1 Essas palavras de Josué de Castro sintetizam não apenas a gênese do Recife, mas da quase totalidade das cidades brasileiras; a criação, portanto, do ambiente urbano que hoje concentra 80% da população e abriga – ao lado das atividades produtivas e da reprodução do capital – a vida social, política, cultural, a convivência, o conflito, as aspirações, as dores e as esperanças de um povo que teima em lutar pela construção de um novo e promissor destino. Daí a oportunidade de se retomar o propósito da reforma urbana, num instante em que brotam as possibilidades de um novo ciclo de transformações na sociedade brasileira.

A transformação da sociedade, nas circunstâncias e no horizonte visível atuais, significa essencialmente a transição do modelo de desenvolvimento herdado, profundamente marcado pelo ideário neoliberal, a um novo projeto de nação, calcado no crescimento econômico sustentável, com distribuição de renda, valorização do trabalho e do meio ambiente, soberano e democrático.

Cenário de desigualdades

Preliminarmente cabe anotar a relação estreita entre o padrão de vida na cidade e a natureza do desenvolvimento do país. O Brasil hoje é essencialmente urbano. Em apenas cinco décadas, processou-se uma fantástica inversão da relação entre a população rural e a urbana, motivada pela industrialização que começou a tomar corpo nos anos 1930 e pela ausência de uma reforma agrária distributiva – ambos fatores de transferência acelerada de populações da área rural para as cidades.

Se a indústria tem, historicamente, o seu locus na cidade, e atrai contingentes sequiosos de oportunidades de trabalho; a impossibilidade de acesso à terra pelos que nela querem e necessitam trabalhar decorrente da persistência do monopólio da propriedade rural, por seu turno, empurra milhões de brasileiros para a periferia dos centros urbanos. Com efeito, em 1940 residiam nas cidades apenas 31% dos brasileiros; por volta dos anos 1980, já se encontravam mais de 75% da população.

Em 2000, já se estimava em 82% a população urbana, segundo os critérios do IBGE.Essa rápida ocupação do território urbano se deu (com raríssimas exceções) de maneira desordenada e desigual, refletindo os traços essenciais do capitalismo de tipo dependente, precocemente monopolizado, concentrador da produção, da renda e da riqueza, e socialmente excludente que aqui se desenvolveu. O crescimento industrial se apoiou em grande medida no baixo valor da mão-de-obra abundantemente disponível, sem a contrapartida de oferta suficiente de habitação, equipamentos e serviços e condições sanitárias que propiciassem qualidade de vida aos trabalhadores. Tanto que, nas duas últimas décadas e meia – mesmo com a queda das taxas de crescimento demográfico e a expansão populacional migrando das áreas centrais para as periferias urbanas – a precariedade das condições de vida da imensa maioria dos habitantes das cidades continua prevalecendo. Esse quadro de desigualdade sócio-espacial é a representação do país que somos. Como bem assinala Milton Santos, “(…) há nessa desordem a oportunidade intelectual de nos deixar ver como o território revela o drama da nação, porque ele é, eu creio, muito mais visível através do território que por intermédio de qualquer outra instância da sociedade” 2.

A dimensão territorial do drama urbano brasileiro fica mais evidente quando se considera a existência de grandes aglomerados urbanos, dos quais vinte e seis detêm o status de Região Metropolitana, correspondendo a pouco mais de 460 municípios, que compartilham problemas estruturais como déficit habitacional, precariedade dos transportes e de saneamento, desemprego e crescente violência criminal.
Dessa realidade, prenhe de contradições, emerge a necessidade da reforma urbana.

Em apenas cinco décadas, processou-se uma fantástica inversão da relação entre a população rural e a urbana, motivada pela industrialização

Uma reforma em construção

Num determinado sentido é possível afirmar que a reforma urbana está em curso e é produto de uma luta de mais de quatro décadas, que se inicia nos anos 1960, como parte do movimento pelas chamadas reformas de base, sob o governo João Goulart. O Seminário Nacional de Habitação e Reforma Urbana, ocorrido em 1963, no Hotel Quitandinha em Petrópolis, propõe que o governo envie ao Congresso Nacional um Projeto de Lei nesse sentido e se torna, assim, o primeiro marco histórico dessa luta (que, vale observar, até então não constava da plataforma reformista, como se constata no Programa Mínimo elaborado por Celso Furtado, por solicitação do presidente da República, destinado a unir as forças governistas no pleito de 1962) 3. Arrefece com a instauração do regime militar; ressurge nos anos 1970 através das lutas de associações de bairros por moradia, regularização dos loteamentos clandestinos, pelo acesso aos serviços de educação e saúde, e a implantação de infra-estrutura nas áreas de ocupação; e nos anos 1980, no bojo do processo constituinte, ganha força com a criação do Movimento Nacional pela Reforma Urbana. Alcança expressivas vitórias com a aprovação, em 1979, da Lei 6766, que regula o parcelamento do solo e criminaliza o loteador irregular – com a introdução do capítulo temático específico na Constituição de 1988 (artigos 182 e 183) 4 – e, onze anos após, com a promulgação da Lei 257, de 10 de julho de 2001, denominada Estatuto da Cidade.

Demais, com a assunção de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da República, foi criado o Ministério das Cidades precisamente destinado a implementar os propósitos essenciais da reforma urbana, que chegou a ensaiar um Plano Nacional de Desenvolvimento Urbano voltado para a habitação de interesse social, saneamento e regularização fundiária.

Nesse trajetória de mais de quatro décadas, evoluem, concomitantemente, as bases objetivas que justificam a necessidade da reforma; o seu conteúdo teórico e a sua abrangência política. Assim, do Seminário do Quitandinha (de 1963) ao Movimento Nacional pela Reforma Urbana e o Fórum Nacional pela Reforma Urbana (criados nos anos 1980), verifica-se uma significativa evolução conceitual que procura dar conta das novas e complexas demandas decorrentes do rápido e desordenado crescimento das cidades. Inicialmente toda a ênfase era dada ao planejamento territorial e ao problema da moradia. Apenas na década de 1980 foram incorporados problemas como a crise de financiamento do Estado, o crescimento das zonas de ocupação ilegal, o empobrecimento da população, a fragmentação sócio-territorial, a ineficiência das políticas públicas em vigor – ao que se contrapunham os chamados direitos urbanos, a função social da propriedade e a introdução de instrumentos de participação na gestão pública.

Desse modo, a emenda popular apresentada à Assembléia Constituinte, que reuniu 131 mil assinaturas 5, expressava os fundamentos de uma pretendida reforma urbana, que Ermínia Maricato (citada por José Roberto Bassul)6 resume nos seguintes pontos: “(…) Em relação à propriedade imobiliária urbana – instrumentos de regularização de áreas ocupadas. Captação de valorização imobiliária. Aplicação da função social da propriedade. Proteção urbanística, ambiental e cultural. Em relação à política habitacional – programas públicos habitacionais com finalidade social. Aluguel ou prestação da casa própria proporcionais à renda familiar. Agência nacional e descentralização na gestão da política. Em relação aos transportes e serviços públicos – natureza pública dos serviços sem lucros, com subsídios. Reajustes das tarifas proporcionais aos reajustes salariais. Participação dos trabalhadores na gestão do serviço. Em relação à gestão democrática da cidade – conselhos democráticos, audiências públicas, plebiscitos, referendo popular, iniciativa legislativa e veto às propostas do legislativo” 7.

Estudiosos da matéria são unânimes ao considerar que embora em termos não exatamente fiéis ao que propunha a emenda popular da Reforma Urbana, a Constituição de 1988 deu um imenso passo adiante. Aborda o “direito urbanístico” (art. 24, I) e dedica um capítulo específico à “política urbana” (arts. 182 e 183); estabelece a “função social” da propriedade urbana, e mesmo da cidade, e remete ao Plano Diretor a tarefa de concretizar esses princípios.

Num determinado sentido é possível afirmar que a reforma urbana está em curso e é produto de uma luta de mais de quatro décadas

Estatuto da Cidade

O Estatuto da Cidade dá concretude ao citado capítulo de política urbana da Constituição. Responsabiliza os municípios pelo cumprimento dos dispositivos que regulam a função social da cidade e da propriedade urbana. Para tanto, contém um elenco de instrumentos legais que permitem ao poder local intervir sobre os vários processos de ocupação e uso do território e introduz novos paradigmas de planejamento e de gestão.

Nas palavras de Raquel Rolnik, esses instrumentos “situam-se em três campos: um conjunto de novos instrumentos de natureza urbanística voltados para induzir – mais do que normatizar – as formas de uso e ocupação do solo; uma nova estratégia de gestão que incorpora a idéia de participação direta do cidadão em processos decisórios sobre o destino da cidade e a ampliação das possibilidades de regularização das posses urbanas, até hoje situadas na ambígua fronteira entre o legal e o ilegal” 8.
Num sentido mais amplo, o Estatuto da Cidade é uma ferramenta apta a promover o pleno desenvolvimento da função social da cidade, mediante a democratização da gestão pública; a solução do conflito fundiário; o combate à especulação imobiliária e a sustentabilidade econômica, social e ambiental dos espaços urbanos.

Seus diversos dispositivos são uma espécie de contraversão do planejamento tecnocrático e dos mecanismos de degradação da vida urbana engendrados pelo modelo de desenvolvimento de cunho neoliberal. Conspiram, por assim dizer, em favor da criação de um ambiente urbano sintonizado com um outro projeto de desenvolvimento do país, soberano, democrático e socialmente justo.
Assim, a iniciativa popular na formulação de leis, as audiências públicas para exame do Plano Diretor e da Lei Orçamentária, as Conferências e Conselhos de política urbana introduzem a concepção democrática de gestão pública.

A obrigatoriedade do Plano Diretor para cidades com mais de vinte mil habitantes e para as consideradas de especial interesse turístico ou que abriguem empreendimentos impactantes do ponto-de-vista ambiental recoloca a importância do planejamento local.
A regularização de áreas informais (favelas) faz-se possível pela ampliação da aplicabilidade do usucapião especial.

A preservação de terrenos ociosos em mãos do capital imobiliário para fins de especulação é combatida através do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, do IPTU progressivo no tempo e da desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública.

O Estatuto da Cidade é uma ferramenta apta a promover o pleno desenvolvimento da função social da cidade, mediante a democratização da gestão pública; a solução do conflito fundiário; o combate à especulação imobiliária e a sustentabilidade econômica, social e ambiental dos espaços urbanos

São igualmente instrumentos democráticos: a regularização da posse (à semelhança do usucapião de imóveis privados) de imóveis públicos ocupados há mais de cinco anos sem oposição através da concessão de uso especial para fins de moradia; o direito de superfície, que viabiliza a transferência, gratuita ou onerosa, por escritura pública, do direito de construir desvinculado do direito de propriedade do terreno; o direito de preempção, que dá preferência ao poder público na aquisição de imóveis urbanos (para ampliação do estoque de terrenos públicos); a outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso, que possibilita ao município estabelecer determinado coeficiente de aproveitamento dos terrenos a partir de cujo limite o direito de construir excedente deve ser adquirido do poder público; as operações urbanas consorciadas, que ensejam intervenções articuladas entre o poder público e a iniciativa privada; a transferência do direito de construir, que rebaixa os valores para fins de desapropriação; o estudo de impacto de vizinhança, que protege a população em relação a atividades ou empreendimentos lesivos à qualidade de vida da população; o consórcio imobiliário, que permite ao proprietário transferir seu imóvel ao poder público e receber, em contrapartida, pagamento através de unidades imobiliárias urbanizadas ou edificadas.

A Lei dos Consórcios Públicos

O Estatuto da Cidade não dá conta, entretanto, da integração regional do planejamento e das ações consorciadas no sentido do compartilhamento do desenvolvimento entre as cidades integrantes de um mesmo aglomerado urbano – necessidades decorrentes da explosiva realidade sócio-espacial das Regiões Metropolitanas, a que já nos referimos antes. Problemas estruturais vivenciados por cidades limítrofes ou integrantes de uma mesma região reclamam soluções que envolvam os três entes federativos – a União, os estados e os municípios.

As experiências práticas de integração metropolitana ainda são muito incipientes. Implicam verdadeira engenharia política que articule os diversos atores – econômicos, sociais e as instituições públicas.
A Lei 11.107, de 6 de abril de 2005, que dispõe sobre normas gerais de contratação de consórcios públicos, regulamentada pelo Decreto 6.017, de 17 de janeiro de 2007 procura responder a essa demanda.

É a denominada Lei dos Consórcios Públicos, que possibilita quatro tipos de consórcios: entre municípios; entre os municípios e o estado; entre o estado e a União; entre os três entes, União, estado e município – mediante adesão voluntária e submissão a regras de funcionamento que preservam a autonomia de cada ente federado consignada na Constituição.

Uma luta nacional

Contabilizados os instrumentos disponíveis e identificado o poder local como principal responsável pela aplicação desses instrumentos, estaria equacionada a reforma urbana?

Evidentemente, não. Primeiro, porque a existência desses instrumentos legais por si mesma não resolve a questão – é preciso haver, em cada município, condições políticas e gerenciais para que eles sejam aplicados. Segundo, porque intervenções de fôlego destinadas a mudar o panorama físico e social das cidades brasileiras jamais serão concretizadas a partir apenas do poder local, individualmente – porque dependeriam das circunstâncias e da correlação de forças de cada município; porque nos grandes aglomerados metropolitanos é indispensável a intervenção dos governos estaduais (legalmente responsáveis pelas Regiões Metropolitanas); e principalmente porque a empreitada há de ser parte indissociável do projeto nacional de desenvolvimento.

A universalização do acesso a bens e serviços e a incorporação de milhões de brasileiros ao sistema produtivo demandam o fortalecimento do Estado nacional como coordenador e indutor do desenvolvimento

Não é mais possível promover o crescimento econômico desconhecendo a realidade urbana brasileira, nem tampouco tentar solucionar os graves problemas de habitação, saneamento, transporte, segurança e meio ambiente que afligem as populações urbanas apartando-os do modelo de desenvolvimento e da democratização da sociedade.

A universalização do acesso a bens e serviços e a incorporação de milhões de brasileiros ao sistema produtivo demandam o fortalecimento do Estado nacional como coordenador e indutor do desenvolvimento.

Isto posto, urge levantar a bandeira da reforma urbana e debater amplamente seu conteúdo entre os variados segmentos da sociedade civil (o pleito de outubro deve colocar a questão em relevo) e reclamar junto ao governo federal um amplo e consistente Plano Nacional de Desenvolvimento Urbano.

Luciano Siqueira é vice prefeito de Recife

Notas

1 Castro, Josué de. Fatores de localização da cidade do Recife – um ensaio de geografia humana. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1948.
2 Santos, Milton. Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal. São Paulo, Record, 2000.
3 Furtado, Celso. A fantasia desfeita, Paz e Terra, São Paulo, 1989.
4 Senado Federal: Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988.
5 Jornal da Constituinte, Brasília, 1987. 30/08.
6 Bassul, José Roberto. Reforma Urbana e Estatuto da Cidade.
7 Maricato, Ermínia. “Reforma Urbana: Limites e Possibilidades. Uma Trajetória Incompleta” . In Ribeiro, Luiz César de Queiroz e Orlando Alves dos Santos Jr. (orgs.). Globalização, Fragmentação e Reforma Urbana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
8 Rolnik, Raquel.: Estatuto da Cidade – instrumento para as cidades que sonham crescer com justiça e beleza.

EDIÇÃO 94, FEV/MAR, 2008, PÁGINAS 19, 20, 21, 22, 23