Sentia a areia debaixo dos pés e as estrelas acima de tudo. Havia bebido duas garrafas de vinho. Sozinha e descalça no breu. Não por falta de companhia, mas de compaixão. Saiu sem dizer o destino e adorou. Estava agora a se divertir, catando recordações e contando alto para ninguém ouvir. Gargalhava olhando o mar e se gostava mais e mais.

      Ninguém supunha a menina feliz, com seus olhos de serpente, toda prazer e nada culpa. Na aura insana do álcool, não estaria o motivo dos risos. Contentava-se mesmo por realizar um desejo antigo. A ânsia de solidão.

      Descobrira a estranha e perigosa sensação de poder qualquer coisa.

      Passou a vida se sentindo tolhida, cerceada. Como se no seu espaço não lhe coubesse por inteira. Uma sensação de imprensado e mormaço. Gestos delicados, atitudes medidas e desejos desvairados, todos adormecidos – que enfim deixavam o onírico e lhe acertavam em cheio a face, numa bofetada gostosa e tão real.

      No ventre da mãe, conheceu a irmã, Denise. No início achava que Denise era ela, um pedaço desobediente. Depois a perceberia outra – linda e perfumada, feito um lírio alaranjado. À mãe, só foi apresentada mais tarde, quando deixou aquela toca úmida e escura para ser lançada na claridade ardida do mundo. Do pai nem se lembra.

      Nunca quis ser igual à irmã porque, já que eram duas, deveriam parecer duas. E era assim – Sílvia suave e serena, Denise doida e dengosa. E sempre andavam juntas, cresceram emparelhadas, como duas garrafas compridas que enfeitavam a sala de jantar. E ela ia notando que não era assim tão sensata. Apenas queria ser inversa. E ia se atrofiando para não parecer cópia.

      E descobrira então a estranha e perigosa sensação de poder tudo.

      Vestiu-se de cores febris e partiu para a conquista de si. Não podiam existir duas, aí resolveu prevalecer. E fundiu-se com a outra, banhadas de si. Não se distinguiam os cabelos, as pernas, os corpos cor de carmim. Num beijo enfurecido, despediu-se para sempre da outra, diluída, diáfana.

      Abriu o chuveiro e a água fazia cócegas. Mas não era por isso que ria. Pelo ralo, escorriam coágulos de saudade. Precisava se desfazer de tudo que não era mais verdade. E correu pela noite inebriada de satisfação, cheia de si. E se gostava mais e mais, sem piedade.