… Perto de nossa casa pequena e burguesa, abria-se, num quarteirão inteiro, uma chácara arborizada de cigarras no verão, enluarada de sanfona e de sonho nas noites quietas. Vinha a ser a chácara do rico dono de todas aquelas habitações e terrenos. Era um velhote chamado Fernando de Albuquerque, a primeira pessoa que conheci americanizada. Fazia grandes viagens aos Estados Unidos, donde trazia engenhosas novidades. Numa soirée em casa dele, nessa chácara imensa, foi-me apresentado o fonógrafo: – É uma coisa que a gente pões um fio na orelha e ouve!
Minha mãe fez questão que eu comparecesse a essa apresentação da espantosa descoberta: – Uma coisa que roda e a gente escuta tudo!

      A casa de Fernando de Albuquerque encheu-se de luzes e de gente. Eu estava ali quieto, ao lado de meu pai quieto. Desde cena guardo a noção de que mesmo as coisas espantosas nunca me espantaram. Encaixo tudo, somo, incorporo. De fato, fiquei impassível e nada exclamei quando me apresentaram a pequena máquina, onde um cilindro de cera negra forma de rolo despedia sons musicais através de fios que a gente colocava nos ouvidos.

      Depois de exibida a invenção norte-americana – de Thomas Edison! – dizia encarecendo-a passou-se a gravar um disco virgem. Meu pai discretamente escusou-se de dizer qualquer coisa, eu nem fui chamado. Fez grande sucesso de hilaridade um senhor que aproximando-se do disco prometeu: – Doutra vez eu trago a flauta!
Esta frase ficou cantando no fundo de minha memória. Não achei nela nenhuma graça. E, através de sua filosofia do malogro, senti que a vida oferecia, inúmeras ocasiões como essa em que alguém, na hora de bilhar, notava que não tinha trazido o instrumento do êxito. E prometia adiando a esperança: – Doutra vez eu trago a flauta!

      Nunca mais houve outra festa na casa senhorial e americana de Fernando de Albuquerque. Nunca mais o improvisado flautista, que eu saiba, foi chamado a depor, nem ali nem em outro lugar importante ou modesto conclave. Apenas notei que muitas vezes eu tinha também esquecido a flauta e exclamava para a vida e para os homens: – Doutra vez eu trago…

 

Obras Completas Oswald de Andrade
Um Homem sem Profissão sob as ordens de mamãe 
Editora Globo