“O mal não está em falar da tristeza ou da angústia. O mal é não encontrar saída para a desesperação” – estas palavras, da poetisa Lila Ripoll, são imensamente atuais, hoje, quando tanta gente confunde a expressão artística com o descrédito na busca de soluções para os problemas humanos com que nos debatemos.

Gaúcha de Quarai, onde nasceu em 1916, Lila Ripoll foi uma escritora reconhecida pelos seus pares. Ela estreou em 1938, com o livro De Mãos Postas. Em 1941, foi premiada pela Academia Brasileira de Letras pelo livro Céu Vazio. Escreveu também Por quê?, Novos Poemas (Prêmio Pablo Neruda), 1º de Maio, Poemas e Canções e O Coração Descoberto. Além de poetisa, foi professora e pianista.
Sem a retórica fácil daqueles que, enfeitando com bandeirolas vermelhas seus escritos, pensam cantar a revolução, a poesia de Lila Ripoll foi um depoimento veemente – e desprendido, como disse o crítico Walmir Ayala – das contradições de seu tempo. “O poeta é, antes de tudo, um homem”, disse ela certa ocasião, comentando a aparente oposição entre poesia lírica e poesia política. “Não a separo da vida, nem da responsabilidade que assume, como homem, perante a sociedade”, concluía ela, definindo um verdadeiro programa para a poesia: exprimir a “vida em geral”, com sua riqueza multifacética. Um programa que rejeita o panfleto, mas também recusa essa bobagem que é a busca do belo pelo belo, objetivo daqueles que vêem na arte apenas a diversão, o decorativo, incapazes de compreendê-la como expressão essencial e insubstituível da vida do homem, uma forma de conhecimento que se refere a aspectos da realidade que escapam à sistematização científica, sem porém deixar de impressionar a sensibilidade humana. “Ali está a vida/ Aqui o sonho”, escreveu no poema Contradição, dando uma dica dessa rica e contraditória forma de conhecimento que é a poesia, da qual ela foi uma mestra consumada.

Depois de 1964, Lila Ripoll foi importunada pela repressão, envolvida nos tentáculos de um IPM (Inquérito Policial Militar, de trágica memória). Ela morreu em 7 de fevereiro de 1967, mas, mesmo depois de morta, continuou importunada pelos mesmos algozes. O 10º aniversário de sua morte, por exemplo, não pôde ser lembrado nas páginas de A Classe Operária, então publicado clandestinamente. Pedro Pomar havia encomendado a Clóvis Moura um artigo, que deveria ser publicado na Classe. Emprestou a ele alguns livros da poetisa – tendo o cuidado, característico daqueles anos ferozes, de rasgar as páginas onde estavam as dedicatórias da autora. Estudando esse material, mais o que já tinha, e alguns recortes de jornal, Clóvis Moura começou a escrever o artigo, mas foi interrompido pelos tiros que, numa madrugada de dezembro de 1976, ceifaram a vida de Pedro Pomar e outros companheiros, no bairro da Lapa, em São Paulo.

Esse começo de artigo, documento de uma época de clandestinidade pesada, está sendo publicado pela primeira vez nesta edição da Princípios, juntamente com duas cartas sem data da poetisa – dirigidas aos amigos, como ela carinhosamente chamava seus companheiros do PCdoB – e alguns de seus poemas: A SERENA ALTIVEZ

A morte da poetisa Lila Ripoll passou quase despercebida no noticiário de jornais e revistas. No Rio Grande do Sul, para onde se transportara depois de uma estada na Guanabara numa tentativa de cura, Lila Ripoll morreu como sempre vivera: coerente consigo e com a sua poesia. Coerência que a levou, muitas vezes, a tomar atitudes desassombradas que ninguém supunha possíveis em criatura tão frágil.

Parece que muitos jornais, os mesmos que tantos elogios tecem a figurões e figuralhas sem importância, deixaram o evento passar. Certamente um sintoma destes tempos tortuosos que vivemos onde a inversão de valores é uma constante. Foi poetisa até o último momento. Faltavam poucos minutos para entrar no estado de coma do qual jamais se recuperaria e ditou, balbuciada, com a voz quase imperceptível, a sua última mensagem:

Agradeço tudo a todos.
Não merecia tanto.
Digam aos amigos que
Levo esta única saudade: deixá-los.
Aos amigos desejo incorporar
Mais os novos amigos que conhecemos,
E aos inúmeros amigos que não conhecemos
Deixo a minha grande saudade.

Isso foi dia 5 de fevereiro de 1967. Logo depois entraria em coma para morrer no dia 7, sem haver recobrado a consciência. Por isto mesmo é evidente que um documento como o que transcrevemos não pode ser analisado através de simples tubos de ensaio de estética, mas deve ser sentido como um documento de calor humano, de fraternidade militante, de dignidade, finalmente. Pouco antes de morrer Lila Ripoll foi envolvida em um dos muitos IPMs criados pela redentora contra intelectuais. Isto, porém, não a intimidou ou esmoreceu. Já trazia no corpo a moléstia que a levaria à sepultura, mas, nem assim, os bravos soldados da civilização cristã a pouparam. Não interrogaram uma pessoa sadia, mas uma pré-agonizante. Houve mais: quando um grupo de intelectuais gaúchos se dispôs a prestar-lhe uma homenagem – todos sabiam que seria a última homenagem a ser-lhe prestada em vida – foi obstado pela polícia política. Essa frágil mulher capaz de pôr em perigo as instituições aqui plantadas tinha apenas como armas a sua dignidade e a sua poesia.

E o que era a sua poesia? Um instrumento à base de TNT, capaz de fazer pelo ar as instituições de caserna? Não, pelo contrário. O que a caracteriza é justamente a tranquilidade. Tranquilidade advinda da confiança. Não a evoquemos, porém, apenas como dado da situação política atual. Evoquemos Lila Ripoll através de sua poesia, aquela mesma poesia que metia medo… Uma das suas características é o apuro e o equilíbrio. Durante toda a sua trajetória poética, Lila Ripoll evoluiu sem aceitar uma série de correntes que surgiram e desapareceram. Ela, confiante nas águas eternas do grande rio poético, deu a sua gota de beleza dentro do plano que escolheu. Poesia decantada, de um lirismo inusitado, trouxe para o nosso cancioneiro coisas como esta:

Solidão brinca comigo
um jogo de esconde, esconde.
Desaparece um momento
e surge não sei de onde.

Solidão se esconde e volta,
moi a vida, o sonho, o amor.
Ah! Jogo de esconde, esconde,
esconde também a dor.

Sua poesia é eminentemente musical. Não sei se porque Lila Ripoll tinha grande cultura musical – preparou-se para ser concertista, deixando posteriormente a carreira por motivos particulares –, o certo é que os seus versos são sempre macios e musicais. Outra característica de sua poesia é a riqueza temática.

Lila Ripoll, ao mesmo tempo que fazia versos de lirismo e solidão, escrevia versos sobre grandes temas de nosso tempo. Ardia o seu coração pelos grandes temas. É verdade que, muitas vezes, ela própria o confessou, a sua poesia sobre esses temas não conseguia atingir o nível que ela desejava. Talvez exigência demasiada do poeta. Talvez impossibilidade pessoal. Ela dizia:

Não me estendas a mão,
Que o tempo endureceu meu peito.

Sou poeta. Obrigatório
é para mim o sonho.
Concede-me o direito
De sonhar.

O seu horizonte via mãos que se estendiam para ela. Mas, que mãos eram essas? Deverá o poeta apertar todas as mãos? Lila achava que não, que aqueles que não concedem ao poeta o direito de sonhar não têm, também, o direito de apertar-lhe a mão.

Queridos amigos:
Pois aqui estou, enfrentando os maus ventos e com a saúde bastante abalada, mas sempre com a mesma postura frente à vida e aos acontecimentos. Digo mais: se ainda alguma coisa me pode fazer vibrar é a esperança de assistir e, de alguma forma, participar do grande espetáculo.
Tenho uma saudade cada vez maior de nosso convívio. Uma saudade que às vezes me faz ser injusta com os outros amigos, tão frequentes são as lembranças que evoco.

Só não vou até aí porque mamãe está bastante velhinha (84 anos) e já com certa confusão de memória, é a maior dificuldade.

E você? Felizes? Vendo claro no futuro e, por isso, esperando problemas e vivendo uma alegria íntima que poucos podem compreender? Sei que é assim e minha admiração “cresce” com a minha amizade.
Grandes abraços a todos.

Queridos amigos:
Tive momentos de real felicidade, com a leitura da carta amiga de vocês. Carta plena de palavras belas, generosas, cheias de estímulo sadio e fraternal. Foi um instante feliz para quem – como eu – tem vivido um ano difícil, com constantes preocupações de saúde, além das outras comuns a todos nós.
Tudo quanto posso dizer aos amigos é que continuo com os mesmos sonhos e a mesma disposição de colaborar, para que eles possam, um dia, ser a realidade que almejamos.

Estou fazendo uma pausa no trabalho literário. Isto, porque escrevi demais no último mês. Fui apanhada por uma hepatite, resultado da transfusão de sangue, em minha operação cirúrgica. Mais 45 dias de repouso, então absoluto – Leito obrigatório. Resultado: 33 poemas novos. Um novo livro de poesia. Agora, um certo cansaço. Um vazio temporário. Uma pausa necessária.
Alegrei-me com a notícia de que meus poemas foram apreciados por vocês. Farei o possível para continuar com o entusiasmo que motivou o aparecimento daqueles.

As notícias aqui serão levadas de viva voz por nossa Tereza, que hoje está passando o dia comigo. Tudo anda. Todos caminham para frente, embora sem os resultados que desejaríamos alcançar. Nossos intelectuais, secundando os exemplos daí, amadurecem um pouco mais. E surgem elementos novos, com mentalidade também nova e certa disposição apreciável de luta.

Abracem por mim a todos os amigos que me enviaram lembranças e a outros que não tiveram a mesma oportunidade. Espero vencer a batalha de saúde que venho enfrentando, para poder estar no Rio em fins deste ano ou princípios do outro. Sonho em conversar com vocês, longa e fraternamente.
Carinhoso abraço.

DOIS MOMENTOS LÍRICOS
I
Uma noite, caminharemos sob a lua
cercados de emoção.

De cada estrela, um brilho tênuedescerá por sobre a terra.

Teus lábios irão pesados de silêncio,
porque as palavras estarão fechadas em teu coração.

A teu lado, clarividente e amargurada,
eu pisarei nas pedras e nas flores.

O silêncio estará entre nós obrigatório
e sem necessidade de definições. No espelho de teu rosto,
os pensamentos ordenados se refletirão.

O sossego do céu e a quietude dos pássaros
ajudarão o diálogo silencioso.

Nosso pés nos levarão onde quiserem,
porque flutuaremos entre nuvens,
sem sentido de tempo ou de lugar.

Tudo em nós prenunciará
a despedida inevitável.

A minha e a tua mão se encontrarão
de súbito em silêncio.

E serão inúteis as palavras,
o brilho das estrelas,
e as flores a mostrar as pétalas nascentes.

II
Sei que é primavera,
que estão em flor os pessegueiros
e são claros os caminhos ao luar.

Sei que o amor é breve,
as flores emurchecem
e as horas não voltam a passar.

Sei que o canto perdido não retorna,
que a Poesia é um momento,
como o Amor.

Mas não peças que cante nesta hora,
que detenha meus olhos sobre as flores
e sinta o seu frescor.

Sei que este instante nunca voltará,
com este mesmo céu,
com este azul,
e as palavras que teus lábios desenharam.

Sei que o fluir da vida é incessante,
sei que o amor se gasta com o tempo:
sabem todos que amaram!

Mas há em mim um grave pensamento
que me afasta de ti.

Aportaste numa ilha difícil, meu amigo!
deixa fluir o tempo,
sobre mim!

CONTRADIÇÃO
Ali está a vida.
Aqui o sonho.

Fico entre os dois perdida.
Me desfaço e recomponho.

Tão perto o abraço,
e longe o amor.

Tão pequeno o espaço.
Tão perdido o meu clamor!

PEDIDO
Não me falem de tristezas
que eu as conheço de cor.
Falem-me sim de alegrias,que tem um gosto melhor.

De tristezas – o meu peito
gastou anos a chorar.
Tirei um curso de máguas.
Ninguém me pode ensinar.

MANCHAS
I
Foi sempre tristeza. Tristeza remota, vinda quem sabe
de onde. De que desesperados apelos. De que exilado
sonho.
De que grandeza mutilada.

E foi também solidão. Secreta solidão.
Inviolável solidão de mulher sem esperança.

Na rua alegre e colorida, foi uma mancha
de inútil dissonância.

Ninguém sentiu sua tragédia.
A ausência de seu riso.
A forma quase definitiva de seu rosto.

Um dia, inclinei-me sobre ela
como quem se procura num espelho.

Os olhos sorriram brevemente. Apenas os olhos.
Porque a boca permaneceu na linha triste
que a compunha.

E caminhou sem pressa.
Defendida pelos lábios,que eram a sua fortaleza de silêncio. II
Não é meu este instante. É teu, Poesia.
É tua esta irreal melancolia
que resvala da noite, das estrelas,
das janelas abertas para vê-las.
Não é o meu momento que germina
de uma antiga tristeza.
Nem a sombra que me divide em duas
pela rua.
Nem os braços cruzados
onde deitou-se a solidão
Multiplicas teu rosto, nesta noite,
mas eu te reconheço:
– no leito frio, de folhas desterradas,
nas figuras celestes,
na menina de preto, junto às rosas.

III
Vestiram de azul a menina morta
e de treva cobriram os seus olhos,
com aquele lenço escuro
sobre o rosto.

Ainda bem que o sol transpôs os vidros
e o lenço
e desceu sobre o rosto sufocado.

POEMA
Inútil o protesto.
Inútil o florir anunciador
da primavera.

Não me estendas a mão
que o tempo endureceu meu peito.

Sou poeta. Obrigatório
é para mim o sonho.
Concede-me o direito
de sonhar.

Quero ficar à janela da vida,
a cabeça no côncavo das mãos,
sabendo inútil a esperança,
mas a ela aconchegada.

A lua sobe alto, no céu alto.
Nesta hora, nascem asas,
laços de gravidade,
secretos instantes
de cintilação

Minha mão não se estende.
Caída permanece,
como corola emurchecida.

O poeta sonha.
A mulher joga a rosasobre o mundo!

CANTO A ELISA BRANCO

PESADAS grades, hirtas e escuras,
estão paradas
e perfiladas
junto às janelas da cela escura
que esconde Elisa – a de nome simples,
de nome claro
de nome branco,
a de alma clara.

Passam soldados,
voltam soldados,
e os doces olhos da prisioneira
são águas claras que não se turvam.

Pesadas grades,
hirtas e escuras,
estão paradas e perfiladas
como soldados
junto às janelas.

Elisa Branco
– na cela escura –
está rodeada de pensamentos
puros e claros como seu nome.

Que importam grades junto às janelas?
E esses soldados que passam, passam?
e os sons soturnos
que marcam, marcam
os duros passos das sentinelas?

Elisa Branco sorri e espera.
Não sente o peso das escuras grades,
nem ouve a marcha de duros passos,
que dia e noite,
que noite e dia,
passa e repassa
junto às janelas da cela escura.

Elisa Branco confia e espera –
Elisa simples,
de nome claro,
de nome branco,
de alma clara. DUAS VARIAÇÕES SOBRE UM MESMO TEMA

ESTOU sozinha e tenho as mãos vazias.
Mas meus olhos não choram
e o meu canto é de esperança.

A terra está bordada de insetos e de flores
e o vento é uma cortina de perfume.

Nalgum canto da terra
anda teu passo,
sob as altas estrelas cintilantes.

Teu passo audaz e largo anda nas ruas,
transformando em ação teu pensamento.
Amo a noite que foge,
e a terra e os homens,
e o caminho que abriste à minha frente.

Estou sozinha e tenho as mãos vazias.
Mas meus olhos não choram
e o meu canto é de esperança.

II
As palavras que caem de meus lábios
– como frutos estranhos – nesta tarde,
quando foi que escrevi?
Por que escrevi?
E que olhos desceram sobre elas?

“As nuvens, esse sol, estas crianças,
aonde vão parar?
em que morada?
Quem comanda essa nau sem esperanças?”

Quando foi que escrevi?
Por que escrevi?
E agora, por que o mundo está mais belo?
E as flores, o sol?
Homens e nuvens?
E as naus viajam cheias de certeza?

Quem plantou na minha alta esta alegria?
Quem me ensinou a olhar e a compreender?
Quem mudou o sentido de meus versos
e deu certeza a meus passos,
e a meus olhos deu fulgor?

Foste tu, meu Partido, foste tu.
A ti devo este encontro com a vida
e o claro rumo de meus pensamentos.

Devo a ti o sorriso de confiança
que entreabre meus lábios quando vejo
as crianças passarem pela rua.

Esta simplicidade com que vivo,
e o olhar que hoje se alonga no futuro,
o orgulho do trabalho e as rosas novas,
que no meu coração estão florindo,
foi lição recebida junto a ti.

A ti devo este encontro com a vida,
e a natural fraternidade
com que o pão de minha mesa se reparte.

José Carlos Ruy – Jornalista.
Clóvis Moua – Escritor e sociólogo.

EDIÇÃO 30, AGO/SET/OUT, 1993, PÁGINAS 32, 33, 34, 35, 36, 37