Em nossa história, muitas vezes direcionamos nossa melhor energia para disputar com os companheiros de luta. Temos de evitar, de maneira contundente, o risco permanente que assola as esquerdas. Nos dias que correm, não podemos restringir nossas alianças aos eventos eleitorais, mas alicerçá-las sobre sólidas e renovadas análises da conjuntura nacional e internacional e, a partir daí, respeitando nossas diferenças e características, definirmos programas comuns para o Brasil.

O governo Lula representou um grande avanço, permitindo efetivo combate às desigualdades e consolidação de um desenvolvimento sustentável

O Estado

O governo Lula representou um grande avanço, permitindo efetivo combate às desigualdades e consolidação de um desenvolvimento sustentável. Essas conquistas, porém, embora representem uma aproximação de horizontes sempre almejados pelas esquerdas, ainda são incipientes se vistas pela ótica da democratização do país e sedimentação de direitos. Mesmo considerando que os movimentos sociais não são mais criminalizados e que tem sido possível, por meio de legítimas lutas sociais, o desenho de novos direitos, a plenitude democrática ainda é algo distante.

Temos de considerar que o Estado brasileiro se consagrou como espaço privilegiado de domínio privado. Essa capacidade das elites brasileiras de privatizar o espaço público e, sobretudo, o próprio Estado, advém da natureza absolutamente clientelista do nosso sistema político-partidário, que oferece aos cidadãos um modelo de relação privada destes com sua representação política e, em decorrência disso, um aumento do abismo na relação sociedade civil/Estado.

Surge daí uma cultura política desprovida de sentido público, tendo dificultado a emergência de uma burocracia pública dotada de racionalidade e legalidade necessárias ao cumprimento de tarefas eminentemente públicas. Com isso, o Estado se organizou sobrepondo funções e competências e negando aos seus servidores a oportunidade de uma qualificação permanente. Essas lacunas cristalizaram a idéia de um Estado prestador de serviços a um cliente sem personalidade; um consumidor que não é portador de direitos.

Para falarmos de reformas democráticas, numa evidente oposição à pauta neoliberal, precisamos compreender as origens de nossos problemas e, também, as origens desta pauta. Desde a redemocratização, para falar do último ciclo, temos buscado a construção de um aparato legal que conceba como legítima e provável a participação ativa de novos atores sociais. Na Constituinte de 1987 já éramos portadores de uma perspectiva de reforma do próprio Estado e do sistema político.

É preciso considerar que o final dos anos 1980 nos ofereceu uma grave e recessiva crise econômica, inflação gigantesca, tendência à redução do parque produtivo e a herança do autoritarismo. Sendo assim, nossa construção democrática se deu permeada pela perene privatização do espaço público, por crises intermitentes e por um relativo despreparo para uma ruptura drástica com as tradições autoritárias. De certa maneira, a Constituição de 1988, que ofereceu muitos avanços à sociedade brasileira, foi também resultado dessas tradições, celebrando, no que diz respeito ao sistema político, certa transição conciliadora.

No período que se seguiu não vimos a reconstrução do Estado sob a ótica da implementação de um padrão de racionalidade que permitisse a democratização e descentralização de suas estruturas. Com o neoliberalismo dos anos 1990, aprofundou-se o quadro de esvaziamento da política, com fragilização dos movimentos sociais (hoje parcialmente recuperado), e o engrandecimento das razões de mercado.

Ao contrário do que pode parecer, porém, esse desenho não é pintado apenas com cores trágicas, mas também com matizes de esperança e oportunidades, evidenciando a possibilidade de resgate do que Hanna Arendt chamava de “dignidade da política”. No Brasil do mercado, do clientelismo e da desigualdade, há crescente presença de forças políticas sociais que já deram mostras, sobretudo com a eleição e reeleição de Lula, de que as ondas não nascem apenas quando as pedras são jogadas no meio do lago. Podem surgir também quando caem em suas margens. Por isso estamos aqui.

Com o neoliberalismo dos anos 1990, aprofundou-se o quadro de esvaziamento da política, com fragilização dos movimentos sociais (hoje parcialmente recuperado), e o engrandecimento das razões de mercado

Reformas Democráticas

É preciso romper com tais tradições e as enfrentar conjuntamente, não como um só partido, o que não seria possível, mas como uma frente portadora de um conjunto de propostas que podem renovar a democracia brasileira e, por conseguinte, suas instituições.

Mas é possível ir além. A definição do que são as reformas democráticas prioritárias para o país deve se fazer acompanhar da definição de suas prioridades e táticas. É preciso saber quais lutas terão como arena principal as ações de governo e quais serão travadas direta e primeiramente pelas forças progressistas de nossa sociedade.

A proposta de reformas democráticas não faz sentido apenas para a disputa eleitoral, mas, sobretudo, para disputar o sentido em que pretendemos conduzir o país. É necessário pensar num outro tema que, embora não seja uma reforma propriamente dita, é um elemento fundamental para a garantia da sustentabilidade de nosso desenvolvimento (não é disso que falamos?) e uma inescapável exigência ética. Refiro-me à proteção da biodiversidade.

Proteção da Biodiversidade – Temos visto uma permanente agressão aos nossos biomas. A Mata Atlântica tem apenas 7% de sua configuração original. O Cerrado tem sido destruído. O pantanal tem sofrido arriscado desmatamento nas cabeceiras dos rios que correm para a planície, o que, conseqüentemente, tem comprometido todo o sistema hídrico que alimenta a sua diversidade. Este quadro nos coloca diante do desafio de pactuarmos sobre o modelo de desenvolvimento que queremos e aceitaremos. É preciso discutir isso seriamente com toda a sociedade e propor um grande pacto em torno de uma regulamentação que nos proteja de nós mesmos, sem impedir o Brasil de crescer, mas, também, sem que acionemos a bomba relógio. Devemos considerar, além disso, que esse debate está diretamente relacionado com a idéia de consolidação do espaço público do qual tratamos aqui, em evidente detrimento da volúpia das elites predadoras.

Reforma da Educação – O governo Lula já avançou muito nisso e é preciso continuar avançando num modelo educacional em que os alunos “aprendam a aprender, aprendam a ser, aprendam a fazer e aprendam a viver juntos”, como já fora dito pelo programa de governo de 2006. Não podemos mais ver a educação ser tratada de maneira compartimentada, mas consolidar a perspectiva de constituição de um sistema de educação, garantindo o acesso à escola e, principalmente, à educação de qualidade, sob uma perspectiva democrática e com ampla participação da sociedade.

O pacto Todos pela Educação é um esforço nessa direção. Estou certo de que é possível fazer ainda mais e mobilizar todo o país nessa direção, estabelecendo objetivos, metas e sanções que garantam tal transformação.

Reforma Urbana – É preciso combinar a expectativa de crescimento do país com a sustentabilidade das cidades. Isso significa amplo investimento do Estado em oferta de moradia digna para a população, reduzindo drasticamente o custo com habitação, e consolidando ampla e completa rede de saneamento básico que afete de maneira positiva a saúde da população e a proteção do meio ambiente. Se considerarmos que 80% da população brasileira vivem em zonas urbanas e que as grandes cidades oferecem condições críticas de vida, devemos conceder a este tema a urgência devida. A boa notícia é que o PAC já sinaliza com o investimento de R$ 106,3 bilhões em habitação, mas é possível e necessário ir além.

Reforma Agrária – É preciso combinar os investimentos em agricultura, tão importantes para a garantia de segurança alimentar, geração de empregos e divisas para o país, com a promoção de uma reforma agrária que signifique geração de renda, desconcentração da posse da terra e fortalecimento da agricultura familiar. Para isso, é preciso implementar uma nova matriz legal e institucional, resultado de um amplo processo de debates no país, com participação do parlamento. É fundamental que se efetive o princípio constitucional da função social da propriedade, usando dos meios legais para isso.

Reforma Tributária – A derrubada da CPMF no final do ano passado evidenciou, mais uma vez, o distorcido sistema tributário que temos e a urgência em modificá-lo – além do claro descompromisso dos partidos de oposição com a saúde pública e políticas públicas redistributivas. Para corrigirmos este quadro não basta que discutamos alterações pontuais, mas, sim, o reformulemos completamente, desde sua concepção, de maneira tal que seja um instrumento de combate à sonegação e, de certa maneira, distribuição de renda.

É preciso que a cobrança de tributos se concentre mais sobre quem tem maior renda e riqueza acumulada, onerando menos quem produz riqueza e gera empregos. Precisamos propor instrumentos eficazes que promovam justiça e, ao mesmo tempo, garantam condições do Estado brasileiro continuar agindo na promoção de políticas públicas democráticas e estimuladoras da cidadania.

Comunicação – um país que se pretenda democrático deve cuidar da democratização de seus meios de comunicação. No Brasil, as grandes empresas de comunicação nasceram e/ou cresceram à sombra dos esquemas políticos tradicionais da direita. Isso significou a aversão ao controle social. Cada vez mais serviram-se e foram servidores dos interesses e personagens de nossa ilustrada elite.

Hoje, ao propormos um pacote de reformas democráticas, devemos colocar em primeiro plano a democratização da comunicação, garantindo o acesso da população às redes públicas e comunitárias e a um conteúdo capaz de transmitir a diversidade e pluralidade de nossa cultura. Ao mesmo tempo, o acesso às tecnologias digitais de comunicação deve ser encarado como estratégia para a garantia de direitos e construção da cidadania, em vez de mero fator de formação de consumidores. É preciso constituir um novo modelo institucional de caráter “democratizante”, apoiado no processo de convergência tecnológica e estimular a democratização dos três sistemas de comunicação previstos na Constituição por meio de medidas que fortaleçam a radiodifusão pública e comunitária, a inclusão digital, os sistemas estatais, as produções regional e independente e a competição no setor. É preciso, também, regulamentar o artigo 221 da Constituição que estabelece os princípios para a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão, estimulando a produção independente e regional, assim como consolidar o modelo de radiodifusão comunitária, garantindo sua expansão e funcionamento.

Reforma Política – Deixei este ponto para o final para que pudesse ser mais preciso. Em primeiro lugar, quero esclarecer que a minha posição pessoal e, principalmente, a posição do PT é pela tramitação imediata de uma Reforma Política que permita um fortalecimento dos partidos, a adoção de financiamento público exclusivo de campanhas eleitorais, o voto para os parlamentos em listas pré-ordenadas, o fim das coligações nas eleições proporcionais, a revisão do papel do Senado – considerando a duração do mandato, a eleição de suplentes e seu caráter de câmara revisora –, a garantia da fidelidade partidária e o rigoroso combate à corrupção.

Como dissemos em nosso 3º Congresso, realizado no último ano, o financiamento da política não deve contribuir para a privatização do Estado, mas para a preservação de seu caráter público, razão pela qual o financiamento público exclusivo de campanhas, combinado com o voto em listas pré-ordenadas que contemplem a representação de gênero, raça e etnia, devem ser urgentemente implantados no Brasil. A existência de instituições republicanas fortes é a principal garantia de que os interesses privados não subjuguem os interesses públicos.

Cabe, neste momento, a definição de nossa melhor tática. O 3º Congresso Nacional do PT lançou uma campanha pela convocação de uma Constituinte Exclusiva para tratar desse tema. Para isso, porém, precisamos superar os marcos do parlamento, onde a reforma das regras da política será sempre condicionada aos interesses imediatistas do universo parlamentar. Propomos, portanto, a convocação de um plebiscito para o próximo ano para que a população possa, de maneira autônoma e esclarecida, debater o atual sistema política e aprovar (ou não) a convocação de tal constituinte.

Afirmamos ainda mais nossa luta pelo Socialismo, entendido também como socialização da política, já que recupera a idéia de uma cidadania ativa, reconhece a democracia como espaço de explicitação de dissensos e propõe a ampliação da participação popular e controle social do Estado

Temos de considerar, contudo, que a ampliação real de canais de diálogo entre nossos partidos não pode prescindir desse tipo de debate. Temos consciência de que, para avançarmos nesse conjunto de propostas, precisamos estar unidos e convictos de um projeto de desenvolvimento, no sentido mais amplo do termo, para o Brasil. Não trato aqui, portanto, de um desenvolvimento mesquinho e economicista, mas um desenvolvimento que resulte em melhoria das condições de vida para nossa população, com justiça, liberdade e democracia.

É nesse ponto que afirmamos ainda mais nossa luta pelo Socialismo, entendido também como socialização da política, já que recupera a idéia de uma cidadania ativa, reconhece a democracia como espaço de explicitação de dissensos e propõe a ampliação da participação popular e controle social do Estado.

Entendemos que as reformas tratadas aqui devem apontar inequivocamente para isso, o que só acontecerá se formos verdadeiramente ousados e generosos. Se não soubermos somar nossas forças não teremos forças para continuar construindo um novo Brasil.

Ricardo Berzoini é Presidente Nacional do PT

EDIÇÃO 94, FEV/MAR, 2008, PÁGINAS 13, 14, 15, 16