Segundo o historiador Eric Hobsbawn, entre as décadas de 1980 e 1990 uma era se encerrou e outra nova começou. Enquanto um vendaval ia tombando muros da Tchecoslováquia à Sibéria, outro soprava uma massa de capital errante, chamada de “capital da nova era”, que passou a girar pelos países em velocidades jamais vistas e emprestou ao capitalismo nova feição. Na definição do famoso economista norte-americano John Kenneth Galbraith, essa nova feição “tornou o mundo mais vulnerável a manifestações de insanidade”.

Essa trilionária massa de dinheiro opulenta passou a ser o personagem-chave das finanças internacionais nos últimos tempos. Ele está por trás de dez em cada dez acontecimentos importantes da economia mundial. Os tigres asiáticos soçobraram? A Argentina afundou? Rússia e Brasil tremeram? Pois lá estava o “capital da nova era”, onipresente e onisciente, com seus “ataques especulativos” — um personagem para o qual barreiras e fronteiras são meras abstrações.

Essa fabulosa massa especulativa continua vagando pelo mundo diariamente, ao comando de teclas de computador acionadas por operadores ávidos por mais dinheiro, assombrando principalmente as economias débeis. Como toda grande quantia de dinheiro que se preza, o “capital da nova era” aprecia a discrição. Ele se origina nos fundos de pensão — especialmente os dos países centrais — e nos fundos mútuos de investimento — também dos países centrais —, formando uma legião de “investidores” sem face, unidos por instituições financeiras esparramadas pelo mundo afora — os chamados “mercados”.

Para se ter uma ideia do seu crescimento, em 1986 os investimentos em países “em desenvolvimento” somaram US$ 2,4 bilhões — oito anos depois, esses países, eleitos como “mercados emergentes”, já recebiam US$ 180 bilhões. Esses números gigantescos mostram toda a gulodice desse “capital da nova era”: sabia-se que eram “investimentos” arriscados, mas as altas taxas de juros e seu imenso poder compensavam os riscos. Para orientar os “investidores”, os “mercados” criaram as famosas “agências de risco”.

Apesar de toda essa intrincada rede que protege esse capital, nos últimos anos seus feitos ganharam notoriedade pelos efeitos deletérios causados em todo o mundo. Quando a farra especulativa começou a baixar a poeira, porque não encontrava mais contrapartida na economia real (pois, afinal, quem produz valor e excedente para alimentar a especulação é a economia real), surgiu a ameaça de insolvência, isto é, os créditos literalmente apodreceram.

Ao denunciar, no primeiro semestre de 1997, a “exuberância irracional” das bolsas de seu país, o presidente do Fed (o banco central norte-americano), Alan Greenpan, estava constatando o esgotamento desse processo de especulação. A bolha estourou e seus ecos se espalharam por todo o mundo quando a Enron puxou a fila de empresas que protagonizaram verdadeiros escândalos financeiros nos Estados Unidos — mostrando quão grandes se tornaram os “mercados” especulativos.

Lamentavelmente, o Brasil entrou na onda de que uma maré crescente eleva todos os navios. Mas o que se viu foi a “globalização” sob regimes neoliberais espalhando a tendência de estagnação econômica dos países centrais — sobretudo dos Estados Unidos — e gerando crises financeiras. Quando essa massa amorfa de “investimentos” começou a aportar no Brasil, ainda no governo Collor, dizia-se que ela seria como os bandeirantes do passado, que atrás de si trouxeram a colonização do país. Assim, o governo optou por fazer um movimento altamente nocivo: atrair a qualquer custo esse capital especulativo e o chamando investimento estrangeiro direto.

O “plano Collor”, apoiado na política de privatizações e de abertura comercial e financeira, instaurou uma nova era de ajustes empresariais, impulsionada por três projetos do governo: o Programa de Apoio à Capacitação Tecnológica (PCAT), o Programa Brasileiro de Produtividade e Qualidade (PBPQ) e o Programa de Competitividade Industrial (PCI). O “choque de concorrência” proporcionado pela diminuição da proteção cambial e tarifária levou verdadeiros símbolos do capitalismo brasileiro — como Metal Leve, Cofap, Arisco e Bamerindus — a entregarem as chaves para ícones do capitalismo mundial — como Bosch-Siemens, Gessy Lever e Hongkong & Shangai Banking Corporation (HSBC). Esse processo resultou em alterações profundas nos dois pólos do modo de produção capitalista: o capital e o trabalho.

Dados divulgados pelo jornal Folha de S. Paulo dia 03 de outubro de 1999 revelam que a desnacionalização da indústria e do setor de serviços no Brasil havia produzido, do início do “plano real” até então, um aumento do envio de dinheiro pelas multinacionais para fora de US$ 2,5 bilhões em 1994 para US$ 7,2 bilhões. Em 1994, segundo o jornal, apenas 0,38% dos US$ 2,1 bilhões em investimentos externos foram para a compra de empresas já constituídas. Em 1998, o percentual já era de 74,1%. Ou seja: dos US$ 28,7 bilhões que entraram, US$ 21,3 bilhões foram usados para que empresas brasileiras passassem a ter donos estrangeiros.

A desnacionalização da economia brasileira implica em outra armadilha trágica: o Brasil entrou ainda mais no beco sem saída da dívida externa. Com a economia nas mãos das multinacionais, cria-se uma sangria permanente de despesas com dólares por dois caminhos principais: a compra de peças e componentes para produtos apenas montados aqui, de acordo com as ordens das suas matrizes, e um brutal aumento, para sempre, das remessas de lucros e dividendos. Não há como o país arrumar tantos dólares, todos os anos.

No outro polo, essa política empurrou vastos contingentes populacionais para o abismo social. Em vários centros industriais do país, a expulsão de pequenas e médias empresas do mercado criou áreas necrosadas. Antigas indústrias transformaram-se em galpões abandonados — ou ocupados para outros fins teoricamente não econômicos — e levas de desempregados passaram a perambular pelas ruas sem perspectivas, contribuindo para elevar os estratosféricos índices de criminalidade. Eram as vítimas da lógica neoliberal segundo a qual para que alguns possam emergir social e economicamente muitos precisam submergir na pobreza e na miséria. Aqueles que possuem coletes salva-vidas — como sindicatos combativos e legislação trabalhista — são estorvos inadmissíveis.

No mesmo jornal, no dia 13 de junho de 1999, o economista Celso Furtado escreveu que com essa política “o país começou a projetar a imagem de uma economia distorcida que se endivida no exterior para financiar o crescimento do consumo e investimentos especulativos”. “É sabido que essa nova política foi concebida nos Estados Unidos, com a colaboração de técnicos do Fundo Monetário Internacional (FMI)”, escreveu ele.

Furtado explica que os recursos postos à disposição do Brasil aprofundaram o endividamento do país. “Diante dessa perspectiva teríamos de reconhecer que o recurso à moratória seria um mal menor em comparação com a abdicação da responsabilidade de (o país) autogovernar-se”, disse. Já naquelas circunstâncias, na opinião de Furtado, o essencial seria que o entendimento com os credores fosse adequadamente programado nos planos externo e interno. “Os aliados potenciais internos são os grupos industriais esmagados pelas taxas de juros exorbitantes e a classe trabalhadora, vítima do desemprego generalizado. Caberia inspirar-se no capítulo 11 do Código de Bancarrota dos Estados Unidos, conforme recomenda a Unctad. No plano externo, cabe lutar por uma reestruturação do sistema financeiro internacional, no sentido de reduzir a volatilidade dos fluxos de capital a curto prazo”, escreveu.

Furtado, lembrando Lênin, pergunta: o que fazer? “A estratégia a ser seguida comporta uma ação em três frentes. A primeira delas visa reverter o processo de concentração patrimonial e de renda que está na raiz das distorções sociais que caracterizam o Brasil. Nosso país se singulariza por dispor de considerável potencial de solos aráveis não aproveitados, fontes de energia e mão-de-obra sub-ocupada. Esses fatores dificilmente se encontram em outras partes do planeta. (…) A segunda frente a ser abordada é a do atraso nos investimentos no fator humano, atraso que se traduz em extremas disparidades entre salários de especialistas e do operário comum. (…) A terceira frente de ação refere-se à forma de inserção no processo de globalização. Esse processo traduz a prevalência das empresas transnacionais na alocação de recursos raros, decorrência da importância crescente do fator tecnológico na orientação dos investimentos”, responde o próprio Furtado.

Lula enfrentou, mesmo com limitações, a armadilha do capital errante, que agora, no processo do golpe de 2016, retoma o controle da economia brasileira.