Além de sua dedicação à teoria marxista e social, Marta também teve atuação política destacada. Participou do governo de Salvador Allende entre 1970 e 1973. Entre os anos de 2002 e 2006 atuou como conselheira do ex-presidente Hugo Chávez.

Marta Harnecker nunca renunciou ao pensamento revolucionário e nem à luta de classes como fator essencial do desenvolvimento da sociedade. Muitos de seus livros se tornaram manuais de formação política, desde os anos 1970, para o trabalho de base na América Latina e no mundo. Psicóloga, ela aprofundou sua formação no marxismo durante os anos que viveu em Paris, na década de 60, sob a orientação de Louis Althusser. Naquela época, registrou seus primeiros escritos teóricos marxistas, que foram reunidos em “Os conceitos elementares do materialismo histórico”, livro publicado em dezenas de países.

Reproduzimos, abaixo, entrevista que Marta Harnecker concedeu ao jornalista Tassos Tsakiroglou para o diário grego Efimerida ton Syntakton, quando esteve no país para participar da Conferência Internacional “150 anos de publicação de O Capital, de Marx: Reflexões para o século 21”. O evento realizou-se em Atenas, de 14 a 15 de janeiro de 2017 e foi organizado pela revista de teoria marxista Theseis em colaboração com a fundação Rosa Luxemburg.

Tassos Tsakiroglou: A senhora vem à Grécia para uma conferência sobre a atualização do sistema teórico de Marx. Em meio à atual severa crise financeira internacional, que lições podemos tirar da crítica de Marx à economia política?
Marta Harnecker: Penso que é incrível como Marx previu acertadamente o que aconteceria no mundo em relação ao desenvolvimento do modo de produção capitalista. Para mencionar apenas alguns dos acertos: Marx anunciou a tendência à concentração da produção cada vez em número menor de mãos (é a atual transnacionalização da economia); que a ciência seria cada vez mais aplicada nos processos de produção (a robótica atual e a agricultura transgênica), o entrelaçamento de todos os povos nas redes do mercado mundial, e com isso o crescimento do caráter internacional do regime  capitalista (a globalização atual) e há muitas outras previsões perfeitamente certas. Marx pôde prever que tudo isso aconteceria como efetivamente aconteceu porque procurou e encontrou a lógica do capital; ao encontrá-la, passou a dedicar-se a dar aos trabalhadores os instrumentos teóricos para que se libertassem.

Mas não devemos de modo algum confundir o estudo do modo de produção capitalista – que é estudo de um objeto teórico abstrato, com o estudo de formações sociais concretas historicamente determinadas e da luta de classes que se trava dentro dessas formações. Não levar em conta esses diferentes níveis de abstração e aplicar mecanicamente certos conceitos de Marx, como se a realidade não tivesse mudado nesses 150 anos, levou muitos de nossos intelectuais e quadros políticos marxistas latino-americanos a enjaular nossa realidade dentro das noções clássicas, o que os incapacita para compreender os novos fenômenos que ocorriam em nossa religião e não correspondiam ‘exatamente’ àquelas categorias.

Minha palestra nesse evento procurará explorar esses novos fenômenos, para tentar trazer à luz algumas reflexões aplicáveis ao que sucedeu em nossa região nas últimas décadas, para mostrar em que pontos nos aproximamos e em que pontos diferimos do que Marx escreveu em O Capital. 

Uma das coisas que realmente mudaram do tempo de Marx até hoje é a situação da classe trabalhadora no mundo hoje, especialmente na América Latina. Já não se encontram grande número de operários concentrados em bairros específicos, como na época de Marx. Isso se deve, em grande medida, à implementação de medidas econômicas neoliberais, como a precarização do trabalho, a subcontratação e a estratégia de fragmentar os grupos sociais, implementada deliberadamente para dividir internamente as grandes concentrações de trabalhadores.

O destaque que foi dado, sem qualquer crítica, à classe operária industrial nos levou (levou os marxistas latino-americanos) a não considerar devidamente as especificidades de nosso sujeito social revolucionário, e a ignorar as reflexões construídas por pensadores latino-americanos como Mariátegui e Haya de la Torre, sobre esses temas. Durante muitos anos não fomos capazes de perceber o papel que cristãos e indígenas podiam ter em nossas revoluções.

O fosso que separa os 99% e o 1% e a crescente desigualdade social fez reviver o conceito de luta de classes, que por tanto tempo supôs-se que estivesse morta e sepultada. Mesmo assim, o que se vê é a dificuldade da esquerda, para extrair as vantagens dessa realidade e elaborar alternativa real e convincente ao capitalismo.
MH: Mas será que foi a luta de classes que morreu? Ou o que aconteceu é não se compreendeu que os processos históricos desenvolvem-se como ondas? Sempre houve períodos de calma, quando parece que a luta de classes desapareceu; depois vêm outros períodos, quando os setores sociais mais oprimidos começam a mover-se, construindo massivas expressões de recusa e rejeição, como temos visto nas últimas décadas em várias partes do mundo. 

Você fala de uma incapacidade que haveria na esquerda, para extrair vantagens dessa realidade. Acho é está generalizando demais, pelo menos no que tenha a ver com a esquerda latino-americana. 

Os horrores do neoliberalismo – aumento da fome e da miséria, desigualdade crescente na distribuição da riqueza, destruição da natureza, perda crescente da soberania nacional em vários pontos – criaram em nossa região uma situação que está empurrando as pessoas a reagir, a resistir, no começo, para depois passar à ofensiva, tornando possível que, em muitos de nossos países, elejam-se candidatos presidenciais que têm programas antiliberais.

Surgiu uma nova correlação de forças, o que tornou mais difícil, para os EUA, alcançar seus objetivos. Mas, como se poderia adivinhar que aconteceria, os governos desses países jamais desistiram de tentar deter os avanços de nossos processos. E esses esforços deles tiveram importantes êxitos nos últimos anos, extraindo vantagens das grandes dificuldades econômicas que temos enfrentado por causa da crise do capitalismo e, especialmente, por causa da queda nos preços das matérias-primas. Instalaram-se governos ultraliberais na Argentina e no Brasil, e tentam sem parar deter o avanço da Revolução Bolivariana na Venezuela.

Mas, embora realmente se vejam alguns retrocessos hoje na região, ninguém pode negar que há enorme diferença entre a Venezuela de antes de Hugo Chávez e a América Latina que ele nos deixou como herança.

Um olhar objetivo veria logo importantes avanços em alguns de nossos países, justamente os mais progressistas. Esses países tiveram de “inventar, para não cometer erros”, como Simón Rodríguez, tutor de Simón Bolívar, ensinava a fazer. Também falarei disso na minha palestra aqui.

Do ponto de vista econômico, há países governados pela esquerda que alcançaram êxito econômico, mesmo em plena crise econômica mundial: por exemplo, Bolívia, cujas realizações nesse terreno foram notáveis e mundialmente reconhecidas. Foram alcançadas graças à intervenção do Estado na economia e ao uso do excedente obtido nas empresas estatais para resolver problemas dos setores mais pobres.

Em muitos de seus escritos, a senhora examina a trajetória de vários governos progressistas latino-americanos, no desenvolvimento de modelos alternativos ao capitalismo. Como estima o curso dessa ação, especialmente no desenvolvimento do Brasil e da Venezuela?
MH: Acho que temos de começar por distinguir o que aconteceu no Brasil, com os governos de Lula e de Dilma, e o que aconteceu na Venezuela. Embora os dois tenham em comum as lutas pela igualdade social, a democratização política, a soberania nacional e a integração regional, a correlação das forças no Brasil não permitiu mudança alguma nas regras do jogo institucional.

Poderíamos dizer que no Brasil, os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) deram ênfase aos objetivos sociais, mas não puderam destruir a agenda neoliberal. Na Venezuela, por sua vez, a ação do governo de Chávez estava focada em construir uma nova sociedade, uma alternativa ao capitalismo – o Socialismo do Século 21. Para fazê-lo, Chávez teve de partir do aparato estatal que herdou, mas o primeiro passo que promoveu foi uma mudança nas regras do jogo institucional: gerou uma nova Constituição, na qual o protagonismo do povo é definido como essencial.

A necessidade desse protagonismo do povo é o elemento que distingue a experiência venezuelana de outras propostas na direção de um socialismo democrático; de outras experiências socialistas nas quais o Estado era encarregado de resolver os p problemas e o povo limitava-se a receber os benefícios que o Estado outorgava.

É o que sucedeu no Brasil com o plano “Bolsa Família”. Milhões de famílias pobres brasileiras receberam passivamente um presente do Estado. Uma vez resolvidas algumas necessidades básicas, apareceram novas necessidades que não puderam ser satisfeitas. A oposição tirou vantagem dessa situação para organizar uma mobilização contra o governo e unificar suas forças no Parlamento, o que criou condições para o golpe de Estado parlamentar que logo sobreveio.

A orientação do governo de Chávez foi completamente diferente. Estava convencido de que nenhum socialismo poderia ser imposto de cima para baixo; socialismo, só se o povo o construísse. Por isso cuidou de promover diferentes maneiras de organizar as pessoas – espaços onde pudessem discutir suas necessidades e planificar soluções com a ajuda do Estado – como Conselhos Comunais, Conselhos de Trabalhadores, as Comunas, as Missões, etc. Nesse processo, os mendigos de ontem poderiam transformar-se em pessoas capazes de buscar e construir soluções elas mesmas. Esses são os setores que apoiaram Chávez e seu atual sucessor, o presidente Maduro.

Mas como a senhora explicaria a situação econômica caótica na Venezuela?
MH: Tirando vantagem da situação de vácuo de liderança criado pela morte de Chávez, aumentaram os ataques contra o processo revolucionário Bolivariano; e aumentaram dentro e também fora do país. Dado que seria muito difícil promover outro golpe de estado contra Maduro – que cuidou de dar prosseguimento ao legado de Chávez – a oposição intensificou a guerra econômica iniciada durante o processo anterior: o governo venezuelano recebeu, em apenas três anos, a mesma quantidade de ataques que Chávez recebeu em 14 anos. Um dos objetivos dessa guerra foi boicotar o acesso das pessoas a alimentos básicos a preços subsidiados, estabelecido desde 2003 pela Misión Mercal, com resultados significativos, que efetivamente garantiram o direito do povo de ter acesso à comida pela qual podia pagar.

O que está acontecendo na Venezuela é muito semelhante ao que aconteceu no Chile para desestabilizar o governo de Salvador Allende (manipulação do dólar no mercado negro, paralisação de certas indústrias, intenção deliberada de produzir medo entre os investidores estrangeiros e nacionais, disseminação da ideia de país em bancarrota). 

Segundo a economista venezuelana Pascualina Curcio, aplicaram-se duas principais estratégias na Venezuela para produzir descontentamento e revolta entre a população: inflação induzida e escassez orquestrada. Consegue isso, de um lado, mediante a manipulação da taxa de câmbio no mercado paralelo e ilegal, o que sintomaticamente aumenta exponencialmente nos meses que antecedem as eleições; e de outro lado, mediante a manipulação dos mecanismos de distribuição de bens essenciais e contrabando nas fronteiras, para criar carências artificiais.

Monopólios importadores e banqueiros – que não produzem bem algum, mas acumulam ganhos extraordinários, só com a diferença entre o que compram fora e vendem dentro do país, estabelecendo por via de oligopólio os preços dos bens que eles mesmos importam (bens que atendem necessidades básicas, como alimentos, e itens necessários para produzir outros bens e para o transporte), usando a taxa de câmbio paralela, muito mais alta (14,5 vezes superior) ao valor real dos bens calculado em moeda nacional. Esse aumento nos preços dos bens necessários não causa danos só aos mais pobres, mas também afeta negativamente setores da burguesia que produzem bens de uso comum.

Além disso, para aumentar a insatisfação popular, eles criam carências artificiais, ao não pôr aqueles bens à venda de modo regular, nos locais adequados ou em quantidade suficiente.

Esses ataques aconteceram em terreno fértil, não só por causa da queda nos preços do petróleo, mas também pela debilidade das políticas econômicas adotadas pelo governo, que não permitiram qualquer preparação que possibilitasse que o país enfrentasse adequadamente a baixa do preço do petróleo. A isso se acrescenta a política cambial que favorece as importações, desestimulando a produção nacional.

Por outra parte, ninguém pode negar que um setor da burguesia venezuelana e um setor corrupto da burocracia estatal, estão tirando vantagem dessa situação, com o objetivo de aprofundar a crise atual e gerar condições para tentar derrubar o governo de Maduro. 

Seja como for, não acho que a atual crise econômica na Venezuela seja prova do fracasso do projeto de Chávez, de criar uma sociedade alternativa ao capitalismo. Assim como ninguém pode criticar a receita de um bolo se a cozinheira deixou o bolo em formo quente demais, até queimar, assim também não faz sentido criticar a proposta de Chávez sem analisar de o modo como foi aplicado em termos práticos foi coerente com os fundamentos teóricos. 

Notícias recentes parecem ser positivas. Recentemente, o governo alcançou um êxito importante: graças à boa gestão governamental, o país obteve um acordo internacional para aumentar o preço do petróleo. O governo também está promovendo ativamente a produção nacional, convocando todos os setores empresariais venezuelanos que queiram contribuir. E parece que já se tomam medidas severas contra a burocracia corrupta.

A senhora não está sendo otimista demais? Não lhe parece que os conservadores vão ganhando terreno dia a dia?
MH: Sou otimista porque acredito que o momento histórico está contra as forças conservadoras. Elas iludem momentaneamente o povo com promessas que não cumprem, mas isso não durará para sempre, porque é contrário ao que a realidade diz e prova.

O tempo histórico está a nosso favor. O que nos ajuda nessa luta contra as forças conservadoras é que o tipo de sociedade que propomos e estamos começando a construir respondem objetivamente ao interesse da imensa maioria da população, muito diferente do que o que as forças conservadoras propõem e sempre fizeram só beneficia as elites.

A grande pergunta poderia ser “Por que, se nosso projeto visa a favorecer a maioria, não recebe suficiente apoio social e eleitoral?”

A explicação que temos dado repetidas vezes é que as forças conservadoras usam os veículos das empresas de comunicação para disseminar uma visão deformada do nosso projeto. Mas muitas vezes nós mesmos somos responsáveis pelo modo como nosso projeto é percebido: se acontece assim, é porque não soubemos nos explicar em termos claros, que todos os setores da população consigam ouvir e entender. E, o pior de tudo, às vezes não vivemos vidas coerentes com nosso projeto. Pregamos a democracia, mas agimos de modo autoritário; queremos construir uma sociedade solidária, mas somos egoístas; pregamos a defesa da natureza, mas somos consumistas.

Outra coisa que me torna otimista, é que estou convencida de que o que Chávez semeou marcou muita gente dos setores populares e os fez amadurecer, como posso dar meu testemunho pessoal, dos muitos anos que vivi na Venezuela. Creio que todas essas pessoas que tiveram oportunidade de estudar, pensar, participar, construir, tomar decisões, cuja autoestima pode afinal florescer, e são hoje seres humanos mais ricos, saberão defender o processo na Venezuela.

O processo pode ter cometido erros e pode ainda ter pontos fracos. Mas ninguém pode negar que foi criado, na Venezuela, um novo sujeito revolucionário.