Era um sujeito calado. Poucas foram as vezes em que ouviram sua voz, e  nunca testemunharam de sua lavra algum juízo, ou mesmo mera opinião emitida. Sempre o viam ali, sentado na roda, atento sempre – mas, mudo.

      – E você, Zé, o que acha?
 
      Assim, diretamente interpelado, limitava-se a uma expressão que bem podia ser “não saberia dizer”, como “nada importante”. Depois de um pequeno constrangimento, as pessoas mudavam de tema e a fila de assuntos andava.

      O curioso é que todos gostavam dele. Sempre que inventavam um programa, alguém lembrava: “não esquece o Zé”, ou, “já ligaram pro Zé?”. E sempre alguém o chamava. Porque, se era calado, inerme não era. Seus olhos emitiam sinais de vida inteligente. E, quando rolava uma piada, seu sorriso era certo. É, sorriso. Risada mesmo, só quando a piada era de estourar o diafragma.

      Quando o assunto era delicado, ou quando era emitida uma opinião polêmica, ou peremptória, todos olhavam pra ele. Não se atreviam a pedir um veredicto. Apenas tentavam ler seu semblante.

      Às vezes, um dos presentes dizia “acho que o Zé não gostou”. E lá vinha a inexorável expressão enigmática.

      Vera, uma das freqüentadoras da roda de amigos, caiu de amores por aquele sujeito reservado. Apaixonou-se justamente pelos olhos e pelo sorriso. O mistério, neles entrevisto, fez o fogo lavrar irrefreável. E Vera foi ao bom combate. E venceu. Não antes de um certo trampo, algum estratagema e um assalto frontal.

      Era uma sexta típica: noite gostosa, lua no céu, mesa na calçada. Ela chegou mais cedo. Ele apareceu logo depois. Antes que aportasse mais alguém, ela agarrou a oportunidade e foi direta:

      – Zé, você sabe que eu… bem… que eu quero… estar com você. Não sabe?

      Ele fez até menção de responder com aquela sua expressão tão conhecida, mas ela não lhe deu tempo: grampeou-lhe a boca com um beijo bem dado e arrastou-o para sua cama. Lá, depois de consumirem-se sem se preocupar com contra-indicações ou reações adversas, ela resolveu dar azo à sua famosa e obsessiva curiosidade, e crivou-lhe de perguntas. Ele, apoiado nos cotovelos, olhos fitos nela, só fazia sorrir.

      Ao cabo de algumas horas, derrotada, ela encostou-se à cabeceira da cama, abraçou os joelhos e lamentou:

      – Isso não se faz! Você é doente.

      Ele então sentou-se, cruzou as mãos sobre o abdômen e começou:

      – Quando eu era adolescente – tinha uns dezesseis anos, acho – fazia SENAI. Técnico têxtil. Não conclui. Era tempo integral. E eu tinha outros interesses: preferia um bom romance policial, a ficar estudando tramas, urdiduras, fiação. Um dia, resolvi sair à hora do almoço e não voltar. Na manhã seguinte, o diretor me chamou em sua sala, trancou a porta, e me fez uma longa preleção sobre dever, horário, profissionalismo, respeito aos pais e aos mais velhos, expectativas das famílias e da indústria têxtil. Depois me mostrou uma reportagem da Veja sobre crianças superdotadas, sugerindo que, se eu me considerava bom demais para o SENAI, talvez devesse procurar uma escola para crianças como aquelas. Depois de todo o blá-blá-blá, ficou aquele silêncio. Ele me olhava nos olhos e esperava alguma palavra minha. Limitei-me a pedir que ele abrisse a porta. Um tanto alterado, ele me perguntou: “Você não tem nada para me dizer?”. Respondi que não. Fiquei com impressão que ele fez um razoável esforço para se acalmar: “Já me disseram que o senhor é meio calado. Posso saber o porquê desse silêncio?”. Aí eu respondi: “Para não dizer o que devo”.

      Terminado o relato, acendeu um cigarro e sorriu.

      Para alívio de Vera, dali a dois meses, quando o padre lhe fez a pergunta fatal, ele disse “aceito”.