Costuma –se dizer que o Brasil não conheceu terremotos nem revoluções. As diferentes rebeliões nativistas do período colonial e os motins da regência não serviriam como exemplos revolucionários de uma classe burguesa ascendente. Todavia, os intelectuais acadêmicos procuraram estabelecer uma outra via para a Revolução Burguesa no Brasil: ela seria um processo multissecular, inacabado e cujas tarefas democráticas negadas pela burguesia se tornariam exigências socialistas, para usar a expressão do maior sociólogo brasileiro que escreveu sobre o assunto: Florestan Fernandes.

Essa “realidade” se caracerizou, entre outras coisas, pelo fato de nunca termos tido uma Revolução digna desse nome e que fosse baseada na primazia dos momentos da ruptura. O que tivemos foram processos fundados na predominância dos momentos de continuidade. A modernização brasileira encerra, portanto, problemas presentes herdados desse passado que continua. Alguns desses problemas: o monopólio de poder e violência nas mãos de setores normalmente contrários a todo mudancismo; a centralização do poder político aliada a uma violência disseminada contra os trabalhadores ruraris e urbanos nos locais de trabalho, nas manifestações de rua, nas fazendas, nos municípios menores etc; a dificuldade de internalização da lei e das instituições segundo os critérios de uma República burguesa impessoal; a passividade política da população, quebrada por movimentos radicais esporádicos ou por transferência da sua alta capacidade de mobilização para outros fins mais ligados ao cotidiano, à comunidade e ao lazer e menos às grandes mobilizações partidárias e sindicais.

A passividade, diga-se desde já, não seria inerente aos brasileiros, mas uma manifestação da forma de hegemonia das classes dominantes no Brasil. Forma esta que prefere o uso da violência associada à cooptação de indivíduos e pequenos grupos ao reconhecimento de espaços legalizados (ainda que subalternos) para a oposição. Impedindo a legalidade do oponente, os de cima não convidam a população à organização. Isso se reflete mesmo na organização das classes dominantes que, historicamente, preferiram mais o jogo da coterie (grupo de afinidades locais ou familiares) do que da classe social. Os exemplos são muitos em nossa história

Corporativismo e localismo

Quando Gramsci estudou o Renascimento, observou que a Itália fracassara em seu projeto unitário. Ao contrário dos grandes Estados territoriais formados nos séculos XV, XVI e XVII, como França, Espanha e Inglaterra, a burguesia italiana não pôde superar seu momento egoístico e corporativo para operar uma catarse, termo pelo qual ele queria designar a “a passagem do momento meramente econômico (ou egoístico-passional) ao momento ético-político” (1). A força das cidades italianas era tão imponente que nenhuma delas era capaz de aceitar a direção de outra. Ao mesmo tempo, o equilíbrio de forças não permitia o surgimento de um território capaz de realizar no século XVI a obra realizada por Piemonte no século XIX. A burguesia de cariz local não era capaz de fazer sacrifícios de natureza econômica e corporativa para se tornar classe nacional.

Quando voltou-se para o Risorgimento, processo de unificação italiana do oitocentismo, Gramsci estabeleceu a diferença entre o padrão de desenvolvimento histórico francês e o italiano. Ele percebeu que na França o partido jacobino pôde e quis dirigir o campo a partir da cidade de Paris, aceitando as reivindicações camponesas e abolindo os chamados direitos feudais. O Estado Nacional foi unificado a partir de uma capital revolucionária. Na Itália, a revolução foi contida e a restauração se impôs. Assim, as cabeças mais valiosas do partido radical foram absorvidas molecularmente pelo grupo dirigente (fenômeno chamado transformismo). Portanto, segundo sua análise e em palavras simples, a Revolução Passiva, ou “revolução restauração”, implicava uma incorporação de impulsos e demandas provenientes de baixo, mas absorvidos e parcialmente neutralizados a partir de cima.

Ocorre que a unificação italiana foi feita por um grupo que apareceu na forma de um território ou Estado pré-existente: o Piemonte. Ele funcionou como uma classe ou um grupo dirigente, dizia Gramsci. Sem uma composição demográfica racional e com a existência de numerosas camadas “parasitárias” no campo e em cidades como Nápoles, o Piemonte garantiu um sistema em que o norte se industrializou e o Estado unitário forneceu os cargos para os “intelectuais” do sul.

De maneira semelhante São Paulo e Minas Gerais, a partir da República Velha, combinaram influência sobre o governo federal com a manutenção tanto do poder local quando das “indicações” locais e regionais para os numerosos cargos de confiança na máquina pública em todo o território nacional. O Estado distribuía favores a protegidos dos coronéis, em geral seus parentes ou elementos próximos das classes médias e da pequena burguesia, as únicas camadas que também podiam participar da vida política. Para a camada cafeicultura dominante interessava apenas uma política de câmbio baixo e a manutenção da arrecadação estadual do imposto de exportação, o que garantia um orçamento grande para São Paulo. Os industriais, contentes com o câmbio baixo, pediam ainda tarifas protecionistas e aumentavam sua produção nas épocas de rápida substituição de importações, como durante a Primeira Guerra Mundial. As demais classes só existiam passivamente diante do poder “republicano”.

A hegemonia passiva – que não levava as massas a um consentimento ativo e participativo na vida civil – seria o corolário de um sistema que não podia nem ser permanentemente ou inteiramente democrático e nem ditatorial. No caso do fascismo surgiram elementos ativos de apoio mobilizado ao governo, mas como Gramsci imaginava não era um regime destinado a um belo futuro. No Brasil, nem os regimes supostamente “democráticos” de 1889-1930 e de 1946-1964, nem as ditaduras explícitas tiveram organizações de massas de apoio. É que a classe de cima dominava mais do que dirigia. Ou seja, nos países da semiperiferia européia até bem recentemente – e, a partir da metade do século XX, também em parte da América Latina –, a democracia não conseguiu se estabilizar, pois a ausência de um Estado (ético) capaz de elevar as massas à cidadania, não produziu o grau de consentimento desejável para que os de cima pudessem se manter no poder com legitimidade. Também a ditadura permanente não pôde existir (vide o caso do México), devido ao grau de desenvolvimento das forças produtivas, à diferenciação de interesses corporativos nas classes dominantes e às pressões das parcelas da população que lograram exercer uma cidadania ativa, exigindo periodicamente rituais democráticos.

No caso deste ocidente incompleto, que é o Brasil, houve sempre uma combinação variável de dominação com direção. Mas o acento maior naquela ou neste foi pendular. Autoridade e liberdade revezavam-se como princípios unificadores, embora a base fosse sempre mais afeita à autoridade e a cúpula à liberdade. Na Itália de Gramsci (ou de Maquiavel), a multiplicidade de repúblicas ou principados dificultava a emergência do Estado territorial. Para as dimensões da península Itálica, tais Estados funcionavam como províncias separatistas antes de qualquer união. Como nenhum príncipe tinha poder suficiente para esmagar o separatismo prévio, a Itália mantinha-se dividida. No Brasil colonial, a administração era centralizada no tope, pois a metrópole assim o exigia. Ela devia conter impulsos centrífugos dos senhores de terras e de escravos. Na base, existia uma liberdade do senhor.

Ele era o mandão local, mas não detinha o controle da comercialização dos excedentes econômicos gerados pelos escravos. A estrutura centralizada não aceitava a unificação nacional, pois além de não haver a consciência de nação, existia um ilhamento cultural (a expressão é de Viana Moog) das capitanias, mais ligadas à metrópole do que entre si. Resultava isso da estrutura econômica, exportadora e só raramente voltada a ações produtivas vinculadas ao consumo interno: “atividades acessórias” das quais falava Caio Prado Junior.

Quando o centralismo nacional se impõe no século XIX, com a independência política, haverá revoltas separatistas logo esmagadas, pois nenhuma região tinha (ao contrário daquela Itália estudada por Gramsci) força capaz de paralisar o centro. Por outro lado, as tentativas de impor-se contra o mandonismo local foram infrutíferas e o poder dos fazendeiros nos pequenos municípios persistiu à base da dominação no Segundo Reinado, uma vez passadas as veleidades européias (a la Benjamin Constant) de Dom Pedro I e de Feijó. O verdadeiro segredo da nossa unidade está na manutenção dessa liberdade do mandonismo local herdado da colônia, apesar da perda de poder das câmaras municipais. A dominação burguesa se institucionalizou no alto, com instituições mais ou menos funcionais para a reprodução sistêmica. No tope, o consentimento se fez valer entre uma opinião pública reduzida, embora ao lado do uso da coerção em momentos de “revolução” ou de sérias dissidências oligárquicas. Raramente as instituições se viam solapadas por algum elemento antagonista radical ou meramente reformador. Em baixo, a força foi dominante, com as violências cotidianas dos chefetes locais, coronéis, delegados, soldados da Guarda Nacional ou da volante. O chefe era a autoridade máxima, controlava a eleição do deputado, do juiz de paz e da câmara.

Mesmo quando se criou a polícia com a figura do delegado nomeado pelo presidente da província (1841), isto não cerceou a autoridade dos senhores rurais (2). Quando o delegado local tinhas veleidades democráticas era afastado ou eliminado. Maria Isaura Pereira de Queiroz “defendeu” este modelo de dominação como base também da República Velha. Para ela, apenas a partir da Revolução de 1930 as coisas começariam a se transformar. A centralização não anulou, portanto, os efeitos do controle localizado sobre a população. Aliás, a história do Brasil oscilou entre a centralização e a descentralização. Entre 1822 e 1841 houve um período de disputa política que levava ora à centralização administrativa ora à luta contra o poder central. Em 1828 as câmaras municipais perderam praticamente toda a sua importância, embora já não tivessem há muito o poder que desfrutaram nos dois primeiros séculos da colonização.

No Segundo Reinado, o centralismo político garantiu a estabilidade na medida em que o parlamento conseguia manter a unidade de interesses dos proprietários rurais através da manutenção da escravidão. A questão militar, o positivismo e a pregação liberal (particularmente em São Paulo), por outro lado, fizeram da República um contencioso entre unidade e dispersão. Predominou, entretanto, a dispersão entre 1889 e 1930. Para os ultrafederalistas da Constituinte de 1891, a união era a ficção e os estados a realidade (3). Alberto Tores não deixou de notar que “os homens que organizaram o regime tinham ardente ambição de autoridade local” (4). O coronelismo, fenômeno de exacerbação do poder local, resultava do desequilíbrio entre federalismo e centralismo. Os coronéis ocupavam os interstícios de um poder central amainado pelos estados. Grupos locais chegavam mesmo a ter pequenos exércitos armados e a emitir moedas (5). Diante disso, o Exército Nacional foi aumentando suas tendências de unidade, temperadas pelos seus arroubos jacobinos, herdados do florianismo. Contra a politica da República Velha, os militares encarnarão a idéia de revolução.

De fato, assim foi no Brasil como conjunto. Mas não em São Paulo, onde o coronelismo menos exaltado era temperado pela filtragem do partido político que impunha regras de convivência política entre os chefes locais. Isso resultava de condições econômicas mais avançadas nos primeiros decênios do século XX, como acentuou o historiador Edgard Carone.

São Paulo poderia ser visto como exceção à regra. Mas o Estado simplesmente exerceu ou tentou exercer hegemonia territorial e política a partir do início do século XX (fator que voltou na metade dos anos 1990). Essa hegemonia foi uma combinação de poder econômico e territorial com a anuência para os desmandos locais em outras regiões. Assim, a autoridade no tope, modernizante, mantinha-se apenas formal na medida em que reproduzia a “liberdade” dos mandões locais na base. De certa forma, o Brasil moderno aceitou as premissas da democracia política reproduzindo o iberismo no plano local. Este iberismo pode ser definido como conjunto de costumes políticos inerentes à relativa autonomia municipal estudada por Alexandre Herculano e supostamente democrática, contra as prerrogativas do poder central, supostamente autoritário. O iberismo é a força das coisas como elas são. Mas o município nunca foi democrático de fato, exceto para os chamados “homens bons” do período colonial.

Historiadores da economia perceberam, por outra angulação, o fato de o moderno se alimentar do atrasado. São Paulo industrioso absorvia força de trabalho barata do nordeste rural. Este São Paulo moderno precisava criar as instituições representativas de uma democracia de fachada e manter a liberdade dos “concelhos portugueses”, ou seja, o direito do chefe local brasileiro. Como todo avanço democrático exige a organização de base local, o iberismo instalou-se não no tope, mas na base. Daí o paradoxo de que nossas ralas elites intelectuais se tornaram antiportuguesas no século XIX e leitoras dos clássicos liberais da Revolução Francesa, enquanto os traços ibéricos se esconderam na mentalidade e nos hábitos políticos pouco conscientes. País ibérico de ideologia francesa ou inglesa ou mesmo norte-americana. Eis por que o federalismo da República Velha não mudou a base do poderio político. Assim como o centralismo da Revolução de 1930 ou do Golpe de 1964 também não a alteraram inteiramente.

Dessa forma, a hegemonia da burguesia brasileira a partir da República Velha é mais domínio que direção, mais coerção do que consenso. É mais fácil calar opositores fisicamente próximos no município assim como cooptá-los. Por isso, não quer dizer que os de cima não se preocupassem com o consenso. Nem que a coerção não aparecesse muitas vezes legitimada. O fato de a classe operária até 1930 ainda ser estrangeira em grande parte ou ser representada por correntes avessas à participação eleitoral (anarquistas) ou impedidas quase sempre de fazê-lo (comunistas) permitia que a coerção superasse o consenso. O cimento da hegemonia da classe dominante, já que ela precisava (ideologicamente) da fachada legal de seu regime, era o quase monopólio do parlamento e o impedimento do voto popular. Isto porque, se o voto fosse livre e secreto, o mandão local continuaria a controlar a escolha dos vereadores, deputados e prefeitos, mas não necessariamente do presidente que se decidiria em boa parte nas cidades maiores. O interesse do chefe local não era de natureza ideológica. Ele não se importava com questões gerais, mas com o respeito e o prestígio no seu lugar de origem ou fortuna. O presidente muitas vezes podia ter veleidades democráticas ou reformadoras, mas esbarrava no parlamento. Isso se deu mesmo no Segundo Reinado, quando Dom Pedro II, ouvindo intelectuais franceses, mandou preparar um estudo sobre a abolição da escravatura sem sucesso. A hegemonia, portanto, existe mais no alto. A coerção mais em baixo. Este é o modelo ibérico de dominação política. Ele não exige sempre a coerção generalizada, embora ela exista topicamente.

Ela pode ser apanágio da Guarda Nacional no Império ou das polícias e jagunços de coronéis locais na República Velha. Comprova isso o fato de o primeiro partido verdadeiramente nacional ter sido o Partido Comunista do Brasil e, mesmo sob os impulsos centralizadores da era Vargas e da Ditadura Militar, a Direita nunca logrou criar um partido orgânico e acima das dissenções regionalistas. A lei, centralizadora, podia ser usada contra os inimigos, mas no município os amigos eram protegidos pelo controle da polícia e das nomeações do judiciário através de acordos com o governo central.

Modernização

As classes dominantes no Brasil não exerceram uma típica dominação asiática ou uma ditadura aberta e perene e nem uma dominação democrática ou mesmo uma simples combinação das duas. Ao ornitorrinco econômico (título de um livro de Francisco de Oliveira) se associou um ornitorrinco político, regime político inclassificável que produz uma passividade temperada por violências físicas intoleráveis (para os opositores), mas justificadas perante a população através da ameaça permanente dos perigos da desordem e da criminalidade. Ao mesmo tempo não se permitia a essa população formular uma interpretação diversa da questão social. Este tipo de hegemonia não era dominação pura nem consentimento. A dominação era consensual e o consenso coercitivo. Os radicais de ocasião e as vozes de oposicionismo legal eram sufocados e violentamente afastados em momentos críticos.

As pressões de baixo eram absorvidas para legitimação parcial do regime só quando não podiam ser desorganizadas ou combatidas, como se fez com a legislação trabalhista a partir do governo Arthur Bernardes e, principalmente, de Getúlio Vargas.

Este tipo de hegemonia baseava-se na promoção do individualismo cidadão sem cidadania. Podia-se reivindicar não como classe ou produtor, mas como partícipe na parcela da mais valia social capturada pelo Estado e distribuída via orçamento público. Mas como não havia cidadania burguesa de fato, essa redistribuição era a ilusão da ilusão. Ou seja, a redistribuição num regime liberal já seria ilusória, ainda que parcialmente real, pois se distribui “eqüitativamente” entre todas as classes aquilo que foi gerado só pela classe dos trabalhadores produtivos. No Brasil distribuiu-se sem equidade jurídica liberal, pois os antagonistas do capital e do poder local não podiam se fazer representar politicamente. Nem perante as formalidades burguesas havia distribuição, dada a ausência de “participação nos lucros”, verdadeiro salário indireto, bons serviços públicos igualitários etc. Daí a ilusão da ilusão ou ideologia da ideologia. Ideologia sim, pois mascarava interesses particulares com a capa da universalidade. Mas ao mesmo tempo a ideologia se desmascarava ao negar seus pressupostos jurídicos universais. É como se no meio do jogo, o juiz retirasse seu uniforme e revelasse por baixo dele a camisa do time que já era o mais forte e ao mesmo tempo pedisse a todos para continuarem acreditando na sua neutralidade.

Esta dupla ilusão gerava um sistema mais propício à reprodução, pois ao desvendar-se como desigual não ampliava a consciência social dos agentes políticos da esquerda e da direita. Ao contrário, reduzia o horizonte das classes subalternas à “promoção da justiça”, à correção do sistema, como se os elementos de desigualdade jurídica fossem disfuncionais, bastando resolvê-los juridicamente. A crítica mais radical isolava-se politicamente como “planta exótica” inadequada ao solo histórico nacional, segundo o discurso dominante. Assim, o surgimento do Partido Comunista, primeira manifestação organizada que visava à conquista do poder político pelo proletariado, demoraria alguns decênios até atingir influência de massas. A contestação proletária, portanto, remete no Brasil àquilo que Gramsci dizia da contestação camponesa na Itália: esporádica e sem possibilidade de gerar formas orgânicas permanentes. O sindicalismo revolucionário anarquista, apesar de seu heroísmo combatente, estava virtualmente excluído da luta pelo poder, fosse por razões ideológicas (anarquismo) fosse pela sua condição de ilegalidade. Dois caminhos sobrariam, um deles muito cedo obstado: o reformismo parlamentar de alguns deputados comprometidos com a legislação a favor dos trabalhadores e a revolta armada (esta só poderia ser apanágio de setores descontentes do estamento militar).

Depois da “Revolução de 1930”

A ação do imperialismo também interferiu na distribuição da coerção e da direção moral no interior do Brasil. Mas a ideologia do colonialismo (para usar um termo de Nelson Werneck Sodré) tinha por função adaptar o Brasil aos ditames, dinamismos e fluxos do capital internacional sem prejuízo da função interna de tentar legitimar um sistema de dominação tipicamente brasileiro. Assim, a força dispersa em regiões, municípios e fazendas tinha uma unidade, uma centralização no tope. A dialética do centro e das periferias vai modelar as alterações de regime, ora mais centralistas ora menos. De qualquer maneira, a garantia da unidade só se dá com a garantia do modo de dominação local. Isso fica patente com a Revolução de 1930. Queria-se centralizar e moralizar, mas os chefes locais obrigaram o governo a uma composição. A legislação centralizadora avançou, mas só foi cumprida no que tange à representação política e social nas áreas urbanas maiores. No resto do país, o uso da violência privada e a corrupção mantiveram a reprodução das elites locais. Pode-se argumentar que a dificuldade de instalação de serviços públicos centralizados e corretos esbarrava na cordialidade do homem e da mulher brasileiros, no sentido atribuído àquilo por Sergio Buarque de Holanda. A recusa às normas impessoais e a afetividade transbordante dos contatos que personalizam relações que deveriam ser públicas e institucionalizadas, garantem ao mais forte e à sua clientela um domínio que não pode ser adequado à neutralidade jurídica liberal. A outra face disso é a repressão também afetiva e cordial. Ela pode ser usada seletivamente não como punição ao crime, mas como punição ao não pertencimento ao universo das relações pessoais do chefe local. Ou à desobediência aos costumes e interesses de tal chefe. Tais fatores precisam ser considerados.

Resultado: um solo histórico frágil

O traço de longa duração na história das classes dominantes brasileiras é a fragilidade dos vários grupos sociais que vão se superpondo nas distintas fases de evolução de nossa sociedade. Frutificando em um solo histórico pobre, provinciano e localista, todos os grupos sociais demonstraram imensa fragilidade organizativa. O primeiro grupo econômico que exerceu dominação no Brasil foi a oligarquia da terra. Estes senhores de escravos e terras eram totalmente dependentes dos humores do mercado externo e submetidos à coroa portuguesa. A produção que comandavam estava desconectada do mercado interno e seu horizonte político era muito estreito. Todavia, este grupo social foi o responsável pela independência política e pela manutenção da unidade territorial, já que seus interesses escravistas, vigorando de norte a sul, como muitos historiadores já notaram, ajudaram a soldar a coexistência das várias províncias sob um único governo.

A esse grupo se associou paulatinamente o dos industriais. Grupo tímido que defendeu tarifas protecionistas, como já se disse aqui, mas sempre se recompôs em momentos decisivos com a oligarquia, nomeadamente a cafeeira na República Velha. Temeroso entre a concorrência externa e a nascente classe operária, este grupo não fez e nem poderia fazer uma revolução burguesa no Brasil.

Apelou para o Estado a fim de reprimir a classe operária e se recusou a reconhecê-la como antagonista legitimado. Na República Velha, à exceção notável do empresário Jorge Street, que negociava com sindicatos e adotava medidas de cunho social nas suas empresas, apenas confirma a regra. Esta classe foi incapaz de gerar políticas gerais que pudessem interessar a outras classes sociais e criar uma hegemonia dos interesses industriais. Raros empresários pensaram em políticas de planejamento econômico e na organização corporativa e política dos industriais. Roberto Simonsen foi uma exceção como líder da cisão na Associação Comercial de São Paulo que gerou a Fiesp, historiador, estudioso da racionalização do trabalho e, como senador, adversário ideológico do Partido Comunista do Brasil.

A partir dos estertores do Império, outro grupo passou a fazer pressão na sociedade: as classes médias radicalizadas, civis e militares, com destaque para este últimos a partir de 1922. O tenentismo contribuiu para a superação de alguns vícios da Primeira República e para o alargamento da base social dos governos. Também permitiu uma política associada aos interesses dos industriais.

Poderíamos dizer que estes dois grupos sociais nos legaram um país que não seria mais apenas agroexportador. Mas os militares também padeceram da mesma fragilidade histórica dos demais grupos sociais. Quando auxiliaram a Revolução de 1930, vários deles se desiludiram em graus variados com a segunda República. Alguns se desencantaram, voltaram-se para as atividades de grupos de opinião militar, como grupo Três de outubro, Legião Cinco de julho e até para o radicalismo da Ação Nacional Libertadora.

O último grupo, desde o início do século lentamente integrando um espaço legal na sociedade civil, foi a classe operária. Tanto na sua fase anarquista quanto na comunista e trabalhista, este setor contribuiu decisivamente para as conquistas sociais fixadas em legislação. À sua derrota em 1964 sobreveio um período de retrocesso, mas não completo. E a partir de 1980 houve uma retomada das lutas históricas, agregando as lutas camponesas que, se já tinham movimentações importantes nos anos 1950 e 1960, agora se reorganizavam com o MST. A fundação do PT e da CUT e a reorganização dos comunistas foram exemplos dessa retomada e de novas conquistas de cidadania operária na ordem burguesa.

Os grupos subalternos também padeceram da precariedade herdada de nossa história: falta de organização perene, falta de unidade, dificuldade em organizar as massas e contar com seu apoio e ação num terreno político onde não só os de baixo, mas amplas parcelas dos de cima não possuem educação política e nem mesmo educação formal de qualidade. Mas, ao contrário dos anteriores, tais grupos contam a seu favor o conhecimento das tarefas não realizadas pelas classes dominantes no passado e tomam a si o papel de criar a economia nacional e a elevação do padrão espiritual e material da população. É do seu interesse agregar outras camadas sociais que ficaram no meio do caminho, à espera de reformas que não vieram. Seu programa, desde os anos 1980 não foi, portanto, o socialismo, mas um conjunto de reformas – o que já havia sido a prática dos comunistas depois de 1946, ainda que com muitas oscilações táticas.

Apesar disso (e talvez exatamente por isso), nos anos 1980, houve acumulação de forças e disputa de hegemonia na sociedade civil. Pela primeira vez em nossa história, a esquerda desconstruiu valores socialmente dominantes como o da incapacidade dos trabalhadores de governar. Os operários ganharam um espaço de legalidade inédito: greves se tornaram aceitáveis, muitas vezes sob violência policial, mas não mais sob proibição constitucional. A isso Florestan Fernandes chamou de um espaço legitimado para a luta de classes na sociedade civil.

Este acúmulo de forças também se deu na institucionalidade (especialmente prefeituras), o que era praticamente inédito, pois houve raros comunistas que, no passado, foram intendentes (vereadores) ou prefeitos. Nomes como Otávio Brandão no Rio de Janeiro e Armando Mazzo em Santo André de novo são exceções a confirmar a regra da exclusão dos comunistas da legalidade. Depois dos anos 1980 vitórias eleitorais se tornaram rotina e a esquerda foi paulatinamente absorvida pela força histórica do localismo, aqui já referida. Famílias de posses ou dissidências oligárquicas muitas vezes controlaram direta ou indiretamente as municipalidades, os cargos “técnicos” ou influenciaram políticas, quando simplesmente não fizeram negócios com políticos de esquerda. Estamos longe daquele modelo italiano em que mesmo na mais remota municipalidade o Partido Comunista e o Partido Democrata Cristão guardavam com convicção suas respectivas identidades e sua rivalidade. Embora no Brasil seja provável que isso ainda ocorra em alguma medida com os comunistas, com os partidos que se julgam de extrema esquerda e com setores do PT.

A dificuldade de manter um partido de massas orgânico e centralizado por políticas nacionais de alianças é um fato que deriva da nossa história herdada da colonização, da falta de unidade e da dispersão territorial. Fatores a que fizemos referência no início deste artigo para bem delimitar o quadro histórico no qual se faz política no Brasil. Isto gerou um contraste entre o programa socialista do partido e sua prática local tradicionalista que, curiosamente, mimetizou a contradição aqui já citada entre a ideologia afrancesada ou americana de nossas classes dominantes e sua prática local “ibérica”.

Há o outro lado da moeda, é verdade. Em organizações sindicais, as solidariedades locais, de origem e até etárias foram importantes fatores de aglutinação e afirmação de pessoas pobres e sem um background familiar ou pecuniário; todavia, tais solidariedades foram anuladas por outras mais poderosas quando transpostas ao universo de relações mais amplas do partido. Ainda assim, os partidos de esquerda são aqueles em que é maior a percentagem de pessoas humildes que ascenderam na burocracia ou em cargos eletivos. Mas tanto é verdade que o problema sempre existiu que os partidos comunistas sempre tiveram políticas de promoção de operários ao Comitê Central, às vezes até cometendo abusos.

Outros problemas de natureza política dificultaram o crescimento da esquerda, como: monopólio dos meios de comunicação, desproporcionalidade na representação dos Estados na câmara dos deputados, escassez de partidos orgânicos etc. Os chefes locais e regionais foram perdendo espaço durante o século XX, especialmente nos anos 1990 com as privatizações de empresas estatais do governo Fernando Henrique Cardoso e com os programas de transferência de renda do governo Lula, centralizados no plano federal. Mas os chefes locais ainda mantêm a força nada desprezível da propriedade rural e urbana e de jornais e retransmissoras de televisão. Além disso, a partir da Constituição de 1988 o município brasileiro concentrou uma gama maior de recursos e foi definido como um ente do pacto federativo juntamente com os estados e a União.

Os dados do Tribunal Superior Eleitoral mostram uma parte dessa persistência do conservantismo local. Em 2000, o PT tinha 187 prefeituras e o PCdoB uma, PSB e PDT tinham, respectivamente, 133 e 288, enquanto o maior partido brasileiro em poder local era o PMDB com 1257 municípios num total de 5561. O problema é que no caso destes três últimos partidos não há garantia nenhuma de que os prefeitos seguiam alguma orientação partidária. Já no PT em alguns casos poderíamos dizer o mesmo, mas eram exceções. Portanto, uma esquerda orgânica só tinha 188 prefeituras. Em 2004, o PT ganhou mais 224 (chegando a 411) e o PCdoB mais nove, sem que ambos chegassem próximos dos 10% do total, embora contassem com uma percentagem bem maior do voto nacional. Não ingressaremos aqui numa análise de sociologia eleitoral para estudar os movimentos de curta duração, como as perdas de votos de PMDB, PSDB e PFL entre 2000 e 2004. As perdas de partidos de direita e de centro são compensadas por ganhos de outros, como o PL, um aliado direitista do PT, que aumentou de 234 a 381. PSB, PPS e PDT também cresceram, enquanto partidos esquerdistas não existiram para fins eleitorais, já que seu campo de disputa era outro.

Tais dados levam a uma pergunta incômoda: será uma coincidência esse importante e necessário crescimento da esquerda ter se dado juntamente com uma diminuição de seu radicalismo programático? Certo, tal moderação foi acompanhada de outros fatores estruturais como reestruturação produtiva, diminuição de algumas categorias profissionais (como bancários e metalúrgicos), baixo crescimento econômico e uma pretendida mudança de paradigmas depois da derrota do socialismo real. Mas e o surgimento de uma camada administrativa que passou a viver dos cargos de confiança e a excessiva influência dessa camada nos rumos das organizações? E a eternização de dirigentes profissionais nas direções sindicais e partidárias? E a dificuldade de concretizar localmente políticas nacionais de alianças? Não são problemas locais importantes? Tais grupos profissionalizados, acostumados a pensar localmente e tecnicamente, perderam contato tanto com a dinâmica dos movimentos sociais de âmbito nacional porque na localidade a natureza de classe das lutas do cotidiano é muitas vezes obscura. Há aparentemente uma facilidade de combinação de interesses maior porque aquilo que é essencial é sempre relegado à esfera estadual ou nacional e nunca se resolve. Assim como a tolerância “ética” ao nepotismo, e outras formas de corrupção, também são facilitadas pela dificuldade de denunciá-las em âmbito regional ou nacional.

Quando a esquerda chegou ao governo levou consigo uma prática municipal, desejando enfrentar todos os problemas administrativamente, quando uma parte deles embute conflitos de interesses tão fortes que exige solução política. Para a esquerda é como se houvesse mudado apenas a escala. Mas uma mudança de escala, seja em geografia seja na estratégia militar ou política, é tudo! Uma guerra de posições por dentro da estrutura instituída sem o apoio de incursões de movimento capazes de gerar pequenas rupturas impede a classe trabalhadora de passar do nível corporativo ao político e os seus representantes de passar do nível local ao nacional.

Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP.

Notas
(1) Gramsci, A. Il Materialismo Storico E La Filosofia Di Benedetto Croce. Torino: Riuniti, 1991, p. 48.
(2) Queiroz, Maria Isaura Pereira. O Mandonismo local na vida política brasileira. São Paulo: USP-IEB, 1969, p. 42.
(3) Belo, J. M. História da República. São Paulo: Companhia editora nacional, 1983, p. 73.
(4) Torres, A. A organização nacional. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p. 213.
(5) Carone, Edgard. A República Velha: instituições e classes sociais. São Paulo: Difel, 1975, p. 252.

EDIÇÃO 90, JUN/JUL, 2007, PÁGINAS 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66