Com meu semblante de Cristo que não deu certo, participei, na condição de poeta, de uma oficina sobre a cidade da falta, promovida pela APA Jacarandá da pedra. Foi no mínimo uma ousadia convidar um poeta para apresentar à seleta platéia de ambientalistas, geógrafos, psicólogos, professores universitário, arquitetos e urbanistas, o olhar da poesia sobre a geografia e os espaços da cidade. Não sabendo que era impossível, fui lá, e fiz. Se não cheguei a agradar, ao menos fiz novas amizades, interagindo com os presentes, durante todo o dia, em vivências e diálogos de grande riqueza intelectual e emocional. Refletindo sobre a cidade da falta, o geógrafo Egmar Felício Chaveiro, em estudo sobre a vida e o espaço de Goiânia, em sua vertiginosa expansão urbana indaga se o motivo do que se chama de progresso é de fato o Homem “Mas que homem? Homem, mulher, criança, incluídos, excluídos, instituídos, destituídos, neg ros, brancos, representantes, representados, velhos e novos, performáticos, resignados, gays, machões, trabalhadores, parasitários, ricos, doentes, poetas, e uma série infinita de identidades de uma cartografia ontológica de sujeitos da metrópole”.

      As reflexões de Egmar Felício Chaveiro e de seus companheiros da APA Jacarandá da pedra inspiraram-me a dar minhas cacetadas humano-urbanísticas, a partir do olhar da poesia: Na cidade da falta tudo é uma fartura de carências. Não faltam problemas, prognósticos de falências, fraturas expostas por atacado, acidentes de percurso em sólidas empresas infalíveis. Na cidade da querência todos querem alguma coisa – e o que falta é de multiuso, desde a roca ao parafuso. Se não há nada de novo no front, na cidade da falta, onde o nada abunda tudo falta, e o que prejudica é o instituto do vício de ser um paletó de três mangas, uma boa idéia que deu defeito, ou eu tornou a emenda pior do que o soneto.

      Mas se tantas coisas em falta para completar a felicidade dos que vivem na idade, há uma carência mais grave: a do homem em que falta a inteireza de sua humanidade. Sendo um ser espatifado na competição desenfreada e na inconsciência de ser quem é, não poderia ser feliz, nem se ganhasse todas as loterias deste país que transformado em pano verde de jogatina oficial. Ao que falta a percepção de sua essência nenhum ambiente será repleto de harmonia e completude. Falto do que em mim não morre, sou assolado pelos impactos do que me falta para sentir-me inteiro. Sem ser o Homem que aspiro ser, o húmus da terra não me fecunda, nem eu posso engravida-lo com minha vontade, e meu trabalho. Não sendo consciente de que sou pai e filho do ambiente em que vivo, sou apenas um sonâmbulo, um morto vivo, a cruzar com outros mortos vivos nas avenidas do medo.

      Quando os políticos populistas e assistencialistas falam em resgatar a dignidade do Homem, eu indago: a que qualidade de ser, e a que Homem querem se referir? Qual seria, exatamente, no momento, a qualidade de vida dessa “cartografia dos sujeitos da metrópole? Que sonhos, aspirações, emoções e conflitos habitam a interioridade de nossa cidadania, se é que ela chegou a ter uma alma? Que é o Homem, afinal? Em que consistem as balizas da dignidade que se busca resgatar? Sua humanidade será firmada na medida em que ele tiver uma casa, comida, saúde, transporte, diversão e arte, em nível mínimo de qualidade, se tal indivíduo não constituir em si uma alma, ou se não chegar a ter um espírito, tornando-se assim um sr harmonioso com seu ambiente e seus concidadãos, através do auto-conhecimento, em trabalho que só ele pode fazer por si mesmo? O professor Egmar: responderia: antes de tornar-se místico, ou um ser holí stico, o homem primeiro tem que comer. Com a barriga roncando não dá para ler. O barulho atrapalha, diria o professor Adilson Rodrigues, que não é o Maguila, naturalmente.

Brasigóis Felício, é goiano, nasceu em 1950. Poeta, contista, romancista, crítico literário e crítico de arte. Tem 36 livros publicados entre obras de poesia, contos, romances, crônicas e críticas literárias.