Somos todos guarani-kaiowá

 

 

Todos humanos que têm consciência da humanidade fomos judeus em Auschwitz e somos palestinos agora na Faixa de Gaza. Fomos nipônicos em Hiroxima e Nagazaki. Negros na África do Sul durante o ‘apartheid’… Portanto, a comoção que hoje se levanta do Mato Grosso do Sul nos torna guarani-kaiowá a todos no Brasil e no mundo com a urgência de um basta aos genocídios, massacres e matanças.

Um estado de espírito como primavera de um novo mundo que vem raiando no fim da história da exploração do homem pelo homem. Depois da longa noite do imperialismo, desde o cativeiro da Babilônia e dispersão dos exilados da Terra, sonhos e esperanças de libertação da humanidade toda inteira se confundem em busca de uma Terra sem males para todos.

Os caminhos das Índias, sempre com a promessa de paraísos e riquezas sem fim; levaram à descoberta de males infinitos. Em vão as vozes de Las Casas, Anchieta e Vieira e os gritos ou gemidos dos torturados, massacrados e exterminados diante da desumana jurisprudência do amputado Ginés de Sepúlveda e do Moloc tecno-industrial a serviço do Mal absoluto. Desde as Antilhas para o interior das Américas imperou o ditado civilizador “índio bom é índio morto”. E como se matou bárbaros neste continente dominado por bandeirantes e piratas!

Diante da fúria do anti-Cristo, parecendo; foram dizimados ou apagados da face da terra milhões de indígenas Tainos, Igneris, Kalina, Makus, Aruacos, Tapuias, Tupis… Antigas civilizações arruinadas no México, Centroamérica e Peru. Na Amazônia, a milenar Cultura Marajoara do alto de seus tesos perde-se para sempre humilhada pelas patas dos búfalos entre chuvas e esquecimento: enquanto velhos “nheengaíbas” lesados em sua herança amargam um dos piores IDH’s da América Latina.

Daí que a tragédia dos índios brasileiros – ora tendo os Guarani-Kaiowá por escarmento – chama atenção do mundo inteiro. Mas, na verdade aí aparece apenas a ponta do ‘iceberg” da conquista e ruína dos povos pelo império do mundo. Demência de conquistadores e caçadores de tesouro adoradores de predadores tais quais a águia e o leão como manifesto do império do reino animal que precede o mundo humano.

É já que no momento os confinados Guarani-Kaiwá do Mato Grosso do Sul transporte a Faixa de Gaza para aqui; cumpre saber um pouco mais da história destes bravos habitantes da América do Sul. A cônica colonial registra presença deste povo no litoral sul e sudeste do Brasil ali chegados através da bacia do Paraná e do Prata, sendo portanto Guaranis as primeiras populações indígenas sul-americanas a entrar em contato com navegadores europeus.
A população guarani, no começo do século XVI, foi estimada em torno de um milhão a dois milhões de pessoas. O navegador Juan de Solis, em 1511, foi o primeiro espanhol a entrar no Rio da Prata chegando até o estuário do Paraná. Depois foi a vez de Sebastião Caboto, em 1526; enquanto Gonzalo de Mendonça chegaria ao Paraguai, em 1537, contatando os guaranis e com eles fundou a cidade de Assunção, a qual viria ser capital do país e mais tarde celebrizada pela formalização do tratado que criou o Mercosul.
Com a colonização castelhana, diversas populações guaranis deram nome às províncias de Karió, Tobatin, Guarambaré, Itatin, Mbaracayú, gente do Guairá, do Paraná, do Uruguai, os Tape etc.. Vasto território da costa ao sul de São Vicente, no Brasil, até a margem direita do rio Paraguai e desde o sul do Paranapanema e do Pantanal até as Ilhas do delta próximo a Buenos Aires. Adotando uma política de miscigenação e catequese espiritual semelhante aquela que, na segunda metade do século XVIII, o governo português adotaria para a Amazônia mediante o “Diretório dos Índios” (1755-1798); o governador Gonzalo de Mendoza incentivou casamentos entre espanhóis e mulheres guaranis. Fato que, mais tarde, deu nascimento à Nação Paraguaia sustentada obviamente por escravos indígenas.
Insistindo no paralelo de colonização do Prata e da Amazônia, cumpre saber que os primeiros “negros da terra” (escravos indígenas) da América do Sul foram arrancados da ilha “Marinatambalo” (Marajó), em fins de janeiro de 1500, pelo navegador espanhol Vicente Pinzón, dentre população “nheengaíba” (Nuaruaque) da contracosta, na foz do rio Amazonas. A gente marajoara dos primórdios do contato europeu na região norte do Brasil corresponde à fase arqueológica Aruã, povos de cultura e língua Aruak que migraram do Caribe através da ilha de Trinidad, entre 1300 e 1400, primeiramente a Venezuela e restante das Guianas até as ilhas do Pará. No delta-estuário do Amazonas, Aruãs e Tupinambás se confrontaram, provavelmente, antes da chegada dos europeus e foram estes últimos que chamaram de “nheengaíba” (falante da “língua ruim”) aos índios insulanos.
Na historiografia brasileira quase não se fala deste conflito amazônico pré-colonial entre tupis e nuaruaques (diversas etnias mescladas de grupos Aruak e Kalina, fruto de longa guerra antropofágica do circum-Caribe), todavia ele está implícito na história de conquista e colonização do “rio das Amazonas” tendo papel saliente nas respectivas alianças com os conquistadores da região: pela banda setentrional, “nheengaíbas” praticando escambo com mercadores holandeses desde fins do século XVI e, pela banda meridional do Grão-Pará, guerreiros tupinambás ao lado de franceses inicialmente e, por fim, aderindo à guerra do odiado “Peró” (português). A geopolítica indígena ignorava o tratado de Tordesilhas (1494) e as motivações portuguesas inferiorizadas na União Ibérica (1580-1640), todavia a construção territorial da Amazônia brasileira se explica, sobretudo, pela demanda tupinambá de um paraíso na terra, que na verdade nada deve ao messianismo judeu-cristão. Para os índios a “idade profética” seria um tempo de bem-aventurança sem fome, trabalho escravo, doença, velhice e morte. O lugar mítico no começo foi buscado ao nascente e terminou pela impossibilidade de afrontar o Mar-Oceano com frágeis ubás; se inclinando para o Nordeste e o Norte em direção ao pouso do sol rio acima até os confins amazônicos: razão da franca adesão às expedições guerreiras dos portugueses contra seus inimigos, contanto que fosse no rumo oeste (explicação do sucesso da viagem de Pedro Teixeira a Quito, Equador). Sem dúvida, sem o Bom Selvagem tupinambá não haveria hoje uma Amazônia brasileira e “se não houvesse guerra ela precisava ser inventada”…
Os primeiros cronistas do período colonial denominaram “guaranis” a todas as populações partilhando a mesma língua, semelhante à língua dos tupis da costa ocidental sul-americana. Cada grupo, por sua vez, foi denominado especialmente a partir do nome de pajés-açus, caciques e personalidades de prestígio. Também era comum denominar grupos com nomes de rios e lagos em cujas margens habitavam.
Durante mais de quatrocentos anos a historiografia colonial retraça a  história indígena, muitos nomes diferentes têm sido empregados para identificar vários povos. Apesar disto desde o século XIX surge uma crítica sobre a “tupinamia” da historiografia brasileira. Haveria então, um substrato “tapuia” mais antigo… O tupis não apenas sustentaram os colonizadores portugueses, como também guiaram a conquista do Brasil de sul a norte. Assim, pelo tupi, povos guaranis figuram a toponímia dos Araxás, Araxanes, Cainguás, Carijós… Na colônia espanhola estes mesmos povos eram chamados Carios, Chandules, Chandrís… Mas eles mesmos têm nomes próprios e se reconhecem entre si como ‘Avá’, ‘Avaeté’ (“homem verdadeiro”). No Pará, o município de Abaetetuba (lugar de abaetés) outrora chamava-se Abaeté, prova de que o Baixo Tocantins foi território de conquista tupi fazendo fronteira com o cruel povo matador (“marãyu”, marajó), falante da “língua ruim” (“nheengaíba”): estorvo da passagem das ilhas para dentro do Amazonas. Por acaso, a verdadeira “linha” de Tordesilhas entre Espanha e Portugal.
Sem arcos e remos tupinambás os lusos jamais poderiam ter conquistado o gigantesco rio das Amazonas. Bom na guerra o Bom Selvagem desde que desiludido da Terra sem males e catequizado, esgotado, se revelaria uma sombra do passado glorioso… E o colono português, na verdade emigrante dos Açores; iria caranguejar pelo litoral e povoar vilas. O sertão e a grande floresta é dos Tapuias, aqui a “Tapuirama” (terra tapuia); era preciso pacificar a região recentemente conquistada para romper, definitivamente, a linha de Tordesilhas: não por acaso, a margem ocidental da baía do Marajó se chamava na crônica colonial a “Costa-Fronteira do Pará”. Então, que o acordo de paz de 1659, tramado como obra barroca para impressionar a corte de Lisboa pelo padre Antônio Vieira; a ‘pax’ dos Nheengaíbas; é capitulo essencial da invenção da Amazônia. Com ela os fatigados tupinambás finalmente botam os pés nos domínios do inimigo hereditário, mas agora são escravos dos conquistadores portugueses e estes vão ter que casar com mulheres tapuias, senhoras dos segredos do grande rio. No Marajó, a pajelança é resiliência da velha cultura de mil anos…
A colonização do Prata e da Amazônia produziu extraordinária mestiçagem física e cultural, mitos indígenas e crenças religiosas européias divergentes amoldaram-se. Profetas indígenas chamados pajés-açus ou karaí, com a força das palavras e carisma convenciam multidões indígenas a abandonar vilas de colonização seguindo com danças e cânticos a Terra sem males (“Yvy marãey”) a caminho da liberdade. O estado de espírito que hoje invade redes sociais por solidariedade humana, seja com os oprimidos de Gaza ou do Mato Grosso do Sul, com muitos usuários adotando nomes indígenas, parece ser no caso dos brasileiros um encontro com a profunda brasilidade, que tendo nascida em berço esplêndido na América do Sul abraça o mundo contemplando a constelação do Cruzeiro dentre cintilantes estrelas, tal qual no passado longínquo antigas migrações das Ilhas para a Terra Firme.

 

 

     José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica”, “Amazônia Latina e a terra sem mal” e “Breve história da amazônia marajoara”.


autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica” e “Amazônia latina e a terra sem mal”, blog http://gentemarajoara.blogspot.com