“A arte tem que estar presente com uma parte importante na construção de uma sociedade solidária”
No dia 15 de março de 2016, o poeta Thiago de Mello viveu e provocou fortes emoções durante as homenagens por seus 90 anos, ocorridas num sarau poético na Biblioteca Mário de Andrade. Neste vídeo produzido pela Fundação Maurício Grabois, o registro daqueles momentos e de uma entrevista exclusiva com o poeta, feita pelo secretario-geral da Grabois, Adalberto Monteiro, também poeta.
Os assuntos foram muitos, mas sempre permeados da tonalidade poética do amazonense, que pensa com imagens e sutilezas para dizer o que sente na epiderme. Foi assim, por exemplo, que ele destacou a importância de sonhar com um mundo melhor, falando de coisas que o cartão de crédito não compra, como a ternura. “Você se prolonga no gesto de dar, na alegria de quem recebeu”, resume ele, o modo como se satisfaz quando alguém fica feliz com um poema seu.
Como no poema Os Estatutos do Homem, de 1964, Thiago pensa que o dinheiro não pode comprar “o sol das manhãs vindouras”, mas pode ser uma espada na defesa da “festa do dia que chegou”. Nessa ânsia de tudo consumir e poder ser consumido, Thiago diz que “o capitalismo ameaça, mas não vence, aquilo que não se pode comprar, (…) o encontro e o abraço entre pessoas que têm o mesmo sonho”.
O poeta está sempre atento às palavras que lhe chegam à ponta da língua, pedindo até permissão para dizê-las. Sonho é uma delas. Segundo ele, essa palavra lhe sai sempre com o cuidado de não parecer algo utópico, mas algo que se realiza “com os pés plantados no chão da realidade”.
Leia aqui a edição da entrevista, por Adalberto Monteiro e Cezar Xavier, para a revista Princípios.
A cidade de São Paulo celebrou em nome do Brasil, os 90 anos do poeta Thiago de Mello. A homenagem se realizou no último dia 15 de março, na Biblioteca Mário de Andrade. Thiago de Mello, poeta, tradutor e ensaísta é autor de mais de 3 dezenas de livros. Há traduções de sua obra em mais de trinta idiomas. Como disse ele, ainda envolvido pelo transe das homenagens, ainda havia um enorme coral cantando dentro dele.
Entre as homenagens Thiago recebeu a medalha Mário de Andrade da União Brasileira de Escritores (UBE) e o título de Cidadão Paulistano pela iniciativa do vereador Jamil Murad, do PCdoB. No dia 16 de março, no hotel Jaraguá, centro de São Paulo, concedeu à Princípios entrevista exclusiva que segue. Uma entrevista que entrega mais poesia que respostas. O jovem de 90 anos não se preocupa mais em avaliar as coisas da vida, mas senti-las instintivamente.
A cadência musical de Thiago, com seus silêncios de semibreve, para expressar com precisão o sentimento; e repentes de semifusas, para dizer logo o que é apenas complementar; se completam em escalas oitavadas pra cima, quando fala de exclamações perplexas, e para baixo, quando só é possível dizer gravidades com notas profundas. No papel não é possível deliciar-se com a música do poeta, apenas ler em voz alta e tentar simular a graça de suas escolhas fonéticas.
Como se não bastasse, Thiago nos brinda ao final da entrevista, ao improvisar, já com a respiração cansada de tantas emoções, sobre uma lembrança efêmera no momento, mas eterna na existência, que expressa o vigor de sua juventude em meio ao deserto de horrores e belezas que viveu no Chile, comunicando-se com a serenidade e vibração que a Amazônia lhe reserva perto do centenário.
Princípios. Você disse para jornalistas que quando se anuncia “Thiago, 90 anos”, a expectativa é a de se deparar com um velho e nada mais, mas você rebateu dizendo que a juventude pulsa em ti. De onde vem esse impulso juvenil quando você mira o centenário?
Thiago de Mello – Nós temos que roçar o campo do milagre para responder. A razão não vai desbordar em torno da resposta, não. Acho que é até um dom. É um dom para alcançar o que está sendo construído sem você perceber, dentro de você.
Eu vou dar um testemunho que eu dou livre, isento de qualquer influência amorosa. Ontem1, o meu filho se despediu de mim; o Thiago [Thiago de Mello], que sendo meu filho é um amigo, um companheiro; ele vinha no banco de trás do carro, quando ele se despediu. Nós fomos deixá-lo no hotel, ele veio para a frente e me disse: – Pai, receba com o jeito que você tem de amar e de dar o que você está recebendo. [a homenagem pelos 90 anos, em São Paulo] Ele virou para mim e disse: – Eu acho, a opinião é minha, que você merece. Eu disse para ele: abre essa porta que eu quero te abraçar (rindo).
Ele abriu a porta e nos abraçamos no meio da rua. Foi um momento muito importante para nós dois… Eu queria que você guardasse isso e repartisse com os companheiros da Casa do Maurício2 e da sua gente íntima. É que, a delicadeza que faz você levar e dar aquilo que você está sentindo, para outra pessoa, o reconhecimento que você tem de um gesto dele, de uma atitude, de uma palavra – falada ou escrita, não importa – está se acabando.
Eu acho que o capitalismo, eu lhe digo… essa coisa do consumo, que tudo pode se consumir, está ameaçando, mas não vence! Está ameaçando aquilo que não se pode comprar: o encontro e o abraço entre pessoas que têm o mesmo sonho. Eu tenho muito cuidado com a palavra sonho e o verbo sonhar, porque parece utópico.
Princípios. Pode parecer “quimera.”
Thiago de Mello – Não é quimera! É preciso sonhar com os pés plantados no chão da realidade. Só pode sonhar com aquilo que nasce amparado pela realidade.
Princípios. Muitas vezes se diz assim: Thiago de Mello, o poeta da utopia. E é. Agora, se engana quem associar a utopia de que fala tua poesia, como sinônimo de devaneio.
Thiago de Mello – Nós chegamos a um instante em que a utopia… Vamos a esta frase que está num poema que é meu: “é a criança que dorme com fome”… Quando você chega numa realidade social que você é chamado para lutar, que é chamado para fazer sua parte…
Princípios. Na celebração dos teus 90 anos na Biblioteca Mário de Andrade, havia pessoas de todas as idades. Qual é a força dessa poesia que entrelaça diferentes gerações?
Thiago de Melo – Eu vou me referir a uma fala de uma pessoa que entrou na minha vida, seu Adalberto Monteiro. Você me disse que não pode haver divórcio entre o poeta e a pessoa, entre o cidadão e o criador. Eu vou dizer uma coisa: >>>ontem à noite, aconteceu tantas coisas que ainda estão dentro de mim, como cantando. Um grande coral, enorme, cantando dentro de mim.<<< A moça pegou minha mão, quando eu ameaçava cair no chão; mas me pegou como uma companheira. É a primeira vez que… ela não estava pegando na mão de um sujeito famoso não, era o Thiago.
Princípios. Ela não era uma tiete de uma personalidade midiática.
Thiago de Mello – Não, não. Nada disso. O riso dela…
Princípios – O contentamento.
Thiago de Melo – O contentamento, a satisfação. Palavras que ninguém usa mais: satisfação. Eu me debrucei sobre a mão dela… Que vontade de poder conversar com ela, mas não pude. Mas espero que o meu gesto com a mão dela, o meu olhar, tenham mostrado, o que eu chamo de “você se prolongar naquilo que você está recebendo”.
Você cresce para acompanhar a ternura, o respeito, a delicadeza, todas as virtudes do amor. Eu me enriqueço com isso. >>>A minha juventude não é o homem que pensa muito e sabe avaliar as coisas da vida, o que é bom, o que não é. É a minha juventude que tem força.<<< Eu sinto logo quando a pessoa vem me abraçar. Podia tirar retrato comigo? Eu digo, mas por quê? Você já leu algum livro meu? Não, não, mas eu vejo na televisão. Para mim perde o valor, mas eu respeito. Eu gosto da pessoa que vem a mim porque não precisa dizer que gosta… é a satisfação de encontrar pessoalmente uma pessoa que respeita, que admira, que tem até um certo reconhecimento. Porque isso aconteceu comigo no Brasil e fora do Brasil. Eu lembro quando eu encontrei na Alemanha, o bailarino [Rudolf] Nureyev, que estava dançando com o Balé de Moscou. Eu já tinha visto ele dançar. Tive a oportunidade de estar com ele, eu o abracei com uma gratidão, um respeito enorme. A fama é dele, não me interessa, é o que ele deu com a arte dele.
Princípios: Uma das marcas de tua obra é a bandeira de luta por uma nova sociedade, humana solidária. Então, não te parece, sobretudo devido as iniquidades do capitalismo contemporâneo, que essa marca é um dos fatores de teus poemas que foram entoados há vinte, trinta anos atrás, continuarem sendo lidos no chão deste ano 16 do século XXI?
Thiago de Mello – >>> [O poema continua a ser lido…] Desde que tenha sido escrito com a convicção, o poder, mais do que da esperança, da perseverança, de que vai ser alcançado. Porque a índole do ser humano se ruma para o amor. Acontece que a sociedade humana cria a discórdia, a desavença e afasta; mas quando é poderosa essa força, ela se mantém e ultrapassa, ela se sobrepõe às desavenças que surgem. Eu acredito muito nisto. <<<
Princípios. Você diz que os teus 90 anos te dão um sentido de urgência. Então, fale um pouco desse sentido de urgência e desses seus dias de muito trabalho depois de tudo o que você realizou.
Thiago de Mello – >>>Eu não me espantei, mas gostei muito da reação que eu tive quando, no muro para ser fuzilado no Chile, e o chefe da escolta, dos carabineiros, disse “mata aquí mismo?” Eu já estava na parede! Eu disse para mim mesmo: eu não vou morrer, eu tenho muita coisa pra fazer ainda. Eu disse isso pra mim mesmo, mas, imediatamente, ele respondeu: “No, llevemos-los al cuartel”. <<<
Eu sei que eu tenho coisas ainda a fazer. Não escondo que toda vez que eu faço isso, eu penso no livro que eu estou trabalhando, que se chama “Os outros comigo”… eu vou levar muito do que aconteceu aqui, comigo, vai entrar nesse livro, agora. O título ia ser “Eu e os outros na minha vida”, mas era muito grande e eu fui resumindo e ficou “Os outros comigo”. Porque a gente não é nada sem os outros.
Princípios. Sem amizade…
Thiago de Mello – Não, sem os outros. >>>Amizade é consequência do seu encontro com os outros, de como você parte em direção aos outros. Eu parto em direção ao abraço. Seja um homem, seja uma moça com os olhos que a Ana3 tem, seja a ternura que o companheiro veio pra mim. Eu parto para o abraço. As pessoas hoje têm muito… será que eu devo dizer? Eu acho que eu devo. As pessoas hoje têm um pouco de vergonha da ternura. Do carinho. Eu acaricio meus amigos, passo a mão no cabelo. <<<
Princípios. A tua obra ela tem vertentes entrelaçadas. Narciso Cego (1952) é filosofia em versos, a inquietação do ser ante o cosmo, o mistério e drama da existência que perseguem o ser humano desde o sempre. Nos fale um pouco dessa vertente que dominou a primeira etapa do teu trabalho…
Thiago de Mello – Você hoje me passou um livro com poemas que escrevi, chamado “Campo de Milagres” [2002], onde todo ele é de indagação, >>>”por que é que estou aqui?”, “por que é que eu vim?”, a própria explicação de eu ter chegado ao mundo. A coisa está dentro de mim. Acontece que as urgências da consciência que eu tenho do mundo que eu estou vivendo com os outros, me afastam um pouco dessa própria indagação filosófica. <<<
Eu acabo de dizer uma coisa que eu gostei de escutar que eu disse. Eu formulei em palavras aquilo que eu sinto.
Princípios. Você havia lido nesta época, Jean Paul Sartre, Albert Camus?
Thiago de Mello – Sim. A tal ponto que eu fiz a pergunta para o Camus.
Princípios. Você esteve com Camus?
Thiago de Mello – Sim. Essa pergunta eu fiz por escrito, depois conversei com ele sobre isso na França e no Brasil. Se a angústia filosófica é decorrente da própria angústia existencial. A pergunta filosófica, por mais profunda que ela seja… Porque ir à essência do ser, está como foi a essência da poesia, a essência da criação, do poder criador. Acho que está tudo bem relacionado a essa “zona do agrião”, a zona do mistério.
Princípios. E tuas “páginas-alcova” ou delicado lirismo amoroso que é outra temática que visita e revisita tua obra?
Thiago de Mello – Delicado lirismo amoroso. Eu tinha vinte e pouquinhos anos, quando eu li um livro do Wassermann, chamado O processo Maurizius, onde o avô leva o neto adolescente para ir ao Louvre. Saíram de uma cidade alemã, pegam o trem, depois vão para Paris, ao Louvre. O menino está olhando a Vênus do Botticelli. Entra uma mulher, o menino tirou os olhos da Vênus do Botticelli e foi olhando… O adolescente cresceu. Perguntou: “vovô, por que é que as mulheres são tão bonitas, hein, vovô?”. Pronto!
Princípios. Está respondido.
Thiago de Mello – Está respondido! É o encanto. >>>Eu já perguntei em lugares muito diferentes, por exemplo, entre Japão e a Floresta Amazônica, entre Rio de Janeiro e Londres. Será que as mulheres sentem isso pelos homens? Não, não. A mulher sente por outras mulheres. A beleza feminina é diferente. Eu não tenho dúvida alguma que, por maior que sejam as virtudes do homem nos seus encantamentos pessoais, a mulher tem um encanto muito poderoso. <<<
Princípios. O encanto da mulher é uma fonte de energia para tua poesia?
Thiago de Mello – É. Forte na poesia porque me afeta. Eu recebo isso, isso prolonga dentro de mim e me enriquece. Você está me tirando confidências? [risos]
Princípios. Na tua obra, aparece o cantar de amigos. Você escreve poemas para Manuel Bandeira, Rubem Braga, José Lins do Rêgo, Antônio Callado, entre tantos. Ao longo do tempo você enalteceu muito dessas pessoas com as quais partilharam de sua convivência, da sua literatura, de um espaço de afetividade contigo…
Thiago de Mello – Parece que tu soubeste o que eu acabo de escrever? Eu escrevi há uns 10 dias atrás um texto de quase quatro laudas chamado “O Dom da Amizade”. Uma coisa é o companheiro, a pessoa que se encontra. Outra é o amigo. Ou o amigo se faz assim, [de imediato]… Ou então a amizade é uma construção, a amizade pede um convívio e você vai descobrindo virtudes que se abraçam com a exigência do seu ser.
Eu acho que entre todas as virtudes que tem a mulher, a mulher é mais poderosa na permanência e na profundeza do sentimento da amizade. Embora a minha vida seja muito enriquecida por homens, amigos meus, que se interessam por mim, o verbo é “interessar”, se preocupam com a minha vida, mesmo de longe, de outros países. Chega uma carta, agora chega e-mail, chega o que for, ou chega um telefonema de preocupação. O que é isso? É o dom da amizade. >>>A amizade talvez seja a mais bela forma de amor, porque uma amizade não pede nada em troca, a amizade quer dar, e você se prolonga do gesto de dar. Você se enriquece no dar. Você se prolonga na alegria de quem recebeu.<<<
Vou repetir. Eu me enriqueço com a alegria que tu tivestes por encontrar um poema que te fez bem, ou quando me abraçaste ao conhecer-te. Poxa, valeu a pena encontrá-lo e viver esse momento, eu digo para mim mesmo.
Eu tenho um poema que eu gostaria que você lesse. Chama-se “A criação do mundo”, título dado por Armando Nogueira, desse último CD que eu fiz, é um poema sobre o amor. O mundo se recria a cada instante que floresce um amor entre duas pessoas.
Princípios. Quando se fala da poesia de Thiago, se canta a liberdade, se indaga sobre a existência, se canta o amor, se cultiva a amizade, mas falta ainda a pátria das águas.
Thiago de Mello – Pátria da Água, no singular!
Princípios. Pátria da Água, no singular. Aí vem Mormaço na Floresta (1981). Fale-nos então, a poesia nasceu ali, na exuberância da floresta e do rio, no chão daquelas riquezas. Mas ao mesmo tempo a tua poesia também tem olhos para enxergar aquela gente que vive ali, aquela população ribeirinha que numa contradição com aquela exuberância padece necessidades das mais elementares.
Thiago de Mello – Os meus poemas, os meus livros sobre a floresta, eles não se fizeram pelo fato de eu ter nascido nessa floresta. É natural você amar o lugar onde você nasceu, onde você cresceu. A natureza ajudou a formar você. As pessoas do lugar ajudaram a formar o Thiago. >>>Mas não é por eu ter nascido naquela floresta! Porque a floresta é o maior manancial de vida que tem o planeta; é o lugar mais mágico que existe, o mais poderosamente mágico, e no caso do Brasil, o mais maltratado, esquecido e degradado. <<< Ela tem a riqueza natural, os pássaros, as seivas, tem os remédios para todas as doenças que podem existir. Ela tem a riqueza que garante sustentar a vida dela e ao redor dela.
A floresta tem uma coisa que é o encantamento, realmente mágico. A maior quantidade de lendas que existe no pedaço verde do planeta, que é a floresta brasileira, um verde que cobre nove regiões da América Latina. As pessoas se acostumam com as lendas até o ponto que eu submisso, de maneira feliz fui submetido a esse poder.
Eu digo a lenda, porque a lenda é verdadeira, a lenda nasce da verdade. A tal ponto é verdade que a moça chega em casa, de repente a barriguinha dela começa a crescer e ela diz: “foi o boto, mamãe”, e a mãe acredita. Não é a mãe de São Paulo, é a mãe lá do interior. Tanto que quando a moça vai tomar banho, adolescente, hoje ainda com internet, com todo o poder de comunicação, a mãe lá do interior, na beira do rio, no cedro, lavando roupa, ela diz: “bota uma saia pra cair na água, que aqui tem muito boto”. A lenda virando a verdade do real. Eu tive uma pessoa muito querida, que viveu lá em casa quase 10 anos, fazendo tudo, a Francisca. Logo quando eu decidi morar na floresta, lá em Barreirinha, ela quis me levar para conhecer a moça que namorou com o boto. Mas como assim? Tô dizendo, com o boto. “Ele fica lá de noite, quando começa a clarear, ele sai da casa correndo e se joga no lago, no meio do caminho ele vai virando boto”. Francisca… não exis… “Existe!”. E depois você tem medo de ver. A força deles é muito grande. A Iara… tem moça, tem rapaz, tem homem, tem mulher que escuta o cântico da Iara, sobretudo no fim da tarde. Está na floresta, no Igarapé, no seu barco, na sua canoa, de repente o canto da Iara chamando. Como no Ulysses, na moça grega. As entidades da floresta. Quando fala Jurupari, o grande deus da floresta, mas tem o Curupira, que é o protetor das árvores. Tem o Matita Pereira, aquele que corre só num pé. Eu converso com pessoas que já viram, perfeitamente. Eu estava escrevendo no começo da noite, chegou dona Advertina “Ô, Poeta, vem depressa, que o Lauro chegou… Ele viu o Curupira. Ele viu o olho dele na barriga. Ele está com um febrão, ficou numa febre enorme”. Eu fui obrigado ir lá e ele disse: “Eu vi o Curupira!” E eu, não vou acreditar?
Princípios. A riqueza dessa mitologia te enriqueceu…
Thiago de Mello. Enriquece muito, porque você vê o poder da natureza. O menino, de 12, 13, 15 anos, menos. Eles conhecem aquela árvore. Aquela árvore é uma mangabeira. O chá dela serve pra isso, serve pras urinas, pra febre, pra dor não sei do quê.
Princípios. Bom, poeta, finalmente você, como tradutor….
Thiago de Mello. Como tradutor, vamos falar nisso! É preciso que o leitor reconheça que a tradução é um ato de recriação. >>>A arte da tradução é um processo de recriação de uma beleza que está ali em estado puro, original; e você tem que transformar isso, essa beleza em outra linguagem, outro idioma, outra música e com uma expressão de comunicação de outra cultura. <<< Então, a metáfora que está aqui em inglês, em japonês, em espanhol, você não pode traduzir literalmente. Você tem que recriar uma metáfora, uma imagem, que corresponda à realidade do leitor comum, mesmo traduzindo do espanhol. Entre um Pablo Neruda e um César Vallejo, um poeta das palavras contidas, indagação. E quando chegam as metáforas em metafísicas? Você de repente tem que recriar, pensando que você não vai recriar só para você, só para vocês que leem e gostam de poesia e literatura. Não, tem que ser acessível ao estudante.
Princípios. Alguém já disse que a poesia é a mais nacional das artes…
Thiago de Mello. E como você vai passar desse nacional para o universal? Eu vou ilustrar o que esse lindo ser humano que enriqueceu a minha vida … O Paulinho Neruda escreveu um poema sobre alturas de Macchu Picchu. É do Peru e ele é do Chile, países de cordilheira, vivem da neve e do deserto. Ele chileno ao escrever sobre a altura de Macchu Picchu, – aquela cidade construída pelos incas para se defender, escondida lá na altura da cordilheira -, Neruda encontrou dificuldade. Como ele, botar dentro dele a necessidade de um povo querer se esconder do inimigo criando a beleza? Que uma das coisas mais lindas é Macchu Picchu? Da arquitetura, a parte residencial, funcional e vivencial. Teve imensa dificuldade, sabe o que ele fez? Ficou três meses vivendo no Peru… (risos) Na cordilheira, lá em cima, pra aprender como aquele povo fez. Aí, ele ia criando metáforas, seis meses. A litania de Macchu Picchu.
Princípios. [Neste momento da entrevista Thiago, pede licença para contar um dos momentos “mais sublimes” de suas recordações.]
Thiago de Mello – Um dos momentos mais… Posso usar a palavra “sublime”? Vocês não vão dizer que estou metido a besta? Sublime.
Eu estava muito cansado no deserto de Atacama, no Chile, é um deserto de areia, aquela planura, areia grossa e, ali, a Cordilheira. Eu muito cansado, depois de descer da Cordilheira, me deitei. Deitei-me de banda. De repente, eu sinto vir da terra, aquele ruído, não era ruído, era o canto do coração, da batida do coração na terra, se propagou pela terra, ao redor do meu corpo. Eu sei que… o coração aqui, a cabeça ali. Bum, bum… Eu ouvi o bater, o latir, – o verbo é “latir” -, o latir do meu coração na areia do deserto. Foi uma comunhão minha com a natureza, uma coisa muito poderosa.
Eu digo que a mesma comunicação que eu tenho quando vou à Cordilheira, os lagos lá de cima, – a água é diferente -, eu tenho com a floresta, quando ando sozinho. A minha casa que o Lucio Costa fez lá na floresta, tenho duas casas lá. Ali, tem cinco acapuranas, uma árvore chamada acapurana, tem uma coroa em cima, elas se unem uma com outra, os galhos, quando eu estou lá eu sinto que elas estão me reconhecendo. Eu estou inventando? Estou, mas eu estou inventando porque elas estão querendo que eu invente. Elas que estão me fazendo sentir. A floresta tem uma vibração. Assim, a natureza comunica a você e você passa a sentir. Até uma criança recebe, quando ela já tem uns três anos, até menos, ela sabe quando é dirigida a ela um olhar, um gesto, que leve ternura, que leve carinho, que leve respeito amoroso. Como os animais têm.
Eu estou gostando desta conversa que está chegando ao fim. Vocês estão sentindo que eu estou cansado? Estou cansado desde ontem. Esse cansaço vai demorar mais uns dois ou três dias. Mas eu fiquei muito feliz de poder atender. “Pra que serve a poesia?”, perguntou uma vez o filho do poeta Eliseu Diego, um cubano. Ela serve para atender, como atende a ternura, como atende o carinho, como atende o amor.
1. A entrevista foi concedida horas após a série de homenagens de personalidades, amigos e entusiastas do poeta, ocorridas na Biblioteca Mário de Andrade, no centro de São Paulo, na noite de 15 de março.
2. Casa do Maurício é como o poeta carinhosamente se refere à Fundação Maurício Grabois.
3. O entrevistado se refere à atriz Ana Petta, que acompanhou a entrevista e participou das homenagens ao poeta.
A entrevista foi realizada pelo secretário-geral da Fundação Maurício Grabois, Adalberto Monteiro, também poeta e amigo de Thiago de Mello. A edição teve a colaboração do jornalista Cezar Xavier.
Sobre o poeta Thiago de Mello e sua obra se pronunciaram importantes personalidades: escritores e críticos, do Brasil e do exterior:
ASSISTA A ÍNTEGRA DA HOMENAGEM AO POETA NA BIBLIOTECA MÁRIO DE ANDRADE:
• Thiago de Mello é um transformador da alma. De perto ou de longe, de frente ou de perfil, por contato ou transparência, Thiago mudou nossas vidas, nos deu a segurança da alegria (Pablo Neruda).
• De Thiago de Mello escrevi uma vez que é grande poeta, um dos grandes de sua geração e de qualquer geração (Manuel Bandeira).
• Thiago de Mello é, sem a menor dúvida, um dos grandes poetas do nosso tempo. E dos mais típicos representantes da chamada “geração de 45” (Alceu Amoroso Lima).
• Thiago de Mello irrompeu na paisagem da poesia brasileira como uma força elementar: um vento rude, sacudindo as velhas árvores da literatura acadêmica (Otto Maria Carpeaux).
• Andarilho da liberdade, você tem ainda muitos trilhos a percorrer; seus braços longos, muitas crianças a abraçar; suas mãos, muitos poemas a escrever (Paulo Freire).
• Thiago de Mello, poeta, caboclo do Amazonas e cidadão do mundo (Ênio Silveira).
• Comprometido com sua terra e com sua gente, de uma vez por todas Thiago de Mello assume a expressão de um poeta verdadeiramente universal (Carlos Heitor Cony).
• Num tempo refratário à bondade, à nobreza e à verdade, a poesia de Thiago de Mello é um ato de negação da brutalidade e do desamor que esteriliza as almas e resseca os corações (Tenório Telles).