O Lobisomem e o Caipira

 

 


Eu já tinha passado por uns apertos. Com o coração descompassado, um mês atrás, eu estava montado no meu cavalo baio, vindo da cidade, onde fui comprar alguns tecidos e armarinhos, além de um facão, coisa que cada vez mais eu gosto como acompanhante. Quando eu me aproximava de uma “santa cruz”, já na reta da Fazenda Santa Iria, portanto quase chegando em casa, meu baio arrepiou carreira e estacou. Eu, que nunca uso esporas, calquei com os calcanhares nas axilas do baio, incitando-o a seguir adiante. Ao invés de seguir, o baio começou a corcovear, como se quisesse me derrubar, livrar-se da carga e fugir. Desci do baio e acalmei-o como pude. Olhei em volta: nada nem ninguém por perto. Decerto deve tratar-se de uma onça que tenha passado por aqui, pensei; ou talvez ela tenha passado há pouco e o cheiro dela espantou o baio. Passei defronte à Santa Cruz e persignei-me. Com as rédeas em mãos, segui caminhando à frente do baio. Embora vacilante, ele seguiu-me. Naquele trecho da estrada, em plena mata, pude contemplar os belos raios da lua cheia, filtrando entre os galhos das árvores. Era pouco menos da meia-noite; essas altas horas têm muito significado e misticismo pelo povo da região e eu também estava receoso. Só não posso dizer que estava com medo por pura macheza! A luz provinda lua cheia e inteira, fazia com que toda a estrada de terra batida se revelasse mais uma vez. Quando me afastei um pouco e senti que o baio já estava mais calmo, pisei no estribo e montei na sela, passando a perna por sobre o picuá da garupa. Foi só encaixar o pé direito no estribo do lado direito, ouvi um relho batendo em minas costas. E orelho ainda pegou a anca do baio e ele saltou tão alto, que eu caí; esborrachando-me no meio da estrada de terra e pó. O baio saiu em disparada e me largou lá no chão, com todos os ossos e músculos doloridos, devido à queda. Levantei-me aos poucos: tudo doía! Aos poucos fui me apoiando no barranco próximo, até me encontrar de novo de pé. Do baio, nem sombra. Ele foi desembestado, talvez em direção à minha casa, na Fazenda São José. Olhei em volta. Nada que me desse á vaga lembrança de que algo estranho ou medonho tenha assustado meu cavalo.


Com muito custo, comecei a caminhar, ainda tonto, trôpego, desnorteado. Talvez tenha andado uns cinquenta metros, ouço um barulho atrás de mim. Quando me volto vi, com estes olhos que a terra há de comer, que um enorme lobisomem estava ali, às minhas costas.


Meu coração batia descompassado, fora do normal. E um frio esquisito percorreu minha espinha. Dizem que nós estamos sempre prontos para o combate, mas nesse caso, como enfrentar algo desconhecido para nós, sobrenatural e sobre o qual havia tantos causos e relatos? Eu não sabia o quê mais iria aparecer nessa hora. Decerto o “bicho” queria beber do meu sangue e comer minha carne. Lamentei não estar o picuá ali, para eu pegar ao menos o facão novo e cortar o cão, como se fosse marmelada.


A sombra do lobisomem, projetada pela luz da lua, estava ali. Eu pude ver suas costas peludas. Era um cachorrão enorme, todo preto e com os olhos vermelhos como duas brasas quentes no fogo. Quando a luz da lua o revelou, ele se pôs de pé nas patas traseiras, pude ver que era um ser horrendo, seu peitoral todo cabeludo, as pernas eram fortes e ágeis, mas sua cara era a mesma de um demônio. Os olhos vermelhos, o focinho me fazia lembrar um velho cachorro, cujas patas dianteiras eram muito maiores que as traseiras. Ali, de perto, podia ver seus dentes e ouvi-los ranger de ódio para comigo. Eu não tinha como me defender, nem um pedaço de pau, nem um apedra, nem uma arma, nem um canivete sequer. Fiz o “nome-do-padre” e a tal criatura deu um grito horripilante e saiu correndo em direção ao meio da mata, fugiu para dentro da escuridão da noite. Depois que a criatura foi embora, meu coração voltou a bater compassadamente, quase normal; porém um frio esquisito percorreu minha espinha. Segui caminhando em direção à minha casa. Quando já estava há mais ou menos um quilômetro da porteira de acesso, vi o baio pastando calmamente ali perto; e o picuá com minhas compras ainda na garupa. Chamei-o pelo nome (coisa de caipira: ele era baio e o nome dele era “Baio”). O baio veio calmamente. Peguei-o pelas rédeas e fui puxando-o pelo cabresto até chegar às cocheiras, onde o livrei das selas, das rédeas e dos baixeiros. Soltei-o no piquete e ele saiu galopando, feliz da vida.


Enquanto guardava a sela e pegava o picuá com as compras, tive a oportunidade de pensar no que havia acontecido. Sei que a persignação tenha salvado minha vida, mas de agora em diante, vou tomar algumas providências, quando sair a cavalo por ai, nas horas altas das noites, enluaradas ou não. Sou homem nascido no século XX, mas que ainda está vivo no Século XXI. Vou começar a andar com minha garrucha de dois canos e minha cartucheira calibre 18 nas tralhas, vou levar cartuchos para benzer em sete missas; vou amolar meu facão novo e vou banhá-lo com água benta e jamais vou deixar de ter uma boa bengala de sicupira na minha tralha de viagem.


– Ara, esse lobisomem não perde por esperar!
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  Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 7 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de três outros publicados em antologias junto a outros escritores. /

 Imagem colhida na internet-sem identificação do autor