de renunciar ao meu posto”, lamentou. Thiago de Mello disse ainda que ao tomar conhecimento do Ato Institucional número 1, o primeiro da ditadura militar, escreve o famoso poema “Os Estatutos do Homem”.

O Coro Luther King interpretou “Viola Enluarada”, de Marcos Valle — segundo Mamberti, o verso “O mesmo pé que dança o samba se for preciso vai lutar” expressa “a índole do povo brasileiro” — “Bella Ciao”, hino de resistência italiana durante a Segunda Guerra Mundial, “O Bêbado e a Equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc”, e “A Internacional”. Sérgio Ricardo também cantou “Perseguição” e “O Sertão vai Virar Mar”, trilhas do filme “Deus o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha.

Discursos na tribuna

Na tribuna, João Alexandre Goulart, neto do presidente deposto pelos golpistas em 1964 João Goulart, destacou a ausência nos livros de história de informações exatas sobre o avô. “O silêncio da morte foi a versão oficial do governo”, disse ele, ressaltando também a omissão sobre a participação norte-americana no golpe e as campanhas do complexo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES)/Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), uma poderosa organização de empresários ligados ao capital multinacional, nas conspirações que levaram ao golpe. “Em que página (dos livros de história) estava a Operação Brother Sam?”, indagou, referindo-se à participação dos Estados Unidos na trama golpista.

Maria Rita Kehl, da Comissão Nacional da Verdade, disse que uma das justificativas para o golpe é totalmente inconsistente: a de que a ditadura foi um mal necessário “para evitar que o Brasil se tornasse uma Cuba”. “O golpe implantou uma ditadura de 21 anos para evitar que aqui virasse uma ditadura? Tem alguma coisa errada aí. Inconscientemente, eles se denunciam”, afirmou. “O que eles vieram evitar foi o que eles fizeram.” Ela comentou ainda o carimbo de “comunista” que a direita espalhou sobre João Goulart. “O projeto de Jango não era do comunismo radical, mas de reformas. E estamos atrasados até hoje. Na verdade, eles vieram para evitar a distribuição de renda, de terra, dos meios de produção.”

Organizadores

Falaram ainda os representantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) — leia a íntegra aqui —, do Partido Democrático Trabalhista (PDT), do Partido dos Trabalhadores (PT), da União Nacional dos Estudantes (UNE), da Central Única dos Trabalhadores (CUT), da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), da Arquidiocese de São Paulo (representando Dom Paulo Evaristo Arns) e do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).

A atividade foi uma iniciativa de diversas entidades e organizações políticas, entre elas as fundações Maurício Grabóis, Perseu Abramo e Getúlio Vargas; os partidos PCdoB e PT; as centrais sindicais CTB e CUT; as entidades juvenis UNE, UBES e UJS; a UBM, o MST, a Conam e a OAB. Integram também a organização da atividade a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva e a Comissão da Verdade da PUC-SP – Reitora Nadir Gouvêa Kfouri.