Eva viu a uva: não viu a fruta agreste do Purgatório

 

Estava à toa na vida meu amor me chamou pra ver a banda passar cantando coisas de amor… A banda passou e eu continuei à toa: analfabeto da vida. Claro, eu já sabia ler e escrever. Até havia lido o romance “Marajó” de Dalcídio Jurandir, leitura “desaconselhada” aos católicos do Grão Pará pelo Arcebispado segundo dizia um catecismo capa branca novinho em folha cheirando à tinta, que ganhei com amor e carinho de uma querida tia às vésperas do Círio de Nazaré. Apesar de tudo, quando malmente li Dalcídio caíram-me as escamas dos olhos. Então eu vi a criaturada grande que estivera invisível perto de casa, pelas ilhargas do mercado e na feira do Ver O Peso até mato adentro pelas redondezas da terra ingrata das Amazonas. Depois disto me atrevi a devorar Euclides da Cunha em “Os Sertões”. Na verdade, leitura eu tirava de letra, mas desgraçadamente não pegava o espírito da coisa. Era paresque índio brabo que vê a árvore, mas não enxerga a floresta. Eu tinha dó de pobre sem saber de fato o que é pobreza e pilhagem da mãe natureza. Eu contemplava a meiga paisagem da beira do rio, mas não compreendia a tragédia grega da ilha e não entendia nadinha do vasto arquipélago chamado pátria amada Brasil.

Assim mesmo, a velha e encardida cartilha de a-b-c com as leituras errantes que topei na vida não me livraram do abestamento social. Não dizia Aristóteles que o homem é animal político? Então o gado humano tem lá muitas cabeças de burro enterradas ou desterradas. Quando mais precisei de conhecimento na maré do êxodo rural pra atravessar a baia entre o fim do mundo e a cidade grande, bati com a cara na porta carente de emprego e escola. Então, desocupado matando cachorro a grito, eu passava o tempo jogando bola e foi aí que acabei caindo que nem patinho num certo grêmio estudantil feito arapuca pra pegar a mocidade dependente do coronelismo.

A dita armadilha pega moleque doido era um chamado movimento águia branca (de fato, galinha verde fascista) sob encomenda pra arrebanhar analfabetos políticos no purgatório do lumpem proletariado sem carteira assinada. Empolgado que nem cristão-novo que tirou a sorte grande, voltei aos pagos em procura da tribo perdida e ali levar a requentada novidade. Foi então que vi que às vezes, por obra da necessidade com o acaso, abestados também podem obrar rasgos de inteligência: designado que fui a representar a juventude integralista num comício de periferia da capital, me saí de tal jeito que no final do discurso fui aplaudido pela “inimiga” juventude comunista. Também esta mocidade confundida dentre a babel de palanque da coligação PSD-PTB tendo como denominador comum a eleição pós-JK do general nacionalista Teixeira Lott para presidente da República e do fazendeiro sindicalista Jango Goulart a vice.

Pasmem os senhores! São prodigiosas as astúcias de um caboco sem eira nem beira quando abre seu coração e deixa falar a intuição… E não foi sem assim, que tive a honra de ser expulso daquele suposto partido de “representação popular”, diz-que: desclassificado como “perigoso agitador do comunismo internacional”!… Mas quanto, já? Eu não sabia com quantos paus se faz uma canoa. E noves fora diversas travessias de canoa à vela entre as ilhas e a Cidade, eu só conhecia as vizinhas Abaetetuba e Bragança. Durma-se a sesta no inferno verde com um barulho destes…

Por este caminhozinho estúrdio cheguei a ser foca de jornal e como tal, repórter especial num certo encontro regional sobre reforma agrária, em Igarapé Açu, promovido pelo escritor e secretário de estado da produção Benedicto Monteiro, líder do antigo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) no Pará. Seis horas da manhã lá fui eu a São Brás pegar o trem Maria Fumaça na estação de Belém. Já comecei a entrevista e fui sabendo logo pelo camarada mais velho da turma que até ali estivera eu na contramão da história: foi assim que na volta de Igarapé Açu eu já me sentia sendo o mais novo militante do Partidão a levantar a bandeira da reforma agrária até agora.

Aqui faço atalho pra dizer que depois duma curta bravata eleitoral em 1961 sob legenda emprestada do falecido Partido Republicano (PR), apelidado nas ruas de Ponta de Pedras em ritmo de merengue o “Partido Rebelde”; e durante uma temporada nomeado secretário-contador da prefeitura de Faro, acabei sendo convidado e aceitei ser secretário municipal na terra natal de meus país a fim de participar de reforma local memorável, sob a respeitável batuta de um prefeito conservador lúcido, aliás maestro regente da banda do Círculo Operário. Com este senhor filiado da Arena, embora a população haja esquecido por motivos óbvios, dentre outras coisas o município assistiu a elaboração do primeiro orçamento participativo da sua história e aprovação unânime pela câmara dirigida pela oposição; do primeiro plano municipal plurianual de aplicação de recursos no Estado do Pará. Plano este aprovado sem mensalinho ou mensalão de qualquer natureza, elogiado principalmente pelo governador da época em reunião no palácio com o prefeito para assinatura de convênio estadual.

Foi durante esta breve quadra que tive a maior experiência de minha modesta vida pública: quando lembrado duma palestra do educador Paulo Freire em Belém, me deparei frente a frente com o grave problema do analfabetismo crônico entre trabalhadores da prefeitura. Na verdade a comuna não havia verba suficiente para empregar muita gente, de modo que o grosso da população restava na zona rural, na colônia de pesca e pelos trabalhos mais ordinários da cidade. Alguns letrados do lugar molestados por minhas presepadas, entre as quais o discurso insolente da reforma agrária e insistência em organizar cooperativa para pescadores; sabendo quanto perigoso era na ditadura chamar alguém de “comunista” fosse lá por que fosse; cuidaram de espalhar boato de que o prefeito casmurro, para repelir costumeiros assaltos ao cofre público praticado por notáveis figuras da oligarquia; havia tomado decisão de mandar buscar e contratar um ‘moleque comunista’, além do mais jornalista fuxiqueiro; para o cargo-chave de tesoureiro da municipalidade. Oh, por Deus! Nunca dantes ali havia acontecido uma coisa destas. De segunda à sexta a dupla casca grossa pegava pesado no serviço público pra não deixar atrasar coisa nenhuma dava-se dois expedientes. Mas, estrategicamente, sábado e domingo o alcaide e seu fiel escudeiro sumiam do barulho e mais alguma arruaça de porta de botequim dando azo a interesses contrariados (fossem ver, estavam com a família “escondidos” no Paraíso, que era um aprazível sítio meia maré distante da cidade a montante do rio).

Com a cara e a coragem, porém sem fazer alarde ou verba carimbada este que vós fala se tornou alfabetizador de adultos voluntário. Passando a dar aulas fora do expediente da secretaria de finanças, no “Círculo Operário Pontapedrense”. Vieram tímidos e poucos, todavia corajosos trabalhadores dispostos a se libertar do analfabetismo. Não tivemos sucesso estrondoso, todavia aprendemos fortes coisas mutuamente e ficamos sabendo que o método Paulo Freire funciona de verdade. Aquela coisa “eu te ensino a fazer renda e tu me ensinas a namorar”. Ou, melhor, “uma mão lava a outra e as duas lavam a cara”… Me lembro especialmente do mais esperto e interessado da turma. O suposto professor mais aprendiz que os alunos, improvisando sozinho no ilhamento da hora tudo que em Brasília fora preciso uma equipe de especialistas para alfabetizar milhares de candangos chegados de todos cafundós da pátria para concretude do Plano Piloto de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer.

Este um era líder nato, morador antigo do interior poderia ele ser descendente dos primeiros casais dos Açores e que a cabo das gerações perdeu a memória e se acaboclou de tal modo que dava nó em pingo d’água. Passado na casca do alho ele só queria um pé pra tomar conta da parada e contar causos e causos… Só lhe faltava ler e escrever. Eu improvisei em cartolina a “família das sílabas” no retalho da palavra-chave “maniva”. A premissa de Freire é identificar palavra de três sílabas que resuma o mundo do trabalho local. Por exemplo, a palavra “tijolo” na construção de Brasília foi passaporte ao conhecimento sócio-educativo de milhares de analfabetos candangos. No mato sem cachorro, eu apelei ao meu próprio conhecimento da região, sabendo antecipadamente que o pão nosso de cada dia é farinha de mandioca. Das folhas desta utilíssima planta tropical a gente faz maniçoba, que vem de “maniba” ou maniva. E, pois, foi com a maniva salvadora que me peguei para acordar a consciência da cabocada. No quadro a maniva fatiada em sílabas se pode mostrar a família das vogais e com as consoantes constantes das palavra-chave descobrimos um mundo de coisas associadas ao trabalho ribeirinho.

Em pouco tempo a turma ficou afiada no jogo das palavras e em como extrair das letras mortas tantas histórias de vida. Foi aí que o danado do caboco depois de me ensinar uma porção de coisas enxergou no quadro a extraordinária palavra “Muna”. Travou-se o seguinte diálogo: “Mu, na… muna”… Disse ele, então eu confirmei “Muna”. O que é Muna? O cara sem, pestanejar, respondeu “é uma fruta”… Provoquei, “uma fruta, tem certeza?”. “Sim senhor, uma fruta”… Desconfiado eu quis saber de detalhes: “você conhece esta fruta”. A surpresa: “eu não, mas o senhor que é homem viajado deve conhecer’.

De fato eu não sabia, mas sei agora que é muito boa a fruta cuja semente Paulo Freire plantou na terra agreste do sertão nordestino. E que ela se multiplicou por outras regiões brasileiras, floresceu em Cuba, já se tornou frondosa na Venezuela e Bolívia, depois de vicejar também pela África. Dá da árvore da conscientização pela alfabetização fora de época. Nasceu em 1962 quando Freire diretor de extensão cultural da Universidade do Recife, onde ele formou um grupo para experimentar o método em Angicos, no Rio Grande do Norte. Lá foram alfabetizados em 45 dias 300 cortadores de cana. Freire repudiava a velha cartilha professoral do ditado caduco e monótono que dizia “Eva viu a uva”, “o boi baba”, “a ave voa”…

Graças ao louco a gente pode descobrir nossa própria loucura. O pária revela o desterro da humanidade filha da animalidade em risco de extinção. Os soterrados da lida pelo analfabetismo nos mostram a face escura do fracasso da libertação dos povos e o monumental fiasco da independência dita nacional cada vez mais presa ao capital transnacional. Ave Freire, educador da nossa liberdade!

 

      José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica”, “Amazônia Latina e a terra sem mal” e “Breve história da amazônia marajoara”.

autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica” e “Amazônia latina e a terra sem mal”, blog http://gentemarajoara.blogspot.com