Leia também: Ciclo das commodities alavancou Centro-Oeste a patamar superior à média nacional

Que fatores são primordiais na geração e distribuição de riqueza na agricultura? A simples posse da terra tem um papel no sucesso do agricultor ou seria necessário dominar algum conhecimento específico para obter os resultados dos bens sucedidos empresários do agronegócio exportadores? A agricultura como está configurada é uma ameaça real ao meio ambiente? Vários são os lugares comuns que se repetem sobre o agronegócio, a partir de um lugar de autoridade que não se sabe bem a origem.

Analisar esses mitos e comprovar sua efetividade foram os resultados da segunda mesa de debates do Seminário “O papel da agricultura para o desenvolvimento da região Centro-Oeste: a força econômica, a base social e a influência política – Pobreza e concentração de riqueza na geração de renda no campo”,  uma parceria entre a Fundação Maurício Grabois e a Secretaria de Organização do PCdoB, promovido na segunda-feira (31 de agosto), na Câmara dos Deputados, em Brasília. O evento reuniu quadros gestores, intelectuais, lideranças sociais e empresariais que apresentaram um quadro surpreendente e promissor sobre a economia do centro-oeste brasileiro.

Para tratar do tema, foram reunidos os conferencistas Evaristo Eduardo de Miranda, coordenador do Grupo de Inteligência Territorial Estratégica – GITE da Embrapa, e Eliseu Andrade Alves, um dos responsáveis pela criação da Embrapa e pela transformação do Cerrado em polo de produção agrícola. Foram convidados ainda os debatedores Maria Lúcia Cavalli Neder (reitora da UFMT) e Márcio da Silveira (reitor da UFT).

Foram conferências complementares, em que os dois pesquisadores da Embrapa acompanham os trabalhos um do outro, e podem antecipar o campo de abordagem do colega. Também foram apresentados telas de gráficos e cartografia enraizadas em pesquisas profundas e intensivas, muitas delas inéditas e bastante exclusivas, pelo acesso a que os pesquisadores têm a dados oficiais restritos.  Outra característica dos pesquisadores, enfatizada por ambos, é sua preocupação em, não apenas estudar o quadro natural (geológico, agrário, agrícola, uso e ocupação das terras), ou a infraestrutura (estrada, telecomunicações, eletrificação), para entender o perfil de agricultura e como fazê-la desenvolver-se, mas também o quadro socioeconômico (saúde, educação, pobreza), para entender as dificuldades que fazem com que não se desenvolva também o agricultor, mantendo uma estrutura de profunda desigualdade de renda e qualidade de vida no campo.

Miranda explica que Nordeste e Centro-Oeste vêm quebrando recordes de produção de alimentos, continuamente, ultrapassando o Sudeste, que também tem sua taxa de crescimento, mesmo em meio a uma crise hídrica. Por outro lado, ao contrário dos lugares comuns, ele diz que há muita área para ocupar com agricultura, ainda, mesmo com o alto nível de preservação ambiental de florestas e biomas remanescentes, sem igual no mundo, entre países de dimensões similares. O pesquisador mostrou a cartografia meticulosa do monitoramento que o governo mantém sobre cada campo agrícola cadastrado. Um mapeamento que derrubou a campanha internacional contra a soja brasileira sob a alegação de que a monocultura desse grão estava destruindo a floresta amazônica. “Quem acusa tem que mostrar onde tem soja na Amazônica, porque no monitoramento do Governo não consta nada disso”, concluiu o pesquisador.

Ele também revela por meio de dados a “mudança extraordinária” do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dessa região, a partir de 1991, assim como o avanço do Indice de Desenvolvimento do Ensino Básico (Ideb). Enquanto o Centro-Oeste tem apenas 5% da população dependente de Bolsa Família do país, sendo a maioria desses beneficiários no Distrito Federal e no Pantanal, o Nordeste reúne 51% dos beneficiários de todo o país, pelas dificuldades da região com a área agriculturável e as limitações históricas. “Esse número corresponde bem à realidade social e às coisas que têm acontecido no Centro Oeste”, afirmou.

Miranda mostrou o aumento de áreas de preservação (incluindo áreas indígenas) e assentamentos de reforma agrária, desde 1988, quando isso era bem menos significativo, e atualmente, quando a soma chega a 35,7% (conservação, indígenas, reforma agrária, quilombolas) do território nacional. No Centro-Oeste+Tocantins, os 59 assentamentos de reforma agrária, que representavam meio por cento em 1988, chegam a 4% do território, com 940 áreas. Segundo o pesquisador, 31% da região Centro-Oeste é atribuída legalmente ao Governo Federal, deixou de ser atribuição do prefeito ou governador e foi federalizada. Em estados como o Amapá ou Roraima, isso representa mais de 90%, ele lembrou. “Para circular fora dos 8% de área de sua atribuição, o governador precisa pedir autorização à Funai e outros órgãos federais”, destacou Miranda.

No entanto, no Centro Oeste ainda existe forte demanda social por aumento dessa área, tanto para conservação, quanto para terras indígenas, assentamentos agrários e quilombolas. “Hoje, no Mato Grosso do Sul, existem 98 propriedades ocupadas por indígenas. Uma questão muito séria!” Ele mostrou o mapa de demandas dos movimentos ambientalistas para áreas de conservação no Centro Oeste, que aumentaria esses territórios para 90% da área regional. “Se o Governo atendesse essas demandas, teria que eliminar 488 assentamentos de reforma agrária e 13 assentamentos quilombolas que se encontram dentro dessas áreas previstas”, salientou.

“Um mito muito evidente, nesse caso, é o de que a agricultura está expandindo área, quando, na verdade, todo ano, observamos uma redução gradual de 2 milhões de hectares”, afirma Miranda. Este dado é defendido por cartografia periódica dos campos agrícolas, conforme avançam as reservas ambientais e áreas de agricultura familiar. O Código Florestal também implicou em aumento de área de conservação, ou até recomposição, dentro de áreas agrícolas, reduzindo a área permitida para cultivo. Os pesquisadores apontam isso, ressaltando que, mesmo com todas essas áreas de santuário sem comparação com outros países do mundo, o Brasil ainda conta com muita área agriculturável a ser explorada.

O Centro Oeste também conta com obras de infraestrutura que estão transformando a logística de processamento, armazenagem e transporte da produção. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) conta com cinco mil obras na região, dentre as 50 mil de todo o Brasil. O deslocamento inédito de obras de grande porte para a região visa acompanhar a dinâmica extraordinária do crescimento do PIB regional dentro do Brasil. Segundo mostra Miranda, nada se compara no país ao crescimento dessa região entre 1960 e 2010. “22% dos pivôs de irrigação do Brasil estão no Centro Oeste e 25% dos armazens estão ali, a maioria de construção recente.”

Miranda ainda mostrou como a produtividade de grãos aumentou no Brasil, a partir do Centro-Oeste. Em casos como o algodão, que o Brasil importava, atualmente o país produz para consumo próprio e também para exportação. A moagem de cana triplicou com as vantagens que o produtor passou a ter com o etanol. Miranda salientou que procurou evitar fazer considerações analíticas para apresentar os dados e sinalizar para a apresentação do doutor Eliseu Andrade Alves, sobre os sucessos e limites da produção agrícola.

O pesquisador ilustrou com sua história pessoal a transformação revolucionária da agricultura brasileira. Na década de 1940, uma fazenda típica tinha população grande de moradores, incluindo os donos, que produziam a maior parte para consumo de substência da fazenda, vendendo as sobras. Atualmente, poucos moram na fazenda, a maioria reside na cidade, e toda a produção é vendida. 

Em seu retorno dos EUA, nos anos 1970, observou-se que havia um mito de que o Brasil tinha um grande estoque de conhecimento que não chegava ao agricultor por falta de extensão rural. “Não existia estoque de conhecimento e muito dinheiro foi tirado da pesquisa e investido na extensão rural”, lamentou. Foi dessa perspectiva que o pesquisador participou ativamente da criação da Embrapa para preencher a lacuna. Alves deu uma enorme contribuição para o avanço agrícola, inclusive por meio da irrigação no Nordeste, tornando esta uma região rica com bolsões de pobreza, enquanto antes era uma região problemática.

“A partir dos anos 1990, pensei que estávamos com uma agricultura que não precisava mais de mim, nem do Evaristo, dos intelectuais, mas os pobres da agricultura precisam de nós”, afirmou, sobre a guinada de sua pesquisa em direção ao estudo da população pobre do meio rural. Para Alves, não existe sustentabilidade ambiental sem cuidar do homem do campo. “Não existe maior inimigo do meio ambiente do que um agricultor pobre”, afirmou, sinalizando o modo como ele trata a questão ambiental.

“Em toda a modernização da agricultura brasileira a população local se beneficiou muito pouco, e essa questão passou a se tornar nossa preocupação”. Segundo ele, os fluxos migratórios em que agricultores sulistas com conhecimento tecnológico chegando ao Centro Oeste ou Nordeste, sempre geraram uma resistência da população local que não se inseriam naquela lógica de trabalho. Alves vai apontando como o conhecimento tecnológico, vindo da universidade e instituições de pesquisa, portanto da cidade, altera um quadro em que o agricultor decidia tudo por si mesmo e, agora, passa a depender do conhecimento especializado. “Os centros de decisão sobre a agricultura não estão mais no campo, mas na cidade”.

Alves teve acesso à chamada Sala de Sigilo do IBGE e, portanto, teve contato aos dados do censo de cada estabelecimento agrícola do Brasil, podendo calcular a renda bruta de cada um dos 5.500.000 agricultores. No Centro Oeste, sua planilha aponta um percentual de 48,35% de estabelecimentos considerados “muito pobres” (até dois salários mínimos) e 29,83% de pobres (2 a 10 salários mínimos), embora somadas as produções agrícolas desses 204.087 estabelecimentos, equivale a apenas 5,54% de todo o Valor Bruto da Produção (VBP) agrícola regional. Enquanto os estabelecimentos médios (19,22%) e os ricos (2,60%) são responsáveis pela produção de 94,46% do VBP do Centro Oeste. Sendo que, apenas 6.789 estabelecimentos mais ricos (2,60%), dentre a totalidade de 261.051, são responsáveis por 67,11% de toda a produção. A renda bruta não desconta os gastos com fertilizantes, maquinário ou mão de obra, entre outros insumos.

Alves explica que essa enorme concentração da produção não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. “É a modernização da agricultura, portanto a tecnologia, a responsável pela concentração e nem o crescimento da produção, e não mais a terra”, acrescentou. Ao comparar o índice Gini (nível de desigualdade de renda) de produtores com menos terra com aquele de produtores com mais terra, o índice é similar, independente do tamanho da terra.

A partir de um gráfico mostrando o avanço histórico da produção agrícola e da renda, comparado com o crescimento da terra agriculturável, Alves conta a história, desde 1975, de como as terras continuaram crescendo muito pouco, embora a produção explodisse de forma exponencial. Em outro levantamento mais complexo, o pesquisador mostra que a contribuição do trabalho para o crescimento da agricultura cai de 31,3% para 22,3%, da terra cai de 18,1% para 9,6%, um queda à metade de sua contribuição. Por outro lado, a contribuição da tecnologia sobe de 50,6% para 68,1%. 

Com essa realidade, Alves conta que a hipótese da extensão rural volta ao debate, ou seja, por falta de acesso à tecnologia, o agricultor teria dificuldades de acessar os mercados em condições de igualdade. Alves aponta que em países como os EUA, onde a extensão rural funciona muito bem, a concentração é parecida com a daqui. Por outro lado, os estados da região Sul têm uma extensão rural muito funcional, mas forçaram uma política agrícola de baixo pra cima, a partir do agricultor, das prefeituras e dos governadores do estado, que beneficiou o associativismo e o cooperativismo, combatendo as imperfeições de mercado. “Tem muita imperfeição de mercado no Sul, mas essa política ajudou a reduzí-las e a extensão rural funcionar bem”, explicou.

Com isso, a conclusão do pesquisador é de que “o que faz a extensão rural funcionar bem no país é se eliminar as imperfeições de mercado”. A extensão rural paritcular é de melhor qualidade que a extensão rural pública e isso é uma imperfeição que dificulta o acesso do pequeno agricultor. “Quem sabe o governo devesse pagar extensão particular aos agricultores da agricultura familiar ou investir mais na extensão rural pública para melhorar sua qualidade”, sugeriu.

A resultante das imperfeições de mercado, conclui Alves, é que o pequeno agricultor vende sua produção a preços menores e compra insumos a preços superiores, o que não permite que sua rentabilidade comporte a adoção de tecnologia avançada. As imperfeições de mercado roubam-lhe o lucro. Sem lucro, ninguém adota tecnologia, que é uma decisão da rentabilidade do agricultor. O pequeno agricultor não tem condições de reunir todo o conhecimento acumulado internacionalmente, criar uma linha de montagem como faz o grande agricultor, e avaliar o risco de falência de todo esse investimento. “O pequeno agricultor precisa que a tecnologia aumente a produtividade de cada hectare de terra”, afirmou.

Além da venda e compra de insumos, outras assimetrias que implicam na discriminação do pequeno produtor estão ligadas ao acesso aos financiamentos de bancos, compra de terras, facilidades em contratos e assistência técnica plena, além das dificuldades de acesso aos mercados importadores e exportadores. São dificuldades que podem ser superadas por meio de políticas públicas que favoreçam o associativismo e o cooperativismo, facilitando o acessos a esses mercados. Segundo ele, as regiões Centro-Oeste e Nordeste são as que mais têm essas distorções de mercado servindo de arapuca para os agricultures familiares. Mesmo com os avanços do Pronaf, Alves diz que o pequeno agricultor continuou fora do acesso ao financiamento de crédito, devido às regras mais facilitadas para os grandes produtores.