O poeta muitas vêzes se delicia em criar poesia, não tirando-a de si, dos seus sentimentos, dos seus sonhos, das suas experiências, mas “desgangarizando-a”, como disse Couto Barros, dos minérios em que ela jaz sepultada: uma notícia de jornal, uma frase ouvida num bonde ou lida numa receita de doce ou numa fórmula de toilette.

      Há quem censure o poeta por isso. Não me parece avisada tal atitude: a poesia é como um rádium – o milésimo de miligrama constitui uma riqueza que não se deve deixar perder.

      Eu, por mim, vivo cada vez mais atento a essa poesia disfarçada e errante. E um dos exercícios que mais me encantam é desmanchando numa página de prosa.

      Como sou advertido da presença do poema? Acho que é quase sempre por uma imagem insólita ou por um encontro encantatório de vocábulos.

      Vou dar um exemplo. Há pouco tempo o poeta Augusto Frederico Schmidt escreve sobre outro poeta uma página e meia de excelente prosa. No meio do escrito aparecia uma imagem extraordinária beleza. Para acha-la era preciso ter, como Schmidt tem, uma extrema agudeza de sensibilidade para apreender a poesia mais fora do alcance do comum. Todo mundo sente a poesia formidável de uma noite de luar. Mas sentir a serenidade “com que o céu escuro recebe a companhia das primeiras estréias”, isso é que fia mais fino. Não é que muita gente já que não tenha sentido isso. Deve ter sentido, porém, tão vagamente, ou sentiu qualquer coisa que não soube bem que era isso, eu sei lá. Em todo o caso, creio que até hoje, desde que o mundo é mundo, ninguém exprimiu tal sentimento.

       A imagem me pôs alerta. O meu instinto de “desgangarizador”  estava acordado. – Aqui deve haver poema, disse eu comigo. Fiz então o que Tolstoi costumava fazer com a prosa dos evangelistas: ele sublimava a traço vermelho o que nela lhe parecia sem sombra de dúvida marcado com o selo divino do Cristo. Voltei a reler a prosa de Schmidt, procurando nela a parte de Deus.

      A experiência deu resultado. O poema apareceu como o precipitado de uma reação química.

      Risquei a lápis vermelho: na segunda linha “É uma luz triste mas pura”, etc.; no começo do quarto período “A solidão é em F. o grande sinal de seu destino”; seis linhas adiante “Da poesia feita como quem ama e quem morre, caminhou ele para uma poesia de quem vive e recebe a tristeza naturalmente como o céu escuro recebe a companhia das primeiras estrelas”; no meio do período seguinte “O pitoresco, as cores vivas, o mistério e o calor dos outros seres o interessam realmente, mas ele está apartado de tudo isso, porque F. vive na companhia de seus desaparecidos, dos que brincaram e cantaram, dormindo profundamente.”

      Com a transposição da imagem das estrelas e uma ou outra insignificante alteração ou acréscimo de palavra, ficou assim recomposto o poema de Schmidt:

 
Palavra a um poeta

A luz da tua poesia é triste mas pura.
A solidão é o grande sinal do teu destino.
O pitoresco, as cores vivas, o mistério e calor dos outros seres
                        [te interessam realmente
Mas tu estás apartado de tudo isso, porque vives na companhia
                        [dos teus desaparecidos.
Dos que brincaram e cantaram um dia à luz das fogueiras de
                        [São João.
E hoje estão para sempre dormindo profundamente.
Da poesia feita como quem ama e quem morre
Caminhaste para uma poesia de quem vive e recebe a tristeza
Naturalmente
– Como o céu escuro recebe a companhia das primeiras
[estrelas.

 

Os Reis Vagabundos e mais 50 crônicas – Manuel Bandeira
Editora do Autor – edição 1966