Não dá para falar de gestão pública na área habitacional para municípios de pequeno, médio ou grande porte sem abordarmos os problemas e as carências que assolam o Brasil desde a chegada dos portugueses.

As desigualdades sociais e a concentração de renda, características da sociedade brasileira, se manifestam fisicamente nos espaços segregados das nossas cidades. Nelas, as carências habitacionais constituem, talvez, o seu maior problema. O déficit habitacional brasileiro atinge hoje números catastróficos. São 7,9 milhões de famílias que necessitam de moradia, e mais de 16 milhões de famílias que moram em domicílios inadequados. Sendo as famílias de baixa renda as que mais necessitam de habitação, pois 84% das que necessitam de moradia têm renda de até três salários mínimos. A maior parte da necessidade de novas moradias e de domicílios inadequados concentra-se nas regiões Sudeste e Nordeste, que agregam a maioria da população urbana do país, conforme demonstrado abaixo:

O Brasil terminou o século XX com 3.905 favelas espalhadas pelo país, segundo o Censo de 2000. As taxas de crescimento dos domicílios favelados superam, e muito, as taxas totais de crescimento dos domicílios totais no País. Entre 1991 e 2000, enquanto a taxa de crescimento domiciliar era de 2,8%, a de domicílios em favelas era de 4,18% ao ano. Entre 1991 e 1996 houve um aumento de 16,6% do número de domicílios em favelas; entre 1991 e 2000, de 22,5%. Estima-se haver, hoje, cerca de 1,96 milhões de domicílios em favelas.

Essa imensa dívida social acumulada no Brasil em relação à carência habitacional também é fruto da falta de políticas públicas de desenvolvimento urbano sustentáveis; desarticulação institucional entre os três níveis de governo; redução do volume de crédito imobiliário e dos investimentos públicos; e aplicação dos recursos em desacordo com o perfil do déficit habitacional.
Um dos grandes desafios de hoje é criar uma política habitacional de âmbito nacional que transponha governos, com participação social, e que esteja articulada com políticas habitacionais estaduais e municipais, tendo uma política de Estado.

Qualquer política habitacional, em qual esfera for, passa necessariamente pela esfera municipal e deve estar articulada com a política habitacional local. A importância da política habitacional no desenvolvimento urbano, econômico e social das cidades se relaciona com o processo de reprodução social do espaço urbano, onde as autoridades municipais devem estar muito bem atentas a alguns aspectos nas dimensões social e territorial:

a) DIMENSÃO SOCIAL – não pode ser compreendida, simplesmente, como uma política de construção de conjuntos habitacionais, reurbanização e requalificação de edificações. Ela tem a ver mais com a satisfação de uma das necessidades básicas da população. Um povo com carências habitacionais sérias é um povo amputado em sua capacidade de desenvolvimento e de progresso social e cultural.

A dimensão social da política da habitação pode ser desdobrada em três aspectos distintos:
– Uma política de subsídio em que se mobilizem recursos para viabilizar a produção subsidiada de habitação para população de menor renda, atendendo à parcela da população sem condições de adquirir, locar ou arrendar uma moradia no preço de mercado;
– uma política de redistribuição do rendimento, que se resume em facilitar o acesso à habitação (através de bonificações financeiras, incentivos fiscais, subsídios de renda etc.) de uma parte importante da população trabalhadora, que tem dificuldade cada vez mais para fazer face à carestia dos preços no imobiliário;
– por fim, uma política de integração social, destinada a combater a formação de guetos na periferia das grandes cidades, os fenômenos de segregação urbana; os desequilíbrios sociais e urbanísticos, com as respectivas conseqüências ao nível da criminalidade e da degradação social.

b) DIMENSÃO TERRITORIAL – é inegável o efeito exercido pelas políticas habitacionais sobre o território da cidade. A falta ou a insuficiência de uma política habitacional contribui para a consolidação da irregularidade. Uma política habitacional “eficiente”, mas desarticulada do planejamento urbano do território, pode gerar conjuntos habitacionais problemáticos. Nesse sentido, a articulação da política habitacional com os instrumentos de ordenação do território contidos no plano diretor pode contribuir para combater a segregação social e espacial, desenvolvimento anárquico das periferias e assentamentos irregulares, reabilitar centros urbanos e históricos, e com isso criar condições para que as cidades se reproduzam de forma mais igualitária.

A política de habitação não se resume à mera construção e gestão dos conjuntos habitacionais e reurbanização de assentamentos precários; ela envolve aspectos da política redistributiva do Estado e da política de integração social, de orientações de coesão social e territorial.

O plano diretor deve incidir diretamente nas diretrizes locais da política habitacional, induzindo o repovoamento das áreas centrais, destinando áreas infra-estruturadas na cidade para provisão de habitação de interesse social, democratizando o acesso ao solo urbano e à própria cidade à população de baixa renda; reconhecendo a necessidade de inserção social e espacial dos assentamentos informais à malha urbana e à própria vida da cidade, entre outros.

O município deve estabelecer em seu planejamento urbano as estratégias para enfrentar os problemas da demanda por moradia social através principalmente de instrumentos de gestão urbana estabelecidos nos seus respectivos planos diretores. Instrumentos previstos no Estatuto das Cidades, como o IPTU progressivo e as ZEIS, devem estar previstos nos planos diretores e realmente serem implementados, pois terrenos livres e desimpedidos para construção são cada vezes mais raros e caros nos centros urbanos. Estes terrenos não devem servir de mera especulação financeira, sendo valorizados por investimentos públicos feitos ao seu redor. Eles devem ter, sim, uma destinação prevista em lei, cumprindo sua função social.

Deve-se ter bem diagnosticados os problemas habitacionais do município, indicando a demanda reprimida por faixa de renda e as necessidades de urbanizações, produções habitacionais, melhorias e ampliações habitacionais e, ainda, a necessidade de regularização fundiária. Essas necessidades devem estar previstas em um plano municipal de habitação que contenha ações de combate e prevenção a esses problemas, integradas com a União e o estado, elencado as áreas e regiões prioritárias de atuação, articulando-as a outras áreas do desenvolvimento urbano.

O plano de habitação tem que prever a participação de todos aqueles que atuam na área do desenvolvimento urbano, como entidades acadêmicas, movimentos sociais, empresários, representantes dos trabalhadores e gestores municipais, em um fórum de discussão permanente acerca dos problemas de desenvolvimento urbano da cidade. Assim poderá garantir, além da participação e controle social, a continuidade de uma política pública debatida por todos. Tendo uma política habitacional como uma verdadeira política pública e não um mero plano de governo.

Daniel Nolasco é da Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades

EDIÇÃO 97, AGO/SET, 2008, PÁGINAS 55, 56, 57