O ano de 1996 começou com os preparativos dos trabalhadores para enfrentar a “reforma” da Previdência. O governo tentou atrair alguns dirigentes sindicais para a sua proposta, mas era mais fácil imaginar São Francisco de Assis participando de um torneio de tiro ao pombo do que achar que havia ali alguma boa intenção. A tática do governo era a de criar uma aparência de debate para neutralizar a resistência dos trabalhadores. Mas a mobilização popular impôs a primeira derrota ao governo quando a proposta do relator foi rejeitada no Congresso Nacional. O presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) reagiu imediatamente e retomou a sua proposta original, nomeando um novo relator.

No dia 21 de junho, as centrais sindicais convocaram uma greve geral contra os efeitos da política econômica do governo FHC. Mesmo com todas as dificuldades conjunturais, o protesto foi considerado um sucesso. A repressão policial e a campanha da mídia contra os trabalhadores potencializaram a greve — ao tentar demonstrar o fracasso da paralisação eles mostravam o seu sucesso. O mundo do trabalho vivia momentos de mudanças radicais e os sindicatos, sem forças para reagir à altura, se retraíam. As campanhas salariais, muitas vezes, se resumiam à luta para não perder direitos. O governo havia editado uma Medida Provisória — chamada de MP da desindexação — que, na prática, proibia a concessão de reajuste salarial pela Justiça do Trabalho.

Os trabalhadores voltariam a protestar contra os efeitos do Plano Real no dia 25 de abril. As “reformas” da Previdência e da legislação trabalhista despertavam um aceso debate no país. Brasília foi ocupada por uma multidão de trabalhadores vindos de todo o país. Era o auge da histeria neoliberal. FHC acabara de declarar que herdou “um Estado apodrecido pelo paternalismo da era Vargas”. Isso queria dizer que toda a legislação trabalhista e social estava ameaçada. O primeiro golpe efetivo de FHC na “era Vargas” ocorreu no dia 10 de fevereiro de 1998, quando a “reforma” da Previdência foi aprovada no Congresso Nacional. Mas a direita pagou caro pelo golpe. Naquela data, a CUT comandou o Dia Nacional de Luta contra a Reforma da Previdência. Em todo o país, gigantes manifestações protestaram contra a investida neoliberal.

Nos bastidores da votação a corrupção fervilhou. Tudo virou barganha. A corrupção chegou a detalhes reles. Um deputado negociou a transferência de sua mulher de São Paulo para Brasília. Um caminhão de dinheiro da Caixa Econômica Federal (CEF) foi liberado para a compra de votos. E a coisa foi por aí afora. A direita também usou a repressão para impor a “reforma”. “Se precisar bater, bata. Se precisar atirar, atire. Aqui não vai entrar ninguém. Eu estou aqui”, disse o senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), presidente do Congresso Nacional, aos seguranças chamados para reprimir os trabalhadores. O presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer (PMDB-SP), ameaçou mandar a Polícia Militar atirar nos manifestantes se eles não se retirassem do plenário. FHC e sua mídia abusaram da retórica para atacar os “baderneiros” que protestaram em todo o país.

Em 1998, o Brasil também passaria por um processo importante: a reeleição de FHC à Presidência da República. Numa manobra escandalosa, ele conseguiu alterar a Constituição e assim ganhou mais 4 anos no Palácio do Planalto. No apagar das luzes de 1998, no dia 10 de dezembro, os trabalhadores, convocados pela CUT, ainda fizeram um protesto em Brasília, quando os presidentes do Uruguai, Paraguai e Argentina se encontraram com FHC para um encontro do Mercosul. A região estava dominada pela agenda neoliberal. Uma legião de policiais patrulhou a capital federal durante todo o dia. O Brasil, atado à “globalização” neoliberal que sustentava a ciranda financeira internacional, estava sendo atingido de frente pelo furacão que começou a girar na Ásia em 1997.

A Ásia era apresentada como um paraíso onde tigres poderosos cresciam e afiavam as garras. O furacão começou a girar na Tailândia, com o mercado apostando contra o baht — a moeda local. Finalmente, ele chegou à Rússia e ao Brasil. Para não se afundar, o Brasil agarrou-se à tábua de salvação lançada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), fechando o primeiro acordo em novembro de 1998 (o compromisso seria renovado sucessivamente e valeria até o fim do último contrato assinado por FHC, já em 2005, com Lula na Presidência da República). O modelo econômico hegemônico, delegado a FHC no Brasil, mostrava seus resultados. Prevendo o choque com os trabalhadores, o governo agiu para amedrontar a Justiça do Trabalho.

No auge da “Operação Navalha”, em 2007, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) aplicou punições administrativas aos procuradores regionais da República Luiz Francisco de Souza e Guilherme Schelb, acatando uma representação dirigida havia quase dois anos pelo “cidadão” — termo usado por um editorial do Jornal do Brasil — Eduardo Jorge Caldas Pereira, ex-ministro-chefe da Secretaria da Presidência da República no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC). “Vale lembrar (sic) que, em 2003, (Eduardo Jorge) Caldas Pereira, acusado levianamente de participar do esquema de desvio de recursos das obras do Fórum Trabalhista de São Paulo, representou contra os procuradores no Conselho Superior do Ministério Público”, disse o jornal.

À época, o processo foi simplesmente arquivado — quando, a rigor, deveria ter sido esmiuçado. O país estava mergulhado no caos. Era o auge da histeria neoliberal e o governo agia para amedrontar a Justiça do Trabalho com a finalidade de proteger o “Plano Real” de possíveis efeitos de reajustes salariais. A mídia amplificou ao máximo as calúnias lançadas pelo senador do Partido da Frente Liberal (PFL) da Bahia, Antônio Carlos Magalhães, o ACM — a essa altura um dos principais esteios do governo FHC —, segundo as quais os tribunais trabalhistas eram uma ameaça à “estabilidade econômica”. Truculento, bateu de frente com os magistrados e ameaçou acabar com a Justiça do Trabalho. ACM disse que estava recebendo apoios à ideia e provocou a seguinte resposta do presidente do TST, Wagner Pimenta: “E daí? Hitler e o pastor Jim Jones também tiveram apoio às suas ideias.”

A ordem era não conceder reajuste salarial. ACM desferia uma saraivada de pontapés na legislação trabalhista. A revista Época noticiou que o senador foi escalado por FHC para convencer os juízes trabalhistas a segurar os reajustes. Ele chegou a criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Judiciário, mas a farsa não seguiu adiante. Foi neste contexto que circulou os rumores de que FHC estaria articulando, por meio de Eduardo Jorge e o juiz Nicolau dos Santos Neto — que mais tarde seria um foragido da Justiça —, a indicação de juízes pró-Plano Real em troca de dinheiro para a construção superfaturada do novo prédio do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (TRT-SP).

Mas, para o Jornal do Brasil, o “cidadão” Eduardo Jorge foi injustiçado. “Embora tarde, (Eduardo Jorge) Caldas Pereira e o país assistem agora ao restabelecimento da verdade. Nas palavras de um dos membros do CNMP, Alberto Cascais, a dupla de procuradores, com base em informações não confirmadas, divulgava dados sigilosos obtidos junto à Receita Federal e ao Banco Central e usava a notícia ali criada como fundamento para novos procedimentos”, afirmou o texto.

O jornal Folha de S. Paulo, useiro e vezeiro da prática atribuída pelo Jornal do Brasil aos procuradores punidos, também comentou o assunto em editorial. Sobre o procurador Luiz Francisco de Souza, o jornal diz que ele “notabilizou-se por iniciativas e métodos heterodoxos”. “Filiado ao PT até 1998, já na Procuradoria da República foi seguidamente acusado de mirar finalidades políticas e pessoais em sua atuação, como ao contrabandear o número de um desafeto em lista de pedidos de suspensão judicial de sigilo telefônico”, disse a Folha, sem se olhar no espelho.

No dia 26 de agosto de 1999, ocorreu a Marcha dos 100 Mil, em Brasília, que representou uma grande vitória da unidade entre os partidos de oposição e o Fórum Nacional de Luta Trabalho Terra e Cidadania (FNL). Aquela demonstração histórica de mobilização popular foi o resultado da consolidação da “Frente de Oposição Democrática e Popular”, depois de sucessivas manifestações contra o projeto neoliberal. A Marcha dos 100 Mil culminou com a entrega, ao presidente da Câmara dos Deputados, de 1 milhão e 300 mil assinaturas exigindo a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Telebrás.

No dia 5 de abril de 2001, o FNL promoveu uma manifestação em Brasília que pediu a abertura da CPI da Corrupção e protestou contra as manobras do governo para não cumprir integralmente a sentença do Superior Tribunal Federal (STF) sobre o pagamento de perdas do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Entre os dias 30 de março e 2 de abril de 2001, o FNL coletou assinaturas pedindo a instalação da CPI. Em 2002, o último da “era FHC”, os trabalhadores brasileiros ainda seriam ameaçados pelas “reformas” neoliberais. No dia 21 de março, grandes manifestações protestaram contra o Projeto de Lei que pretendia alterar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). E assim terminou a nefasta ”era FHC”, que agora a direita ressuscitou com o golpe de 2016.