Caio Prado escreveu sobre temas muito diversos e teve uma produção vasta. Obras que vão de filosofia a relatos de viagem, passando por livros de economia e artigos sobre geografia, formam as facetas diversas de um intelectual com um conhecimento enciclopédico.

No entanto, nessa produção de caráter multidisciplinar, o historiador é que se destacou. A obra principal de Caio Prado Junior é Formação do Brasil Contemporâneo (FBC), publicada em 1942. Livro que sobreviveu ao tempo é a referência correta para quem quer discutir criticamente a contribuição do autor para o entendimento do Brasil. Nenhum outro escrito marxista foi capaz de articular de modo tão completo as diversas determinantes da sociedade colonial. Suas outras obras, algumas até mais expostas ao debate público, como A Revolução Brasileira, são subsidiárias da visão principal sobre o país exposta em FBC.

Este artigo buscará discutir o legado de Caio Prado a partir de uma abordagem crítica de sua obra principal, interagindo sempre que necessário com o debate historiográfico que ela provocou. Tentaremos demonstrar como as conclusões de Formação do Brasil Contemporâneo são a base fundamental das suas elaborações posteriores.

Historiador comunista e militante

Para entender o lugar de Formação do Brasil Contemporâneo, é importante entendermos seu autor. Como afirmou Florestan Fernandes, em uma homenagem a Caio Prado, “quando se pensa em Caio Prado Junior, como em qualquer outro intelectual de grandeza criativa, inventiva, é muito importante chegar à pessoa, àquele que produziu a obra. É ali que está a chave do enigma” (1).

Caio Prado Junior nasceu na cidade de São Paulo, em 11 de fevereiro de 1907, filho de família tradicional e abastada que já dera políticos, fazendeiros, intelectuais. Foi um homem de grandes posses durante toda a sua vida. Fez os estudos primários em casa e freqüentou mais tarde o Colégio São Luiz, dos jesuítas, até hoje existente em São Paulo. Mais tarde foi com o irmão à Inglaterra, onde estudou por um ano. De volta ao Brasil, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo.

Em 1928, ainda bastante jovem, inscreve-se no Partido Democrático e nele terá sua primeira experiência de militância política. Em um comício em favor da candidatura de Júlio Prestes – candidato situacionista à presidência –, Caio Prado, ainda meninote, dá vivas a Getúlio Vargas. Tal peripécia lhe valeu sua primeira prisão.

Decepcionado com o Partido Democrático e com as medidas da Revolução de 1930, da qual fora um entusiasta, ele filia-se ao Partido Comunista do Brasil, em 1931. Registrava sempre aos amigos a tristeza de ter esquecido o nome do garçom espanhol que o havia recrutado.

Pouco mais tarde, já portador de maior experiência política, ele foi um dos principais dirigentes da Aliança Nacional Libertadora, como seu vice-presidente em São Paulo. Depois da derrota da tentativa revolucionária de 1935, Caio Prado é preso e condenado a dois anos de prisão. Consegue liberdade e vai para a França, onde se integra ao Partido Comunista Francês. Na fronteira entre França e Espanha faz um trabalho clandestino de apoio à luta contra Franco. Em 1939, ainda com a ditadura de armas em riste, ele volta ao Brasil. Continua seu trabalho militante semiclandestino até que a repressão se afrouxa com a entrada do Brasil na guerra, ao lado da URSS.

Nas eleições de 1945, quando o Partido Comunista obtém votação expressiva, ele é eleito deputado estadual por São Paulo, onde integrará uma bancada com mais seis companheiros.
Foi este Caio Prado, que havia vivido esta experiência política, quem escreveu, no início da década de 1940 o clássico Formação do Brasil Contemporâneo, seu livro mais importante.

O sentido da colonização

A idéia-força que perpassa FBC e dá rumo a toda a obra de Caio Prado é a de que houve um sentido, uma linha-mestra na formação do Brasil. Numa passagem, já clássica, o autor afirma:

“Se vamos à essência de nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isso. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido” (2).

O autor percebeu como impulso formador do que viria a ser a nação brasileira uma refração do processo de expansão do capitalismo mercantil. Assim, a grande expansão comercial que acabou por integrar todo o planeta, a partir da Europa do século XV, foi o impulso fundamental da colonização. Nas palavras de Caio Prado: “(…) a ocupação e povoamento do território que constituiria o Brasil não é senão um episódio, um pequeno detalhe daquele quadro imenso”.

Este “sentido da colonização”, para nosso autor, não é apenas o movimento que deu impulso à ocupação do território e à organização da produção. Ele é uma chave interpretativa poderosa, verdadeira coluna vertebral do processo formativo do país. Esta característica, de um país que se formou voltado essencialmente para as necessidades externas, estranhas ao país e ao seu povo, se manteve fortemente, como uma poderosa sobrevivência do tempo colonial. Livrar-se desta amarra era, para Caio Prado, o desafio fundamental do processo de constituição da nação. Caracterização do modo de produção

Para Caio Prado Junior – justamente por ter se constituído como parte da vertiginosa expansão comercial européia –, o Brasil é capitalista desde seu início.

Esta caracterização de Caio Prado, baseada na idéia de sentido da colonização exposta em Formação do Brasil Contemporâneo, seria desenvolvida com mais força no ensaio polêmico A Revolução Brasileira, e se desdobraria em um programa político bastante equivocado que rejeitava a urgência de uma reforma agrária profunda, por negar a existência de um campesinato relevante; caracterizava como negativo qualquer tipo de desenvolvimento industrial que absorvesse capital estrangeiro; e negava na prática a existência de frações da burguesia e a utilização de suas contradições como forma de fazer avançar a luta revolucionária. A origem destes equívocos situa-se em duas interpretações equivocadas, das quais trataremos a seguir.

Apesar de estar correto ao demonstrar a inexistência de um modo de produção feudal no Brasil, Caio Prado construiu uma interpretação circulacionista para a caracterização do modo de produção estabelecido na colônia. Na abertura do capítulo “Comércio” de FBC ele afirma:
“A análise da estrutura comercial de um país revela sempre, melhor do que a de qualquer um dos setores particulares da produção, o caráter de uma economia, sua natureza e organização.

Encontramos aí uma síntese que a resume e explica. O estudo que vamos empreender do comércio colonial em princípios do século passado virá assim como coroamento e conclusão de tudo quanto se tratou acima” (3).

A idéia defendida por ele de que o comércio internacional dava sentido à colonização brasileira é correta. Atendendo às necessidades dessas transações internacionais é que se constituiu o tripé fundamental da produção no país até 1888: grande propriedade, trabalho escravo e monocultura. No entanto, é preciso perceber que a partir do momento do estabelecimento desse tripé a economia colonial foi ganhando complexidade, dinâmica interna própria. Mais importante do que isso: para o sistema poder ser reproduzido estabeleceram-se relações de produção, com destaque para as constituídas entre senhores e os escravos. Essas relações de produção estabelecidas – absolutamente preponderantes em uma sociedade onde o trabalho escravo era praticamente generalizado – são o elemento fundamental na caracterização de um modo de produção.

Caio Prado e a corrente de pensamento constituída a partir de suas obras, ao desvendar os mecanismos de inserção da colonização brasileira no processo formativo do capitalismo, estabeleceram um dos pilares importantes para a compreensão do processo formativo da nação. No entanto, a visão caiopradiana acabou por absolutizar este aspecto, construindo uma interpretação “circulacionista”, que deu ênfase menor à questão das relações de produção estabelecidas entre senhores e escravos na caracterização do modo produção.

Estabelecer a relação entre o modo de produção escravista e suas poderosas articulações com a economia mundo continua sendo uma tarefa em aberto para a historiografia. Até agora o debate preferiu erigir muros entre a interpretação mais voltada para as determinações externas e a mais voltada para as interpretações internas. Há uma síntese explicativa possível que só será alcançada se superados os termos dogmáticos do debate acadêmico atual.

Segundo equívoco de Caio Prado, que o conduziu aos erros presentes em A Revolução Brasileira: a dificuldade em perceber o processo de ampliação do mercado interno, de complexificação da economia e de industrialização, que se verificou no país desde o início do século XX. Ao invés de perceber as mudanças o autor via um aprofundamento do problema, um certo fortalecimento dos resquícios do sistema colonial:
“(…) o imperialismo representa a última fase deste processo; e no que diz respeito às colônias e ao sistema internacional de equilíbrio econômico resultante do capitalismo naquele apogeu de sua carreira, já não se tratará mais como no passado de monopolizar o comércio de artigos coloniais, e sim de dominar as atividades convenientemente no sentido de produzirem e canalizarem em benefício dos detentores do capital ( e do grande capital financeiro em nossos dias) a maior soma possível de mais valia” (4).

Em 1977, quando o processo de industrialização e modernização do país já havia alcançado uma etapa avançadíssima Caio Prado ainda afirmava:

“Essencialmente, com as adaptações necessárias determinadas pelas contingências de nosso tempo, somos o mesmo do passado. Senão quantitativamente, na qualidade (…) Embora em mais complexa forma, o sistema colonial brasileiro se perpetuou e continua muito semelhante. Isto é, na base, uma economia fundada na produção de matérias-primas e gêneros alimentícios de mandados nos mercados internacionais” (5).

A obra de Caio Prado, basilar para a compreensão do Brasil, padece, como podemos constatar, de uma falsa idéia de permanência da realidade colonial. O “sentido da colonização” explicou grande parte da realidade brasileira até determinado momento, mas a conclusão do processo de formação da nacionalidade, de desenvolvimento econômico, de criação de um mercado interno poderoso, de integração do orgânico e do inorgânico na sociedade de classes, acabou por encerrar a validade dos conceitos ali empregados.

Ele percebe com grande antecipação a invalidade da idéia de que resquícios feudais deveriam ser eliminados por uma revolução nacional antifeudal, mas encontra na economia brasileira resquícios de uma realidade que já havia deixado de existir havia muito tempo.

Por ter construído em Formação do Brasil Contemporâneo uma interpretação tão multifacetada e poderosa, tão capaz de articular o geral e o específico, Caio Prado acabou preso às suas interpretações. Quando da elaboração de FBC elas permaneciam capazes de contribuir para explicar o passado, mas já não para explicar o presente e projetar um programa para abrir caminho ao futuro.

Um intérprete do Brasil profundo

Apesar da ênfase na idéia de sentido da colonização, desvendando o peso dos fatores externos em nosso desenvolvimento, Caio Prado não se absteve de estudar as dinâmicas internas da sociedade brasileira. Formação do Brasil Contemporâneo é um mergulho no que se convencionou chamar de Brasil profundo. Com o olhar acurado de quem tinha um forte conhecimento multidisciplinar Caio percorreu milhares de quilômetros pelo país, construindo a partir daí a força do concreto presente em sua obra mais importante.

Essa capacidade de observar e essa facilidade de ver o concreto, talvez tenham sido herdadas dos estudos de geografia feitos pelo autor. Ele foi o primeiro matriculado do curso de Pierre Deffontaines na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.
Uma folheada em FBC é capaz de demonstrar o quanto a idéia de que Caio Prado desconsiderava a dinâmica interna da vida e da economia colonial/imperial é descabida. Dos 17 capítulos do livro, 16 tratam dessa dinâmica (6).

Uma idéia-chave perpassou a análise dessa dinâmica social: a sociedade colonial estava dividida em dois setores. O primeiro deles, denominado por ele de orgânico era formado pelas classes envolvidas diretamente no centro da dinâmica produtiva: os senhores o os escravos. O outro, o inorgânico, pela massa de pessoas que estavam deslocadas desse setor fundamental. Dito de outro modo: um núcleo orgânico do sistema, localizado na grande lavoura escravista do litoral e sua periferia inorgânica.

A partir dessa caracterização nosso autor trouxe à tona o papel fundamental dos escravos, como principal mão-de-obra da economia colonial e imperial, e, ao mesmo tempo, jogou luz sobre os outros setores da sociedade, fora ou na periferia do núcleo principal das relações produtivas da plantation. Os estudos desenvolvidos pela historiografia nacional sobre a escravidão e sobre o que se convencionou chamar de homens livres pobres são realizados, ainda hoje, sobre as bases estabelecidas por Formação do Brasil Contemporâneo.

Assim, Caio Prado não só estudou a dinâmica interna da sociedade colonial como foi capaz de mergulhar profundamente em uma amplíssima variedade de seus aspectos, estabelecendo com método e talento as complexas ligações entre o específico e o geral.

A questão nacional para Caio Prado Junior

Caio Prado Junior, ao contrário do que supõem alguns de seus críticos, não desconsiderou a questão nacional, nem a colocou em segundo plano.

O intelectual comunista sempre considerou como uma tarefa absolutamente fundamental da revolução brasileira a construção da soberania nacional, localizando seu cerne na independência econômica frente aos grandes centros do capitalismo.

A análise de que o Brasil se constituiu determinado pelas suas relações externas, com uma economia e uma sociedade voltadas para a satisfação de necessidades que não as nossas, demonstra que ele via a questão nacional como absolutamente central. Justamente na ruptura radical com esse passado é que ele identificava a revolução brasileira.

O desafio seria construir uma estrutura econômica voltada à satisfação das necessidades do povo brasileiro e não do comércio internacional. Daí a importância atribuída pelo autor à constituição de um forte mercado interno, capaz de dirigir a produção às necessidades nacionais.

Uma grande obra, um grande homem

Caio Prado faleceu, depois de passar longo período doente, em 23 de novembro de 1990. Passou os últimos anos de sua vida consciente, dando palestras e entrevistas, conversando com estudantes, reeditando suas obras e estudando filosofia – uma paixão permanente. O historiador Francisco Iglesias, autor de artigo biográfico sobre Caio Prado, resume bem essa trajetória de vida:

“Caio Prado Junior é um homem simples, vivendo para a obra de escritor e para a militância política no campo que lhe parece mais exato e justo. Culto e de origem abastada, vive modestamente. As várias prisões – que não escolheu ou pediu – e a luta na guerra espanhola dão à sua biografia a nota romanesca e de fuga à rotina. No mais, tem-se o caso de quem trabalha incansavelmente e cumpre com lucidez e coerência o destino que se traçou. Um padrão de inteireza e dignidade” (7).

Caio Prado Junior – intelectual de primeira grandeza, comunista honrado e devotado ao seu partido, publicista fundamental na história do país – merece todas as homenagens no centenário de seu nascimento.

Júlio Velloso é graduando em história pela USP.

Notas
(1) FERNANDES, Florestan. “A Visão do Amigo”. In: História e Ideal: Ensaios sobre Caio Prado Jr. Org. Maria Ângela D’Incao. São Paulo: Brasiliense.
(2) PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1996 (1ª ed. 1942), p. 32.
(3) Idem, p. 228.
(4) PRADO JUNIOR, Caio. Diretrizes para uma Política Econômica Brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1954, p. 85-86.
(5) ___________________. A Revolução Brasileira, Perspectivas em 1977, São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 238.
(6) Os 16 capítulos são: “Povoamento”, “Povoamento Interior”, “Correntes de Povoamento”, “Raças”, “Economia”, “Grande Lavoura”, “Agricultura de Subsistência”, “Mineração”, “Pecuária”, “Produções Extrativas”, “Artes e Industrias”, “Comércio”, “Vias de Comunicação e Transporte”, “Organização Social”, “Administração”, “Vida Social e Política”.
(7) Citado em: NOVAIS, Fernando. Aproximações. São Paulo: Cosacnaify, 2005, p. 283.

EDIÇÃO 90, JUN/JUL, 2007, PÁGINAS 73, 74, 75, 76, 77