Pelas águas clementes e inclementes navegar

e navegar o chão, a fêmea, a cajazeira

com vento leste sair fora da barra

debaixo da capitânia de Martim Afonso

com Pero Lopes de Souza e de seus bagos venho

antes da era de Úrsula, Alexandre, José e outras

matriarcas e outros patriarcas e aí

começa o labirinto de Gerardo — na era

de Dom Manuel, o Venturoso, pois

por ventura aventura e desventura

ia de capitão de hua armada o governador

da terra do Brasil.

 

 

E de que me terei esquecido?  Não, por certo,

daquele medo, não daquela dor notuma e as

vacas mugindo

no terror à solidão

de teus pastos e teus céus.

 

 

Ficaram num cinzeiro os olhos azuis de Catarina

no cinzeiro de um bar — e de tantas

tantas outras coisas me lembro dia e noite

aquela noite o canto das prostitutas encarceradas

— e o coração,

Demóstenes Gonzalez, o teu, hecho pedazos

 

 

e o pedaço de lua aquela noite

no chão do calabouço — e às vezes

Pedro Mota — a morte de Pedro Mota

fulminado quando

cantava sob o chuveiro uma ópera italiana

e a corneta comprada no Ipu e a cartola de meu

pai, a garrucha de bronze de meu avô

e o céu

aberto, mas de súbito

e entra Pedro Mota e sorri

com a cartola de meu pai na delicada mão

e entra Edgar com uma bala no fígado

os santos inocentes acolhidos acenam

e saúdam a gentileza da morte

ao hino de Araci naquela tarde:

não, não me diga adeus.

 

 

E de que me terei esquecido?  Não, por certo

do tempo em que reinou a calmaria podre

e sem ventar bafo de vento

era mais grosso o mar e ao mar

lancei o prumo e perguntei o fundo

e tomei o fundo com cinqüenta e cinco braças

Tenerife!  Tenerife!

tomamos as monetas e mais que o dia

já podia a noite

e pairamos a noite toda até o quarto d’alva

demorava-me o Cabo das Tormentas a leste e

depois

barlaventeamos outra noite sem poder cobrar nada

por não poder fazer caminho

e não me esqueço, por certo,

do quintal do Encantado, ribeira e casa

de Araci de Almeida onde o canto dos galos

alongou tua morte

no alanceado coração — e como esqueceria

teus seios olorosos — e da cova deles

bem que rescendiam

e do cravo e da morte os suspeitos aromas:

e ainda cantarei de ti (agora tenho apenas o grande

mar por ló dessa lembrança)

nem mais vela que traquete e mezena

e muito trabalho na capitânia

porque não governava e não governa.

E amainamos a vela e fomos

correndo ao som do mar — até que foi de dia.

 

 

E de que me terei esquecido?  Não, por certo,

de um cavalo soluçando às estrelas do céu e às

éguas do terreiro

a dor aguda do grande pênis negro

e os cascos do alazão na ladeira da serra

de São Gonçalo dos Mourões

e o bandoneon de Gesu Melo — ou de Josa? —

e a camisa escocesa e a cartucheira e o punhal

e os luminosos olhos

de José Mourão retinindo esporas de prata

na estação de Cratéus — ali a casa de Solon Faria

e a arte de calcular por meio de algarismos

e em sua mão de sábio da comarca ardia um giz

e tantos anos depois, Solon Faria Fllho doutrinava

sobre

a arte de f azer mel por meio das palavras e as

abelhas

rodeavam seus olhos.  E de que me terei esquecido?

Não,

por certo, de uma gravata azul

de Aretusa dançando e os seios

de Carmen começando ao olor dos jasmineiros

Maria entre cajus vermelhos e amarelos

D. José Tupinambá da Frota, bispo-conde de Sobral

regendo o sólio e o maestro com sua clarinete

regendo

os tornozelos de Aretusa

e um bonde

varando a madrugada na Tijuca

e tantas outras coisas — e contemplei tremendo

a arte de fazer amor por meio de mágica – o polaco Tadeu

chupando ajoelhado aos pés do marinheiro crioulo

e um carneiro pastando a flor do bogari no quintal

do vigário

e o coldre viril do Colt no cinturão de meu tio e a

elegância

da taça de cristal na poderosa mão de meu avô

e tantas outras coisas — já não sei

se coisas ou lembranças:

possuídas um dia possuíram

o pulso do poeta

inventado e inventor

da memória inventora — e quem soubera

ao andar de Piehin vir de seu corpo

a graça a seu vestido — ou dele

florescer a beleza ao quadril

naquela adolescência?

 

 

Não te enxugue em espádua e anca e coxa

a água de beleza em que estes olhos

lavaram tua pele:

vem formosa mulher, camélia pálida,

já do salgado mar a espuma viva

prateia-me a pupila:

é preciso partir e na mão grossa

a enxárcia a vela a cordoalha pedem

um jeito de monção — e à chibata

dos ventos na garupa o barco pede

uma estrela no céu para o caminho à noite:

tu com teus olhos, Vega da Lyra, gema da Coroa

Boreal, estrelas verdes

e de Andrômeda e da Cassiopéia.

 

 

Luís de Gonzaga não conhecia o rosto

de Branca de Castela, sua mãe:

nunca fitara um rosto de mulher — os olhos —

ensinava ó Mestre asceta — são

janela da alma e por ali

entram as tentações — e pelos meus

entraram todas:

 

 

pungido por olhares fui crescendo:

o melancólico olhar do bisavô em seu retrato

pintado pelo pincel municipal de Raul

Catunda

e a morte na pupila do primo agonizante

e os olhos tristes — o quem te memorem —

desse conde alemão no Castelo de Kronberg, em

Frankfurt

e os teus boiando

constelados de verde à sombra de ouro

da Coroa Boreal de teus cabelos

dorida Berenice

hão de levar os meus por noite e mar.  E de que

me terei esquecido?  Não,

por certo, do arrepio

na penugem de teu braço quando

atrás de tua orelha era um perfume

farejado; e é preciso desfrutar

a luz, e aos olhos não negar nada na vida e

não perder

cova de seio, pedra de rua, axila e nuca tonsurada

e andorinhas ao céu

de agosto foragidas e dormir

sobre o catálogo palpitante.  E de que

me terei esquecido?  Não,

por certo, do arrepio

de Claude e Sylvianne e as outras cimitarras

fulgurantes:

aos fascinados olhos transpassavam

de um golpe o coração e tudo

era roteiro — os cegos tocando viola

na feira de Várzea Formosa

os soldados de mosquetão na estrada de Alagoas

e Arlette

ruiva e nua em seu bordel e nas noites de maio

a grinalda da Virgem e os anjos de novena e longa

túnica

e tudo era roteiro e de que banda

do mundo é o sítio do desejo, Capitão?

Soubesse dele e o não cantara

na sanfona saudosa o marinheiro Lorenz

e em sua voz marulhada o dalmata do cargueiro

grego

naquele outubro.

 

 

E à quarta do nordeste e à quarta daloeste

pode haver outra vista de terra e por isso

aprendi a pairar a noite toda até o quarto d’alva

e também Dalva pairava

as monetas ao léu e o seio em boia e então

barlaventeávamos até o caroço da noite:

no coração marsupial todas as horas

eram nutridas

e volta-se a ampulheta e voltam sempre

os grãos de areia e os grãos

desses nomes de coisas e lugares e pessoas

plantados nas entranhas:

a um tiro da abombarda estão sempre suas ilhas

ao alimpar-se a névoa —

oblivionem oblitus me esqueci de esquecer-me

e aos meus mortos

em vão imolo os bodes vigorosos

e os cantos fúnebres:

do ninho de seus túmulos levantam-se

e ao redor do atônito poeta

cantam a letra

dos próprios epitáfios:

nos alqueires do Inferno ninguém morre e

ninguém morre

na bem-mal-assombrada casa

deste coração.  Pois, de que

me terei esquecido?

 

 

 

Gerardo Mello Mourão – Os Peãs