O presidente da Fundação Maurício Grabois, Renato Rabelo, coordenou a terceira mesa da webconferência Diálogos, Vida e Democracia, promovido por oito fundações partidárias: a Fundação Perseu Abramo (PT), a Fundação Lauro Campos-Marielle Franco (PSol), a Fundação João Mangabeira (PSB), a Fundação Leonel Brizola-Alberto Pasqualini (PDT), a Fundação Claudio Campos (Cidadania), a Fundação Ordem Social (PROS) e a Fundação Astrojildo Pereira (PPS). O tema proposto “O Brasil na Crise Mundial” foi debatido pelos diplomatas Celso Amorim, ex-ministro de Relações Exteriores e ex-ministro da Defesa, e Rubens Ricupero, ex-ministro do meio ambiente e da Amazônia e ex-ministro da Fazenda, assim como o sociólogo Luís Fernandes, ex-secretário executivo de Ciência e Tecnologia e ex-presidente da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos). 

Renato questionou que, com a pandemia, qual seria o impacto desta crise sanitária de vulto sobre o sistema internacional. Ele lembrou que, com o declínio da economia mundial desde a crise de 2008, com a pandemia, muitos países passam à depressão econômica. Com isso, aprofunda-se a transição no sistema internacional com tendência a um mundo multipolar com destaque para a liderança da China e declínio dos EUA.

Renato afirmou que muitos especialistas falam numa recuperação mais acelerada da China, pelo modo como lidou com a pandemia. Ele indaga se o eixo do mundo se deslocaria para o oriente e se o século atual seria da China.

Renato destacou a importância do Brasil ter uma relação maior com a OMS, podendo dar uma grande contribuição, embora se afasta disso indo no sentido contrário.

O dirigente também mencionou a carta assinada por diplomatas responsáveis pela política externa brasileira desde a redemocratização, e que defende uma reconstrução desta estratégia nacional sistematicamente violada no atual governo. Segundo ele, os princípios constitucionais orientadores da politica externa do Brasil têm sido violados, tais como, autodeterminação dos povos, não intervenção, defesa da paz, solução pacífica dos conflitos, entre outros seis. “Não se concilia independência nacional com subordinação a outro governo”, concluiu.

Diplomacia da vergonha e submissão

Celso Amorim também acredita que o sistema internacional vai enfrentar grande recessão e até depressão econômica em alguns países. Para ele, um dos grandes impactos da pandemia no sistema internacional são as tendências de natureza de isolamento “no mal sentido”, afinal, o isolamento, hoje, é sinônimo de salvar vidas. O isolamento de países se deve às políticas anticientíficas contra a pandemia, que ficaram explícitas neste momento, colocando em risco fronteiras de outros países e tornando o Brasil, por exemplo, irrelevante na tomada coletiva de decisões sobre o assunto.

Por outro lado, ele acredita numa consciência crescente da importância da solidariedade e do agir em conjunto. “Não se avançará em vacinas para uma nova pandemia, ou até mesmo esta, se não houver cooperação internacional”, defendeu.

Sobre o governo Bolsonaro, ele disse que a não participação do Brasil numa reunião de vários países, convocado pela primeira ministra alemã, Angela Merkel, “fala muito do lugar do Brasil no mundo, que sempre exerceu forte liderança”. Ele ressaltou que Brasil já ocupou muitos cargos importantes no mundo, principalmente na área da saúde. Ele citou  uma das mais importantes conquistas, em termos sociais, que foi a declaração de Doha sobre propriedade intelectual e saúde, com liberação de licença compulsória para países em desenvolvimento. “Foi uma grande façanha em que o Brasil teve uma grande liderança, inspiradora e aceita mundialmente”, celebrou. Naquela ocasião, em que o ministro da Saúde era José Serra, foi criado ainda a Unitaid, um organismo internacional para acesso a medicamentos.

Ele criticou também o fato do Brasil não apoiar uma resolução por iniciativa do México, que 179 países co-patrocinaram. A reboque dos Estados Unidos, o governo Bolsonaro foi um dos 14 governos em todo o mundo que não apoiou a proposta de ação global para acelerar rapidamente o desenvolvimento, a produção e o acesso à remédios, vacinas e equipamentos médicos para fazer frente à covid-19. “O Brasil não co-patrocinou porque os EUA pediram. Trump elegeu a OMS (Organização Mundial da Saúde) como bode expiatório, assim como a China, pela má administração dele sobre a pandemia. Com isso, o Brasil vai ocupando uma situação de pária. Tenho razões para acreditar que se o governo americano fosse outro não haveria tal submissão.”

Amorim acredita que a pandemia de covid-19 será um acelerador de tendências, em que haverá a ultrapassagem dos EUA pela China, economicamente. Assim como os EUA serão ultrapassados em termos de poder brando, aquela influência que se exerce ao atrair outros países para suas ideias. Ele ressalta que a China sempre foi discreta em termos de atuação internacional, mas começa a exercer uma influência natural, desde antes da pandemia, quando financiou grandes projetos de infraestrutura pelo mundo.

Na OMS, tanto Brasil, como Índia, exerceram uma ação estratégica que levou a mudança nos padrões de negociação. O G4 tradicional composto por União Europeia, EUA, Canadá e Japão, em Doha, foi composto por União Europeia, EUA, Índia e Brasil, sem participação da China. Agora, a China mostrou na pandemia cooperação técnica com países como a Itália, por exemplo.

Ele acredita que o pós-pandemia deve impulsionar um sentimento de “cada um por si”, de governos de ultradireita, assim como uma consciência da solidariedade. Neste sentido, ele acredita que a China terá um grande papel.

Por outro lado, Amorim acredita que deve se reforçar a estratégia de defesa baseada no tripé China, Rússia e EUA. Ele diz que, embora não esteja entre os mais ricos, a Rússia conta com uma política externa muito assertiva, além de ser uma potência militar, herança do período soviético. “Como fica a União Europeia e a América Latina, não sei”. Ele acredita que a União Europeia continuará a ter peso no equilíbrio de uma guerra fria, e que os boatos de sua “morte” são exagerados.

Amorim diz que a “diplomacia da vergonha” implementada pelo Brasil precisa ser superada para que entremos no circuito e exerçamos influência. Para ele, o Brasil tem que ter alianças com África, América Latina, BRICS e Ásia. “Há muitas incertezas em relação ao quadro pós-pandemia. Não sabemos se haverá convulsões sociais para transformações positivas ou mais repressão”.

Esta é a maior crise que o mundo está vivendo depois da 2a. guerra, diz ele, com a peculiaridade de que nenhum país escapou. Ele acha difícil fazer previsões num contexto desse.

Amorim lembrou o respeito internacional que o Brasil obteve desde o governo Sarney, que já mantivera a prioridade latina, com relações próximas a Cuba e Argentina. Os direitos humanos passaram a estar na agenda do Brasil. Collor também teve um papel indiscutível na luta em defesa do meio ambiente, quando promoveu a Eco 92. “Havia respeito dos organismos internacionais ao Brasil”.

De acordo com ele, este governo tem uma total deturpação do exercício de soberania contra quem o pressiona, como é o caso dos EUA. “Vejo a política externa e não entende se trata-se de uma loucura a serviço do oportunismo ou oportunismo a serviço da loucura”.

A reação da diplomacia brasileira ao emitir a nota durante esta pandemia considera que, não apenas o Brasil está se comportando como pária, mas como uma ameaça sanitária a seus vizinhos. “O Paraguai que não tem divergência política com este governo, mas está abrindo valas para impedir a entrada de brasileiros”.

Sobre a expulsão de diplomatas venezuelanos às véspera de um atentado de mercenários americanos em território venezuelano, que deu errado, Amorim diz que feito trata-se de absurdo feito “com método”. Para ele, a crise artificial com a embaixada venezuelana em Brasília parece cortina de fumaça pra intoxicar venezuelanos e distraí-los de uma ameaça maior em seu próprio território.

Outro assunto que choca Amorim, é que os militares defendiam a retomada da produção na área industrial, até recentemente, e agora estão comprometidos com um governo entreguista. Ele mencionou que o chefe da Casa Civil desse governo é o mesmo general chefe do estado maior do Exército, o que o faz ter uma ligação orgânica com as políticas de Bolsonaro. “Acho que deviam sair do governo. Seria um sinal. Os militares estão criando uma nódoa para o longo prazo. Mesmo quando os governos militares tiveram alinhamento com os EUA, não foi dessa forma”, defendeu ele. “Fico penalizado com a estima que criei com várias autoridades militares e vejo que se meteram numa arapuca”, lamentou.

“Vamos superar isso, mas vai dar muito trabalho para reconstruir a credibilidade e confiança internacional. O Brasil sempre foi respeitado. Os líderes africanos diziam que não sabiam o que fazer, mas que seguiriam a Índia e Brasil em questões importantes”.

Partidos e Congresso precisam reagir

Ricúpero fez uma intervenção prática, em que procurou pensar em ações possíveis diante do grave quadro da política externa do governo Bolsonaro. Ele destacou o fato do ciclo de webconferências ser realizado pelo conjunto de fundações partidárias. “Sentia falta desses eventos de participação das organizações que fazem a coisa acontecer, como partidos.”

Ele observa que o Brasil não está em condições de participar das ações internacionais, mas agrava isolamento e fica caudatário dos extremismos do governo dos EUA.

Existe possibilidade de ação e resistência ao que há de pior na politica externa brasileira, em sua opinião. Ele mencionou a carta assinada por diplomatas e personalidades que encarnam a totalidade da diplomacia brasileira em defesa dos princípios constitucionais da política externa. “Só Santiago Dantas, Azeredo da Silveira, e os três diplomatas que são funcionários da ativa e não quisemos constranger, não assinaram esse documento”, ressaltou.

Ricúpero disse que começou como assessor de Tancredo Neves e, graças a ele, ficou no governo de Sarney, que ele nem conhecia. “No final de 1984, Tancredo dizia que o único ponto de consenso que une todas as correntes de oposição contra a ditadura militar, era a política externa conduzida pelo Itamaraty, mesmo durante o governo militar, com Ramiro Saraiva Guerreiro, do governo Figueiredo, que estava muito próxima da política externa independente”.

Esse consenso se exprime no documento divulgado pelos chanceleres pré-bolsonarismo. Ali, eles insistem nos dez princípios básicos, do artigo quarto da Constituição, a única que ele conhece que explicita princípios orientadores da política externa. Também condena a atual política externa que viola e contraria os princípios da constituição.

Mas Ricúpero ressalta que, quem deve exercer o controle da política externa são o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional. “Em termos práticos, vocês [os partidos] têm que influenciar o Congresso em sua inércia”. Ele se indigna com o fato do deputado Eduardo Bolsonaro ter sido eleito como presidente da Comissão de Políticas Exteriores da Câmara, sem sequer haver renovação. Para ele, este é um “autêntico escândalo”. “Um homem que toma, acintosamente, as posições que toma, sem sequer ser objeto de uma moção de censura, e continua como presidente da comissão. Como a casa dos deputados aceita isso?”

Na opinião de Ricúpero, o Congresso tem que avocar para si o exame de certas medidas temerárias que não receberam nenhum tipo de debate. A vinculação automática do Brasil à política externa dos EUA, para ele, é a maior violação da independência e da soberania. No entanto, a imprensa chega a considerar isso positivo e inocente. Ele citou o caso do Valor Econômico, que chegou a comemorar.

Ricúpero define que não há inocência em alianças como essa com os Estados Unidos. “Uma aliança não é a mesma coisa que uma parceria, amizade, afinidade. Aliança é sempre contra alguém”. Ele salientou que uma aliança é assinada em época de guerra ou prevenindo-a. Lembrou que as únicas alianças do Brasil foram a Tríplice contra o Paraguai, e em 1942, contra o nazifascismo, quando assinamos acordo de cooperação militar com os americanos.

Para ele, ninguém está avaliando institucionalmente as consequências que esse acordo implica e produz. “Compramos a agenda de segurança americana sem interesse nacional nenhum. Não somos ameaçados pelo Irã, pela China ou pela Rússia. Pelo contrário! Esses países ocupam lugar privilegiado na diplomacia e nas negociações comerciais brasileiras. O Irã vai cobrar do Brasil se os EUA entrarem em conflito armado com eles, mesmo que não mande tropas.”, alertou.

Ele citou o caso do Iraque, em que empregados da empreiteira Mendes Júnior tornaram-se reféns de Sadam Roussein, por ocasião da Guerra do Golfo.

Para ele, o Congresso precisa fazer o debate sobre isso. “Não houve nenhum! Algo dessa enormidade, com assinatura de acordos… A Constituição dá ao Congresso atribuições nessa matéria.”

Ricúpero acredita que o mundo vai tirar disso tudo a necessidade de reforçar na OMS um sistema para detectar pandemias e combatê-las ainda no início. “O começo do incêndio na floresta é fácil debelar, depois é incontrolável”, comparou.

Ele também opinou que seria um “erro fatal” querer que a política mundial depois da pandemia torne-se uma guerra fria entre EUA e China. “A China não tem as pretensões da União Soviética. Suas pretensões sempre foram mais limitadas. “As ameaças do futuro dos EUA não virão da China, mas de questões transnacionais: como armas, pandemias, terrorismo, economia”.

Ricúpero acredita que a política externa do Brasil tem todos os motivos para retomar relações com a América Latina. Tanto o México, como a Argentina, são dois governos mais independentes e afinados com aspirações de justiça social.

“Não são apenas nações asiáticas que tiveram êxito em conter a pandemia, mas a Argentina está nos dando lições e ganhando não de sete a um, mas de dez a zero do Brasil. Com o lockdown no início da chegada do vírus, a Argentina tem um número de mortes de um décimo, não do Brasil, mas do estado de São Paulo”, afirmou. Ele salientou a diferença que faz a qualidade da liderança.

Ele também considera importante para a política externa brasileira “ressuscitar” os BRICS (grupo estratégico que inclui emergentes como o Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul). “O grupo existe mas perdeu seu espírito e o Brasil sempre foi um país proativo no grupo de países em desenvolvimento”, acrescentou. Além disso, ele considera importante o Brasil abrir mão desse alinhamento com Trump, assim como desse ingresso na OCDE, que apenas coloca o Brasil em conflito com outros países em desenvolvimento.

Ele considerou um absurdo a medida de expulsão de diplomatas venezuelanos sem qualquer justificativa plausível e louvou a atitude do Congresso de suspender o prazo de saída dos venezuelanos. “Só se expulsa diplomatas em época de guerra. Mesmo em rompimento de relações se mantem um núcleo”, explicou.

A medida “totalmente inexplicável”, na opinião dele, poderia ter relação com a “operação brancaleone” de mercenários americanos em território venezuelano desmontada pelos militares do país. “A não ser que Brasil soubesse dessa operação e achasse que isso ia causar uma guerra civil…”, sugeriu. Para ele, é importante que o Congresso tenha um papel na contenção desse política externa absurda, que vem violando tratados internacionais.

Mais vidas salvas, melhor para a economia

Luís Fernandes teve problemas com a internet e não pode concluir seu raciocínio, mas deixou questões interessantes para o debate.

Para ele, é relativamente seguro dizer que a pandemia acelerará e intensificará uma profunda transição em curso na ordem mundial, há quase quatro décadas. Ele lembrou Henry Kissinger, que dizia que a ordem mundial se define por uma “configuração relativamente estável e persistente de relações de poder no sistema internacional”.

“Não estamos vivendo, recentemente, nem continuidade, nem estabilidade nas relações de poder, mas uma profunda transição na ordem mundial”, avalia. Ele observa que há uma erosão do sistema que dominou o século XX com ascensão de países da periferia ou semiperiferia.

Fernandes discutiu um gráfico da evolução entre 1992 (um ano depois do colapso soviético) e 2019, da participação relativa dos países no PIB mundial medido por poder de paridade de compra que anula distorções geradas por flutuações cambiais. Segundo o gráfico, a participação dos EUA caiu de 19% para 15%, a da Europa ocidental de 23% para 14% e da China aumentou de 13,5% para 19,3%, duas décadas de aumento de quatro vezes na participação relativa da China no PIB mundial.

O sociólogo destaca duas chaves de interpretação para este fenômeno de transição econômica: a hipertrofia de atividades de natureza rentista dos países centrais com a liberalização financeira e a especulação. E um segundo componente que seriam os países em desenvolvimento aproveitando para enraizar cadeias produtivas e alavancar a política nacional, como foi o modelo chinês que estruturou cadeias produtivas e desenvolveu tecnologias próprias.

“Meu ponto central é que o impacto da pandemia acelera e intensifica essa tendência de transição estrutural. Países na Ásia que preservaram regulação estatal maior estão conseguindo enfrentar e conter a evolução da pandemia de forma mais eficaz do que a Europa, os EUA e o Brasil, que caminha para ser o segundo epicentro da pandemia no mundo”, analisa.

Fernandes também enfatizou o fato da rapidez e eficácia na contenção da pandemia se desdobrar na recuperação mais rápida dessas economias asiáticas. Para ele, isso sugere que a defesa da vida e da economia não guardam contradição. “Quanto mais salvamos vidas, mais criamos condições para minimizar impactos”, afirmou, antes de ser interrompido por problemas técnicos.

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A próxima webconferência do ciclo Diálogos, Vida e Democracia será no sábado (16), às 14h30, com o debate sobre “Pandemia, crise e pacto federativo”, que será feito por governadores como Flávio Dino, Rui Costa, Renato Casagrande e algum prefeito a confirmar. Terá a mediação de Manoel Dias, da Fundação Leonel Brizola-Alberto Pasqualini.