O mundo moderno permitiu o desenvolvimento pleno, pela primeira vez, das potencialidades e das contradições da forma-mercadoria. Ela esteve presente, é verdade, na grande maioria das sociedades, mas sempre de maneira marginal e limitada. A sociedade burguesa a libertou, transformando-a em princípio organizador da vida social. Marx estudou a fundo esse novo mundo. Não por acaso, começa O capital pela análise da mercadoria: é valor de uso, é valor de troca, é fruto do trabalho humano. Não pode existir no singular: só há mercadoria onde há mercadorias.

A relação mercantil mais simples é, pois, M – M, e o sentido dessa relação é claro: a troca de qualidades. Pois, considerado como valor de uso, o primeiro M (por exemplo, trigo) é necessariamente diferente do segundo (por exemplo, lã). Por outro lado, a troca só se torna possível porque os agentes nela envolvidos estabelecem um princípio de equivalência entre duas coisas distintas.

Essa troca direta, na forma M – M, jamais poderá organizar em torno de si a vida social, pois é muito limitada no espaço e no tempo: o proprietário de trigo que necessita de lã precisa encontrar, no mesmo momento, no mesmo lugar, o proprietário de lã que necessita de trigo. Se essa dupla condição não for cumprida, o ato de troca não se realiza. Por isso, a forma M – M só opera na margem da vida social.
Para que o espaço mercantil se desenvolva é necessário explicitar e desvelar aquele princípio de equivalência que, na troca simples, estava implícito e velado. Isso ocorre quando uma mercadoria qualquer passa a representá-lo. Essa mercadoria que se torna equivalente geral se chama dinheiro.

Com o tempo, ele perde o substrato material para tornar-se completamente simbólico. Quando passa a intermediar o ato de troca, este assume a forma M – D – M. O sentido da operação original (M – M) é preservado, pois também aqui os agentes partem de um dado M (por exemplo, trigo) para chegar a outro M (por exemplo, lã), qualitativamente diverso. D serve apenas como facilitador do processo: agora, o proprietário de trigo que precisa de lã não necessita mais encontrar o proprietário de lã que precisa de trigo. Ele troca sua mercadoria com qualquer pessoa, em qualquer lugar, em qualquer momento, e recebe o equivalente geral. De posse desse equivalente, compra a mercadoria que desejar, de qualquer outra pessoa, em qualquer outro lugar, em qualquer outro momento. O espaço-tempo da troca se amplia.

A DIREÇÃO DO PROCESSO aponta para um novo desdobramento. Pois logo a posse do equivalente geral torna-se mais desejável do que a posse de uma mercadoria específica: quem tem o equivalente, tem in potentia qualquer mercadoria. Grupos sociais crescentemente importantes passam a operar em um outro circuito de troca: D – M – D’. Desaparece a diferença qualitativa entre as duas pontas do processo. É de uma acumulação quantitativa que agora se trata: obter mais do mesmo (D’ deve ser maior do que D). Libertadas dos estreitos limites do valor de uso, as relações de troca se expandem ainda mais, agora colocadas a serviço da ampliação da riqueza abstrata, ilimitada por definição.

Essas passagens foram realizadas muitas vezes ao longo da história, em muitas sociedades, criando por toda parte a figura de comerciantes, atacadistas, mercadores e banqueiros. Mas, nas sociedades antigas, a acumulação de capital era sempre bloqueada num ou noutro ponto. Às vezes não havia força de trabalho disponível para produzir o que vender; às vezes não havia redes de distribuição dos produtos; às vezes não havia pessoas dotadas dos meios necessários para comprá-los; às vezes o processo ia do início ao fim, mas o empreendedor não conseguia reter consigo o lucro e reinvesti-lo, reiniciando o ciclo. Antes dos tempos modernos, esse conjunto de condições raramente se completou e nunca adquiriu estabilidade suficiente.

O que houve de novo na Europa moderna, e que está na gênese do mundo atual, foi a inclusão, no circuito do dinheiro, de três elementos que sempre haviam ficado fora dele: a força de trabalho humana, a terra e os meios de produção. Transformar coisas em mercadorias é banal, mas não é banal transformar em mercadorias os atributos fundamentais das pessoas e da natureza. Karl Polanyi chamou essa passagem de “a grande transformação” e mostrou a violência que ela implica.

SE TUDO SE TRANSFORMA em mercadoria, então o circuito mercantil reorganiza à sua imagem e semelhança, pela primeira vez na história humana, toda a vida social. Todos os agentes sociais relevantes agora incluem-se nele. Eis a nova forma, muito mais abrangente: D – [FT + T + MP] – M – D’, em que FT é a força de trabalho, T é a terra e MP são os meios de produção. Agora, toda produção é produção de mercadorias e, para lembrar Piero Sraffa, a produção de mercadorias passa a ser feita com mercadorias. As coisas não mais se transformam em mercadoria; elas são mercadoria. O circuito mercantil se completou, como a cobra que mordeu o próprio rabo, e assim se tornou irreversível. Nenhum poder externo pode mais destruí-lo.

O estudo específico desse circuito, na sua forma mais avançada, é o objeto de O capital. Marx demonstra que a sociedade organizada para produzir essa acumulação ampliada de riqueza abstrata desenvolverá, pelo menos, quatro características novas:

(a) será compelida a aumentar incessantemente a massa de mercadorias (M), seja pelo aumento da capacidade de produzi-las, seja pela transformação de mais bens, materiais ou simbólicos, em mercadoria; no limite, tudo será transformado em mercadoria;
(b) será compelida a ampliar o espaço geográfico inserido nesse circuito, de modo que mais riquezas e mais populações dele participem; no limite, esse espaço será todo o planeta;
(c) será compelida a criar permanentemente novos bens e novas necessidades; como as “necessidades do estômago” são limitadas, esses novos bens e novas necessidades, criados para dar sustentação a uma acumulação ilimitada, serão, cada vez mais, bens e necessidades voltados para a fantasia, que também é ilimitada;
(d) será compelida a contrair o tempo em que o capital existe encarnado em coisas e valores de uso (FT, MP, M), de modo a mantê-lo, tanto quanto possível, na sua forma preferencial de riqueza abstrata (D).

Essas características vão definir a dinâmica fundamental da nova sociedade. Ela aponta para três direções: uma revolução técnica incessante (voltada para aumentar a potência produtiva, expandir o espaço e contrair o tempo da acumulação), uma profunda revolução cultural (para fazer surgir o homem portador daquelas novas necessidades em expansão) e a formação do sistema-mundo (para incluir o máximo de populações no processo mercantil).

Um enorme esforço de pensamento foi feito durante cem anos – mais ou menos entre 1780 (William Petty) e 1880 (Léon Walras, Carl Menger, William Jevons, Alfred Marshall) – para justificar a existência e demonstrar o potencial dessa sociedade sem mecanismos visíveis de regulação, na qual tudo é móvel e “o que é sólido desmancha no ar”. Uma sociedade muito estranha, quando vista em perspectiva histórica.

O discurso que afirma a possibilidade de uma sociedade desse tipo funcionar tornou-se conhecido como economia política, uma ciência europeia e moderna por excelência.

MARX FEZ A CRÍTICA da economia política. Não vamos revisitá-la aqui. Basta lembrar a engenhosa solução que concebeu para o enigma da acumulação capitalista. Ao contrário do que dizia a economia política de seu tempo, o excedente, que impulsiona essa acumulação, não pode se formar no próprio mercado, pois ali as trocas, sendo troca de equivalentes, resultam em um jogo de soma zero entre compradores e vendedores. O excedente só se forma porque existe uma mercadoria especial – a força de trabalho – cujo consumo é realização de trabalho, ou seja, produção de valor. Ao ser consumida, ela produz mais valor do que o valor que possui.

Aqui aparecem os fundamentos da teoria da exploração, que legitimou e impulsionou o movimento operário, especialmente na Europa, e foi considerada o eixo em torno do qual deveria girar a luta de classes no mundo contemporâneo. Para demonstrar a exploração do trabalhador, a teoria do valor é necessária, pois a exploração é apresentada como sendo a extração de mais-valor.

Foi nessa análise que o movimento socialista se baseou para definir sua estratégia: o capitalismo seria superado por uma luta de classes voltada para eliminar a exploração do trabalho (ou seja, a extração de mais-valor). Essa superação ocorreria nas sociedades capitalistas maduras, onde essa forma de relação social estaria generalizada e plenamente desenvolvida. Não fazia sentido esperar que as sociedades mais atrasadas parissem algo mais avançado do que as mais avançadas.

É bem verdade que a história real subverteu esse esquema, com a revolução ocorrendo na Rússia atrasada, mas isso não foi suficiente para alterar bases conceituais tão solidamente demonstradas. A superação do capitalismo na Europa permaneceu sendo o evento aguardado por todos os socialistas, mesmo depois da grande cisão do movimento operário.

Essa leitura é o pano-de-fundo que conduziu o movimento socialista aos grandes impasses atuais. O próprio Marx, porém, nos permite dar um passo à frente. Sabemos hoje que o Marx da maturidade, que fez a crítica da economia política (ao contrário do Marx do Manifesto), não imaginou que o capitalismo necessitasse de uma exploração crescente dos trabalhadores, em termos absolutos. Foi um crítico feroz da “lei de bronze dos salários”, defendida por Lassalle, que apontava para um empobrecimento inevitável do proletariado; sempre divergiu de Bakunin, que associava pobreza e revolução; formulou com grande consistência teórica a possibilidade de caminhos alternativos para o desenvolvimento capitalista, baseados na expansão da mais-valia relativa (que introduz a possibilidade de um conflito de classes de soma positiva, para usar uma expressão da moderna teoria dos jogos).

EIS, PORÉM, O MAIS IMPORTANTE: o percurso teórico de Marx não foi interrompido na análise do modo de produção capitalista, tal como ele aparece na forma D – [FT + T + MP] – M – D’. Seu verdadeiro lance de gênio foi ter percebido que o capitalismo não se deteria aí, pois a acumulação realizada assim força o capital a entrar e sair permanentemente de sua forma líquida, imobilizando-se sucessivamente em “coisas”. É uma forma de acumulação arriscada e que contém em si, do ponto de vista do capital, muito tempo morto. Ao deixar a forma D, o capital não tem garantias de que ressurgirá ampliado em D’. Inúmeras causas, analisadas em detalhe em O capital, podem impedir o desfecho exitoso do processo.

Marx concluiu que o capital procuraria ampliar suas possibilidades de acumulação na forma D – D’, na qual ele nunca deixa de existir como riqueza abstrata. E anteviu: quando essa forma se tornasse predominante, a civilização do capital entraria em crise. Pois, ao repudiar as “coisas”, o trabalho e a atividade produtiva, ao afastar-se do mundo-da-vida, a acumulação de capital não poderia mais ser o eixo em torno do qual a vida social se organiza. A forma-mercadoria – que, levada às últimas consequências pelo capitalismo, havia reorganizado profundamente as sociedades humanas e impulsionado o desenvolvimento da técnica – teria então de ser superada ou, pelo menos, remetida novamente a um lugar secundário, cedendo a vez a algum outro princípio de organização da vida social.

O fim do capitalismo, assim concebido, não decorre do aumento nos níveis absolutos de exploração do trabalho. É de uma crise civilizatória muito mais ampla que agora estamos tratando. Marx não precisaria estudar tanto, nem ter grande talento, para anunciar a superação de um sistema que, a partir de certo ponto, não pudesse mais funcionar ou causasse o empobrecimento permanente dos trabalhadores. Nesse caso, o desenlace seria óbvio. O gênio de Marx foi ter percebido que o capitalismo se esgotaria, mesmo dando certo. Ou melhor: se esgotaria justamente por dar certo, por desenvolver plenamente suas potencialidades.

É VERDADE QUE O MARX economista e militante enfatizou a crítica à exploração do trabalho pela extração de mais-valor, talvez pelo seu potencial mobilizador do movimento operário. Porém, o Marx filósofo – que é o mais importante – apontou também outra coisa: mantida sob o comando do capital e aprisionada nos sucessivos rearranjos da forma-mercadoria, a capacidade criadora da humanidade – capacidade que decorre da sua liberdade essencial, ontológica – poderia tornar-se muito mais destrutiva agora, quando a potência técnica da própria humanidade já estaria muito mais desenvolvida.

Dependendo de quais forças sociais predominassem, essa potência técnica expandida poderia ser colocada a serviço da liberdade (com a abolição do trabalho físico, cansativo, mecânico e alienado) ou da destruição (com a tendência ao desemprego e à guerra).

Esta me parece ser a disjunção mais relevante proposta por Marx e sua profecia mais certeira. O capitalismo venceu. Estamos, finalmente, em um sistema-mundo em que tudo é mercadoria, em que se produz loucamente para se consumir mais loucamente, e se consome loucamente para se produzir mais loucamente. Produz-se por dinheiro, especula-se por dinheiro, faz-se guerra por dinheiro, mata-se por dinheiro, corrompe-se por dinheiro, organiza-se toda a vida social por dinheiro, só se pensa em dinheiro. Cultua-se o dinheiro, o verdadeiro deus da nossa época – um deus indiferente aos homens, inimigo da arte, da cultura, da solidariedade, da ética, da vida do espírito, do amor. Um deus que se tornou imensamente mediocrizante e destrutivo. E que é insaciável: como vimos, a acumulação de riqueza abstrata é, por definição, um processo sem limites.

O capitalismo venceu. Talvez, agora, possa perder. Pois, antes que o novo possa surgir, Hegel dizia, é preciso que o antigo atinja a sua forma mais plena, que é também a mais simples e mais essencial, abandonando as mediações de que necessitou para desenvolver-se. O momento do auge de um sistema, quando suas potencialidades desabrocham plenamente, é o momento que antecede seu esgotamento e sua superação. A crise atual é, exatamente, a crise que decorre da predominância da acumulação D – D’.

A necessidade de encontrar outra forma de organização social não decorre primordialmente de os trabalhadores serem mais ou menos explorados – este não é o aspecto essencial da questão. Decorre do fato de a humanidade, agora manejando técnicas tão poderosas, precisar finalmente assumir o comando de sua própria história, se quiser sobreviver. Esse passo pressupõe que o princípio organizador da vida social deixe de ser a acumulação de capital e a forma-mercadoria. É este o desafio que está posto para nós neste século.

César Benjamin é cientista político e editor da Contraponto editora.

EDIÇÃO 100, MAR/ABR, 2009, PÁGINAS 84, 85, 86, 88