O tema da Revolução Coreana tem sido abordado de formas caricata, jornalística e ideológica. É comum mesmo que especialistas acadêmicos em Ásia, quanto intelectuais progressistas, desconheçam sua trajetória, replicando preconceitos primários, ou optem simplesmente pelo silêncio. Tal postura não contribui, contudo, nem para a ciência, nem para a política. Nesse sentido, é alentadora a publicação do livro A Revolução Coreana – o desconhecido socialismo Zuche, de autoria de dois professores e pesquisadores da UFRGS, Paulo Visentini e Analúcia Pereira, e uma diplomata, Helena Melchionna. Trata-se de um livro acadêmico fruto de extensa pesquisa e de uma viagem à Coreia do Norte, cuja leitura acessível permitirá preencher uma lacuna para estudiosos e informar um público mais amplo.

Essa desconhecida experiência socialista tem se desenvolvido (e resistido) sob as mais difíceis condições. O desafiador é compreender sua trajetória para além do fácil discurso radicalizado, até porque é mais fácil evocá-lo do que enfrentar os desafios de construir o novo, imersos em circunstâncias domésticas e internacionais muito adversas. Pensar qualquer construção societária a partir de seus constrangimentos e possibilidades é condição para a não capitulação histórica.

Dessa forma, algumas perguntas são imperativas à reflexão consequente. Como é conquistar a independência nacional frente a um imperialismo tirânico e xenófobo (japonês) com imensa superioridade bélica? Como é reconstruir um país devastado pela guerra de independência? Como um país preserva a integridade territorial e a soberania no contexto de Guerra Fria? Como manter a autonomia diante da escalada de rivalidade militar entre URSS e China entre os anos 1960 e 1980? Como manter o regime após o colapso do campo socialista e a espiral belicista e unilateralista dos EUA – que levaram a inúmeras intervenções com destruição econômica, instabilidade política e fragmentação territorial (Somália, Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria, etc.)? Como retomar o desenvolvimento com um notável isolamento e no contexto de crises ambientais (duas enchentes devastadoras em 1994 e 1995 e uma forte seca em 1997)? Como desenvolver-se num ambiente de isolamento, embargo e hostilidade, bem como carente de recursos naturais e energéticos e com exíguas áreas agriculturáveis? Como analisar as idiossincrasias e as contradições desse regime e país sem levar em conta a trajetória coreana? Como, apesar das adversidades, o país apresentou notáveis conquistas socioeconômicas? Como é possível passar do Estado de Exceção para o de Normalidade num quadro de estado de guerra e sem replicar o viés plutocrático e individualista das democracias ocidentais (e considerando que, mesmo essas, cancelam os poderes constitucionais em cenários de guerra)? Como explicar a revolução socialista coreana – e suas especificidades Zuche – sem levar em conta o peso do nacionalismo e dos traços culturais asiáticos e confucianos? Abstraindo essas reflexões é possível se aferrar apenas a discursos radicalizados e panfletos libertários que não resistem sequer ao vento…

Para dar conta desse complexo, instigante e desconhecido assunto, o livro a A Revolução Coreana está dividido em sete capítulos que tratam 1) do nacionalismo e das origens da Revolução Coreana, 2) da guerra civil e da Guerra da Coreia, 3) da reconstrução e do socialismo Zuche (1950-60), 4) do contexto da cisão sino-soviética e da aliança sino-americana (1960-70), 5) do apogeu às adversidades (1970-80), 6) do contexto da Marcha Penosa e do Songun, 7) e da atualidade, mudanças e reformas. O balanço histórico que a obra apresenta permite visualizar que, ao invés de um regime monolítico, como é apresentado de forma caricatural, a trajetória da revolução coreana tem transformações e ajustes: experimentou até início da década de 1970 a dianteira econômica da península coreana, à frente do que viria a ser tigre sul-coreano, e depois as dificuldades e até penúria dos anos 1990 para novamente voltar-se à reforma na atualidade (inclusive com Zonas Econômicas Especiais); apresentou períodos norteados por maior (Songun) ou menor militarização (Linha Byungjin); conviveu períodos de maior aproximação com a URSS, outros com a China e outros de maior isolamento; estabeleceu mesas de negociação e acordos com os EUA e também soube enfrenta-los quando sentiu-se acuada, etc.

O fato é que a realidade percorrida pela Coreia do Norte tem sido de grandes constrições: no âmbito geoeconômico, o desenvolvimento tem sido limitado pelas adversidades de sua inserção econômico-comercial e, no âmbito geopolítico, as dificuldades referem-se ao convício regional com potências muito mais fortes, tais como Rússia, China, Japão e EUA. Isso impõe escolhas difíceis aos norte-coreanos: o desenvolvimento está condicionado pelo ambiente internacional adverso, de maneira que grandes somas do orçamento são dedicadas à defesa. A interconexão entre diplomacia, defesa e economia explica muito das tensões entre EUA e Coreia do Norte: enquanto os primeiros procuraram aprofundar a divisão da península para mudar o regime e legitimar sua presença militar na região, os segundos buscam a dissuasão, a barganha para obter algumas vantagens econômicas e fortalecer a coesão do regime. Ou seja, é um jogo calculado bastante distante da maneira como a mídia sensacionalista apresenta as tensões na península – geralmente representadas como simples irracionalidade de um líder autoritário.

Enfim, é inegável que a revolução coreana não tem recebido a atenção merecida, seja por sua dinâmica doméstica, seja pelo impacto que produz nos alinhamentos e processos de integração asiáticos. Ademais, para a esquerda a pior derrota é aquela que anula a consciência do derrotado; e a que deixa órfãs as experiências, conquistas e contradições que estas revoluções representaram e representam. A obra, como destacam seus autores, talvez possa “inspirar uma esquerda sem projeto político desde o final da Guerra Fria ou seduzida pelos antivalores niilistas da pós-modernidade ocidental” (p. 186). Diante do espiral reacionário em âmbitos doméstico e internacional, o livro vem em boa hora para reabrir debates obstruídos for falsas certezas, por modismos intelectuais pós-modernos e outras capitulações travestidas de radicalismo.  

Diego Pautasso é doutor em Ciência Política pela UFRGS. Atualmente é professor e pesquisador na área de Relações Internacionais na Unisinos e na ESPM. Autor do livro “China e Rússia no Pós-Guerra Fria”.