A trajetória da luta pela reforma urbana inicia-se na década de 1960 – época em que os segmentos progressistas da sociedade brasileira demandavam reformas estruturais na questão fundiária. A expressão “reforma urbana” surgiu no Seminário de Habitação e Reforma Urbana, realizado em 1963 em Petrópolis (RJ). O documento produzido nesse encontro, com o objetivo comum de diagnosticar e elaborar soluções de enfrentamento dos problemas urbanos daqueles tempos, aborda temas como a precariedade da habitação, a urbanização predatória e a especulação imobiliária. O texto também sinaliza a necessidade de possibilitar processos participativos e a desapropriação para fins da reforma urbana etc.

Àquela altura, o panorama urbano brasileiro já era outro. Marcadas por um êxodo rural altíssimo entre 1940 e 1991 – quando a população urbana passou de 31,2% para 75% do total nacional –, as cidades brasileiras cresceram desprovidas de infra-estrutura mínima. Ao longo de décadas, o poder público no Brasil não tratou a questão do desenvolvimento urbano de forma correta ou prioritária, pois privilegiou os interesses da especulação imobiliária em detrimento dos interesses do povo brasileiro.

O sentido da reforma urbana visa a um conjunto de ações, medidas e integração das políticas públicas em que a população tenha acesso universal aos serviços e equipamentos sociais para construir uma “cidade para todos”, de forma democrática e com efetiva participação popular. A Constituição Federal de 1988, apesar de não atender a todos os anseios, foi um avanço significativo ao estabelecer, pela primeira vez, uma política pública que trate a questão urbana voltada a atender os objetivos da reforma urbana, em atendimento às reivindicações do Movimento Nacional da Reforma Urbana. Após a Constituinte, organizou-se o Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) com o objetivo de articular, em todo o país, as entidades e os movimentos sociais. Até os dias de hoje, esse fórum continua a jogar um papel importante.

Outra conquista, após mais de dez anos de lutas dos movimentos sociais, foi a aprovação do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/01), que regulamenta na Constituição o Capítulo da política urbana. Os artigos 182 e 183 da Carta Magna de 1988 definem suas diretrizes gerais para a promoção da política urbana, voltada para garantir o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade e da cidade, de modo a garantir o bem coletivo. O Estatuto das Cidades lançou grandes desafios para a sua efetiva implementação.

A Lei 11.124/05 também teve longa tramitação (13 anos) no Congresso Nacional. A medida dispôs sobre o Sistema Nacional de Interesse Social (SNHIS), além de ter criado o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e seu Conselho Gestor. Essa lei foi uma das grandes conquistas dos movimentos sociais, pois partiu de um projeto de lei de iniciativa popular, que contou com mais de um milhão de assinaturas.

A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a presidência, em 2002, significou também um grande avanço para a política urbana. O governo Lula, ouvindo os anseios e a reivindicação do movimento pela reforma urbana, criou o Ministério das Cidades – que, por sua vez, convocou e realizou, ainda em 2003, a I Conferência Nacional das Cidades. Esse encontro mobilizou mais de 300 mil pessoas no Brasil inteiro e elegeu o Conselho Nacional das Cidades.

Os movimentos sociais lutam para que a reforma urbana seja uma política de Estado. Além da melhora na qualidade de vida das pessoas, a reforma das cidades é fator fundamental de geração de emprego e crescimento econômico. Solucionar o déficit habitacional qualitativo e quantitativo, a falta de saneamento básico e ambiental, combater a violência que ceifa milhares de vidas, principalmente da nossa juventude, solucionar o caos e a violência no trânsito e a falta de transporte público são desafios que devem ser enfrentados com planejamento e investimentos públicos. Cabe ressaltar que o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) é um instrumento valioso nesse sentido.

A imagem negativa das cidades

Todos os dias, a grande mídia mostra a situação de várias cidades e regiões que vivem sob o domínio da violência, do crime organizado e de milícias. Ganham destaque as regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e de São Paulo pelo fato de nessas regiões existirem as maiores concentrações populacionais. As maiores organizações criminosas também se organizaram ali há mais tempo.

Porém, ganha destaque atualmente a escalada de violência nas demais regiões metropolitanas, como Salvador, Recife, Belo Horizonte e Porto Alegre, entre outras. É um sintoma da situação em que vive os trabalhadores de forma geral nessas áreas. A falta de emprego e de melhores condições econômicas faz com que as pessoas se tornem reféns dessas situações, especialmente a juventude, que é levada para a marginalização por falta de melhores perspectivas.

A falta de urbanização e de equipamentos sociais aumenta o risco sob o qual essa população vive. São grandes ocupações sem unidades de saúde, de educação, de espaços de convívio cultural e esportivo, entre outros. Com isso, as pessoas vivem sem o mínimo de estrutura que as possibilite ter acesso ao conhecimento, a uma melhor ocupação do tempo e, acima de tudo, aos direitos básicos à sobrevivência humana. Em geral, todas as áreas dominadas pelo tráfico ou pelas milícias, onde existe a prostituição infantil e outras organizações, são regiões em que o poder público não está presente. Com isso, essas organizações assumem o papel de Estado paralelo, para criar e fazer cumprir suas “leis”.

Uma presença maior do Estado, um maior investimento em programas sociais e de infra-estrutura associada às necessárias políticas de crescimento econômico, com geração de emprego e melhoria no poder aquisitivo dos trabalhadores, são medidas necessárias para tratar de forma concreta a violência urbana. Medidas como o grande aumento de serviços privados de segurança, a crescente criação de condomínios fechados, o engaiolamento das escolas e organizações públicas e o aumento dos efetivos militares são paliativos – não resolvem o problema de forma estrutural e na origem. É necessária uma política de segurança pública democrática, baseada nos direitos humanos.

Todos esses temas devem ser alvo de investimentos maciços das três esferas do Poder Público, do descontingenciamento orçamentário e da redução do superávit primário. Por isso, a luta pelas mudanças na política econômica também faz parte da pauta da luta pela reforma urbana.
Nos últimos anos, muitas organizações têm participado dos espaços de debate e construção de uma plataforma pela reforma urbana. As três conferências realizadas pelo Ministério das Cidades – e também as conferências do gênero realizadas pela Câmara dos Deputados – foram espaços de elaboração ampla e coletiva de vários movimentos populares e setores da sociedade que debatem o tema, com destaque para o FNRU. O resumo das principais propostas consensuais está relacionado abaixo.

Habitação

É o tema de maior visibilidade política na luta pela reforma urbana, porque mobiliza mais e expressa de forma direta a ausência de política urbana. As estatísticas atuais mostram como moram – ou se moram – os trabalhadores de uma cidade. Dados do IBGE apontam para um número de mais de 8 milhões de famílias sem moradia (déficit quantitativo) e mais de 12 milhões morando em condições subumanas (déficit qualitativo). Não é só construindo moradia popular que o problema habitacional será resolvido – é necessário também um amplo programa de urbanização e de regularização fundiária. O poder público deve aplicar os dispositivos do Estatuto das Cidades para combater a especulação imobiliária e abrir um banco de terras para a construção de novas unidades habitacionais e do conjunto de equipamentos públicos de saúde e educação, culturais e esportivos, indispensáveis para a melhoria na qualidade de vida.

Para isso, é muito importante ampliar os recursos não-onerosos a serem aplicados no Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social. O FNHIS está voltado para investimentos em construção e urbanização habitacional para famílias que ganham até três salários mínimos – o que representa 82% do déficit habitacional, segundo o IBGE. Outra medida importante é a aprovação de um Projeto de Emenda Constitucional (PEC) que vincule 2% do orçamento público federal e 1% do orçamento dos estados e municípios para a Habitação de Interesse Social (baixa renda) – o que permitirá que o déficit habitacional seja realmente enfrentado em médio prazo. Nesse sentido, foi lançada em junho a Campanha Nacional pela Moradia Digna, que prevê recolher mais de um milhão de assinaturas para encaminhar ao congresso nacional pela aprovação dessa PEC.

Saneamento

O Brasil ainda apresenta dados alarmantes de déficit no acesso aos serviços básicos de saneamento, revelados pelo fato de 33% da população brasileira não terem acesso ao abastecimento de água e somente 30,9% serem atendidos pela rede de esgotamento sanitário. Nos últimos anos, através sobretudo do PAC, constata-se um aumento no volume de recursos para financiar obras de saneamento básico. Porém, muitas cidades brasileiras não podem acessar esses recursos devido ao alto nível de endividamento. Ressalte-se que o conceito de saneamento envolve o abastecimento de água potável, de coleta e tratamento de esgoto, coleta e tratamento de resíduos sólidos e de manuseio da águas fluviais.

Uma vitória em favor dessa luta foi a aprovação da Lei.11.4445/07 – o novo marco regulatório do saneamento básico. A lei visa à universalização do acesso aos serviços de saneamento básico, abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo de resíduos sólidos e de águas pluviais, além de regulação dos serviços, planejamento, participação e controle social. Foi uma conquista que contou com a mobilização e o papel ativo de vários movimentos populares. No entanto, ainda é preciso – e urgente –regulamentar essa lei, para que seus instrumentos sejam efetivados, garantindo assim mais investimento nesse setor e também o combate ao déficit. A elaboração do plano nacional e dos planos estaduais e municipais de saneamento é outra prioridade inadiável.

Trânsito e transporte

Nas décadas anteriores à atual, seguindo a concepção elitista do consumismo e do individualismo, os governantes abandonaram ou deixaram em segundo plano os investimentos em ferrovias, metrôs, corredores exclusivos de ônibus, ciclovias e demais meios de transportes coletivos ou não-poluentes. Em vez disso, aplicaram investimentos públicos na construção de novas avenidas, viadutos e túneis, para que as pessoas pudessem transitar com seus veículos cada vez mais modernos, inovadores e caros. Nas rodovias ou nas ruas das cidades as novas máquinas – quando não ficam literalmente paradas no trânsito – estão envolvidas em acidentes.

Já as ferrovias – fundamentais em país de dimensão continental como o Brasil – foram sucateadas e privatizadas, a exemplo de empresas de trens urbanos e de transporte público municipais nas regiões metropolitanas. Os investimentos no sistema metro-ferroviários não são suficientes para dar conta da demanda de milhões de habitantes. Em Paris, o sistema de metrô tem cerca de 215 quilômetros de extensão para atender aproximadamente a 2,5 milhões de pessoas da região metropolitana. O metrô da Cidade do México tem mais de 250 quilômetros e pode atender a aproximadamente 19 milhões de pessoas de sua região metropolitana. Enquanto isso, o metrô de São Paulo – o maior do Brasil – tem somente 61,3 quilômetros para atender a mais de 18 milhões de pessoas da região metropolitana. No Distrito Federal, há 42 quilômetros de metrô para uma população de aproximadamente 2,5 milhões de pessoas.

Entre várias outras medidas, além de investimentos em transporte público metroviário, é necessário aumentar faixas exclusivas para os ônibus, diminuindo assim o tempo da viagem; aumentar os terminais de integração entre ônibus, metrô e trem; aumentar o número de ciclovias para milhões de pessoas que utilizam bicicleta como meio de transporte; e baratear as tarifas, como forma de incluir milhões de pessoas que não têm recursos e ofertar vantagens para que as pessoas passem a utilizar o sistema, em vez de lançar mais automóveis particulares às ruas.

Com a criação do Ministério e do Conselho das Cidades, iniciou-se a elaboração do marco regulatório do setor, que busca construir uma nova política, para inverter a atual lógica. A não-aprovação ainda desse marco é um prejuízo grande – a proposta está tramitando no Congresso Nacional sob o número do PL 1687/2007.

Integração das políticas

Todas as políticas ligadas à reforma urbana devem ser planejadas e executadas de forma articulada e integrada, com a elaboração dos Planos Diretores, que devem ser com caráter participativo e popular. Só assim as cidades serão planejadas de forma mais humana e de acordo com os interesses do conjunto da sociedade e, acima de tudo, dos trabalhadores. Hoje em dia, esse planejamento segue a lógica e os interesses do mercado especulativo e econômico, alijando a população da construção das cidades. Em ano de eleições municipais, essa deve ser uma importante plataforma de debate dos setores mais progressistas e organizados, no sentido de garantir que a propriedade cumpra seu papel social, como preconiza o Estatuto das Cidades.

Participação popular

Em uma sociedade onde existem os conflitos de interesses das classes sociais, a participação popular nos espaços de elaboração e controle social das políticas públicas é necessária. Essa participação fortalece a democracia participativa e torna-se um importante instrumento de fortalecimento das organizações sociais e populares. As conferências de políticas públicas tornaram-se importantes conquistas desde a promulgação da Constituição de 1988 e foram ampliadas no governo Lula; foram mais de 44 conferências, que reuniram milhões de pessoas, debatendo temas variados e colaborando na elaboração das políticas públicas. Cabe ressaltar que os movimentos sociais não devem ter participação nessas conferências como o único instrumento de mobilização e articulação. A melhor e maior forma de mobilização e luta política continua sendo nas ruas.

Na área da reforma urbana, a realização das três edições da Conferência das Cidades contribuiu na formulação das políticas, na definição de programas e prioridades, e foram espaço de pressão política dos movimentos sociais. Todo o processo de realização das conferências e da constituição do Conselho das Cidades é amparado em um decreto presidencial. Portanto, a necessidade de um projeto de lei que regulamente o processo dessas conferências e dos Conselhos, com caráter deliberativo, e a criação do Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano são fundamentais e têm sido uma bandeira de luta de todas as organizações que lutam pela reforma urbana.

A Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam) vem contribuindo, orientando e mobilizando o movimento comunitário para esse conjunto de questões que compõem a plataforma de luta pela reforma urbana. A unidade das entidades é fundamental para continuarmos ampliando essas conquistas. Para a Conam, essa luta tem de ser articulada com as mobilizações e bandeiras da CMS (Coordenação dos Movimentos Sociais), que buscam mudanças estruturais e podem permitir avanços na luta pela reforma urbana e no conjunto das lutas dos trabalhadores e do povo brasileiro.

Bartiria P. Lima da Costa é presidenta da Conam e conselheira do Conselho Nacional das Cidades.

EDIÇÃO 97, AGO/SET, 2008, PÁGINAS 28, 29, 30, 31, 32