Jean Salem com toda sua modestia e sua grandeza foi o grande especialista nos grandes filósofos materialistas Demócrito, Epicuro e Lucrecio. Um dos eixos de seu trabalho foi a crítica do culto ao sofrimento e a negação da felicidade pelo cristianismo, ao tempo que – de mão com Epicuro – afirmava que somos de hoje e não de amanhã e que a filosofia é a arte de fazer nosso recorrido pela existência, efêmera, o mais sábio e feliz possível.

Uma de suas conferências levava por título a frase do filósofo grego “a morte não é nada para nós”1. A partir de Lucrécio nos explicava que a morte não nos concerne porque durante a vida não existe e quando morremos também. O mais importante, destacava ele, é que o alter ego do medo da morte é o vão desejo de eternidade. Precisamente, nos mostrava, os primeiros filósofos materialistas defendiam que a perseguição de riquezas, o louco desejo de honras e a sucessão de crimes que lhes acompanham, se alimentam do medo da morte. Este importante trabalho, traduzido pela Red Roja, ainda não foi publicado.

Em 2006, se publicou a tradução propiciada pela Red Roja de um livro emblemático “Lênin e a Revolução”, por ocasião da qual realizou uma tornê por diversas cidades do Estado espanhol. É uma obra chave, que recomendo ferventemente2. Seu objetivo era desmontar as raízes do anticomunismo, desvelando as mentiras sobre as quais se erige e reafirmando a vigência da Revolução.

Jean Salem era filho de um grande comunista, Henry Alleg, que se jogou a vida em defesa da independência da Argélia e sofreu terríveis torturas detido nas prisões do Estado francês acusado de “reconstituição de organização dissolvida (o Partido Comunista Argelino) e atentado contra a segurança do Estado”. Seu testemunho, escrito clandestinamente no cárcere “A Questão”3, é um dos legados mais contundentes contra o colonialismo e o terrorismo de Estado.

A obra completa de Jean Salem pode ser consultada em sua página na rede: http://jeansalem.fr/fr_FR/

Se bem que a morte propriamente “não é nada para nós”, a desaparição de gigantes como Jean Salem bloqueia o pensamento apreendido pelo irracional intento de negar a perda.

Reproduzo por ele as palavras sobre Jean Salem, e sobre outro dos grandes camaradas falecidos, Georges Labica, escritas por Miguel Urbano outro grande amigo e companheiro de combate.

A sabedoria e a Revolução4

Jean Salem é um humanista que ascendeu aos escalões daquele gênero raríssimo da cultura, a integralidade, que lhe permite contemplar e interpretar o mundo, tentar compreender a aventura humana e lutar pela transformação da vida.

Filósofo marxista, economista, professor de História de Filosofia Grega, dirigia na Sorbonne desde 2005 um Seminário sobre Marx no século XXI, seguido por vídeo na Internet por mais de 30.000 pessoas.

Em seu novo livro, agora lançado por París5, encontramos a síntese de seu pensamento e o retrato do pensador, do combatente comunista e do homem.

«Sagesses pour un monde disloqué» (Sabedorias para um mundo deslocado) é uma fascinante compilação de ensaios, entrevistas, comunicações, conferências, de um filósofo revolucionário que, através da busca serena do encontro consigo mesmo, descende à raízes do sentido da vida.

Há épocas, recorda, em que se deprecia a política porque ela mesma se tornou depreciável. A nossa é uma dessas épocas. As engrenagens do sistema de poder do capitalismo têm dado lugar a uma geração de políticos repugnantes. Mas é sempre possível remar contra a maré.

Jean Salem conta como nos últimos anos rompeu com a erudição acadêmica e recorreu ao mundo e, com alegria e proveito, tomou contato com gente muito diferente em conferências e encontros na Europa, Ásia, Oceania, África, E.U.A, ou na América Latina.

Consciente de que se assiste hoje ao ascenso de uma onda de irracionalismo, seja religioso ou não, recorda que na História não tem surgido uma ideia importante que não tenha em sua  origem um grego.

É compreensível portanto que a primeira parte de seu livro seja uma demonstração dessa evidência, esquecida ou ignorada.

Sendo a busca da felicidade a suprema aspiração do ser humano, Salem nos recorda que os materialistas gregos foram pioneiros na defesa de um hedonismo que privilegiava o prazer como inseparável da alegria de uma vida breve.

Esses materialistas da Antiguidade tiveram a coragem e a lucidez de afirmar a sem razão do terror da morte, porque não há sofrimento para além dela.

As igrejas, sobretudo as cristãs, fizeram todo o possível para satanizar o plazer, insistindo em que a felicidade humana somente era possível no reino dos céus após a morte.

Em sua  denúncia do obscurantismo religioso, Leibniz, Schopenhauer e Feuerbach, destaca Salem, muito devem a Epicuro e Lucrécio. Eles sabíam ademais estabelecer uma fronteira muito nítida entre o prazer sábio, princípio e fim de uma vida feliz, e a depravação e os vícios que destroem o ser humano.

A segunda parte de «Sagesses pour un temps disloqué» trata o tema da felicidade sob uma perspectiva política.

Para Salem, a felicidade -o soberano bem dos epicuros gregos-  é possível também em um contexto de grandes crises, de calamidades que alcançam a humanidade.

Nesta terrível crises de civilização, quando um sistema de poder monstruoso aspira ao domínio universal e perpétuo sobre a Terra, quando a simples ideia de revolta é criminalizada, quando a resistência à opressão é qualificada de terrorismo- a felicidade é também alcançável. Salem sugere que a encontremos nos caminhos da luta, «na luta por uma causa justa que nos supera, e que sabemos que é justa».

Interrogado numa entrevista sobre qual figura, antiga ou contemporânea, encarna, em sua  opinião, o sábio epicuro, cita, entre outros, seu pai, o escritor Henri Alleg, héroi da Argélia e da França. Barbaramente torturado, resistiu à tortura e a denunciou em um livro inesquecível, «a Questão». Nesse revolucionário firme e sereno identifica «a figura do resistente, daquele que considerando inaceitável o desvio de sua linha, daquele que é imune aos desejos mesquinhos, aqui está- respondeu – a figura do sábio antigo».

Sofrendo, mantendo a coerência e a fidelidade a um ideário, é também possível -por absurdo que pareça- alcançar um estado de bem estar interior.

Um dos capítulos mais belos do livro é o dedicado a Georges Labica, um gigante da filosofia, revolucionário e comunista exemplar.

Jean Salem viu nele um combatente para o qual a harmonia entre as palavras e os atos era perfeita. Evoca intervenções suas em Encontros Internacionais em que falou com a dureza, o brilho e o estoicismo de Sócrates. Labica foi um internacionalista que «deixou o Partido segundo afirmou- para continuar sendo comunista».

Não é possível em um texto como este transmitir a riqueza conceitual e o significado da reflexão de Jean Salem sobre as grandes lutas de nosso tempo nos capítulos da terceira parte das «Sagesses».

Ele consegue lançar uma difícil ponte entre a sabedoria dos materialistas gregos e os grandes desafios revolucionários que surgem como resposta dos povos às grandes crises.

As páginas sobre a Revolução Russa de Outubre, a utilidade de reler Lênin para preparar o futuro, os capítulos sobre o marxismo na França e a atualidade de Marx, são uma fonte caudalosa de preciosos ensinamentos para as novas gerações.

Tal como os materialistas gregos, que o inspiraram, Jean Salem viveu com intensidade e alegria em busca da felicidade do possível. A revolução é para ele um objetivo e um infinito.

As últimas linhas de seu emotivo livro encerram uma mensagem de confiança na humanidade. Nos convita a não esquecer que uma época «maldita, equivocada, acaba sempre, como todas as outras, por finalizar. No tocante a nossa época isso não deve, ademais, tardar».

Traduzido por Cezar Xavier

[1] A conferência completa para quem possa compreender francês está aqui: La mort n’est rien pour nous.
Conférence de Jean Salem. https://vimeo.com/24922260
[2] Aqui se pode baixar http://www.forocomunista.com/t31995-lenin-y-la-revolucion-libro-de-jean-salem-ano-2006-
formato-pdf
[3] Uma entrevista ao autor sobre o livro, prologado por Alfonso Sastre, pode encontrar-se aqui:
http://www.rebelion.org/noticia.php?id=114500
[4] http://redroja.net/index.php/libros/2031-la-sabiduria-y-la-revolucion
[5] Jean Salem,« Sagesses pour un monde disloqué,» Editions Delga, Paris 2013, 313 pgs