Demagogia e malandragem na proposta de “reforma” da Previdência Social
As enfadonhas lamúrias sobre o “déficit” da Previdência Social que aparecem diuturnamente na mídia são em parte demagogia, em parte malandragem de quem gostaria que se mexesse o máximo possível no atual sistema de aposentadoria a fim de se eximir de responsabilidades sociais. Muito pouco, ou nada, do que se ouve na ladainha a favor da “reforma” da Previdência faz algum sentido para quem vê a sociedade como um conjunto de pessoas com direitos e deveres iguais. É o caso, por exemplo, de um livro do conhecido economista neoliberal Fabio Gimbiagi — para a mídia, ele é a maior autoridade brasileira no assunto —, intitulado “Reforma da Previdência”, que apresenta a questão no subtítulo com o tão absurdo quanto falso dilema sobre “a difícil escolha entre nossos pais ou nossos filhos”.
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Em resumo, pode-se dizer que Giambiagi expõe em estado puro a frieza como os neoliberais veem e entendem o mundo da economia. Para eles, é difícil entender, por exemplo, como os trabalhadores rurais podem ter direito a um benefício para o qual não contribuíram. É como se essas pessoas não participassem do processo de criação de riquezas no país. A inominável insensibilidade dessa gente chega a chocar. Muito falatório foi investido, também, na repetição de que há gente demais no Brasil trabalhando sem contribuir para a Previdência, seja para terceiros ou por conta própria: 20 milhões, 25 milhões, 30 milhões, 40 milhões. Insiste-se nas cifras (que por sinal ninguém sabe direito de onde vêm) para contrabandear a ideia de que toda essa imensa massa de trabalhadores não pode ter direito à aposentadoria.
Em nenhum momento foi explicitado por que, exatamente, tais trabalhadores precisam deixar de ter no futuro o que têm agora. O argumento não se justifica nem pelo peso da conta dos benefícios — o principal motivo alegado pelos neoliberais — nas despesas do Estado. Mesmo aqueles com carteira assinada e contribuições rigorosamente em dia estão longe de receber algo que pudesse passar perto dessa justificativa — aproximadamente 80% dos aposentados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), responsável pelos benefícios concedidos a todos os celetistas e autônomos, ganham um salário mínimo por mês. Cerca de 90% deles recebem até três salários mínimos e ficam com aproximadamente 60% de todas as despesas com benefícios. Nas cidades, a média de benefícios é de 2,1 salários mínimos e na área rural, de um salário mínimo.
Outra falácia dos neoliberais
Se considerado proporcionalmente, o peso dessa conta — comparado, por exemplo, com o peso da conta de juros — representa muito pouco para a economia do país. Mas o seu poder para dinamizar a renda das camadas mais pobres da população é considerável. Para se ter uma ideia desse poder, basta ver os números do crédito consignado. Esses créditos saíram do zero no fim de 2003 e chegaram a R$ 33 bilhões no início de 2006, após o governo federal ter incluído 23 milhões de aposentados do INSS nesse mercado. Calcula-se que 40% dos aposentados e pensionistas do INSS vivem nas zonas rurais dos cerca de 5.500 municípios brasileiros.
Outra falácia muito comum dos neoliberais é a de que esse modelo de benefício premia a ineficiência — como se a imensa maioria dos trabalhadores vivesse mais como cigarra do que como formiga. Roberto Campos, um dos papas do liberalismo no Brasil, chegou ao capricho de contar quantas vezes a Constituição de 1988 fala em garantias — 44 vezes —, em direitos — 76 vezes — e em deveres — 4 vezes. “A Constituição prometeu-nos uma seguridade social sueca com recursos moçambicanos”, escreveu ele em seu livro de memórias, intitulado “A Lanterna na Popa”. Essa é a essência da proposta de “reforma” da Previdência Social. Formulações como “equação fiscal”, “fazer o Estado caber dentro de suas contas” ou “sistema oneroso para o contribuinte”, tão falsas quanto autoritárias, sustentam a propaganda catastrofista sobre o futuro da Previdência Social.
O papel do Estado no sistema
A aposentadoria já é de fato um problema. Mesmo o sistema atual precisa ser revisto para que a Previdência cumpra o seu papel. Mas essa revisão nada tem a ver com a propaganda neoliberal. Os trabalhadores devem se mobilizar para não só impedir retrocessos como lutar pela ampliação do papel do Estado no sistema. Foi esse papel que garantiu, até agora, um sistema de aposentadoria com alguma justiça. Mas isso custou uma revolução. Apesar da “era neoliberal”, na essência há muito do Brasil de Getúlio Vargas no país de hoje — industrializado, geograficamente integrado, predominantemente urbano. Se olharmos para o parque industrial brasileiro lá estão alguns dos monumentos plantados pela “era Vargas” — dilapidados pela “era FHC”.
É o caso da Petrobras. Há também a Companhia Vale do Rio Doce, criada em 1942 para fornecer minério para a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), cujo primeiro alto-forno começou a operar em Volta Redonda em 1946. A CSN, aliás, marcou o começo de tudo. Foi a primeira grande e moderna indústria nacional, a fornecedora brasileira do aço que alguns anos mais tarde estaria em fogões, carros e geladeiras. A usina de Volta Redonda começou a funcionar em conjunto com a Fábrica Nacional de Álcalis, instalada em Cabo Frio, uma indústria de química pesada. Sem a produção dessa empresa, a industrialização seria muito onerosa, possivelmente inviável. Foi nesse processo de modernização do país que surgiu o sistema de pagamento de benefícios pelo INSS. A “reforma” proposta pelos neoliberais representa um retrocesso ao modelo de relações sociais anterior à “era Vargas”.
Intervenções na economia
A Revolução de 1930 marcou uma reviravolta política de enormes dimensões. Do paulista Prudente de Moraes, eleito em 1902, ao paulista Washington Luís, eleito em 1926, vigorou no país a política do “café-com-leite”, em que um presidente do Partido Republicano Paulista (PRP) sucedia a um presidente do Partido Republicano Mineiro (PRM). O voto não era secreto, as fraudes se multiplicavam e os dirigentes políticos que estivessem fora das chaves do PRP e do PRM não tinham nenhuma chance de chegar ao governo. O Brasil ainda era uma grande fazenda — a agropecuária representava cerca de 40% da produção nacional, frente a uma fatia de 10% do PIB para uma indústria localizada quase inteiramente em São Paulo e que produzia bens de consumo para suprir os colonos nas fazendas.
A partir dos anos 1930, tudo começou a mudar rapidamente. Durante a República Velha, as intervenções na economia praticamente se limitavam a facilitar a vida dos fazendeiros. O governo comprava e estocava café dependendo da produção e da flutuação do mercado internacional. Quando o preço do produto caía no exterior, o governo desvalorizava a moeda nacional na tentativa de manter os ganhos dos cafeicultores — uma espécie de “socialização dos prejuízos”, na qual o bolso dos fazendeiros era preservado à custa do empobrecimento do restante da população. Hoje, os neoliberais querem a “reforma” da Previdência Social para que o Estado se limite a facilitar a vida do baronato contemporâneo e de seus sócios do sistema financeiro.