Em 22 de janeiro completou-se um ano da posse de Evo Morales como presidente constitucional da República. No entanto, por essa designação ser tão clara nesse caso certas conotações fazem dessa posse, e do cargo em si, algo significativo no contexto político latino-americano.

Com efeito, existem particularidades e facetas que o destacam. Vários presidentes da América Latina tomaram posse nos últimos 12 meses, mas nenhum deles tem a referência como indígena, popular, democrático e nacional-libertador que envolveu a assunção de Evo. Cada uma dessas qualificações tem um conteúdo preciso. Não são adjetivos vazios. Nenhum outro presidente – exceto a reeleição de Chávez – obteve no primeiro turno mais de 50% da preferência eleitoral. Essa preferência tinha clara denotação popular se se baliza e constata onde e quem votou em Evo Morales.

Evo foi eleito por uma força política que adotou a sigla MAS (Movimento ao Socialismo) que, para muitos, indica algo muito preciso. Especificaram declarações que podem ser resumidas na frase de um camponês de uma aldeia distante “já sabemos como é o capitalismo, agora queremos conhecer o socialismo”. Está comprovado o caráter democrático, popular e avançado do triunfo de Evo e do MAS. O que de fato estabelece uma diferenciação mais clara é a projeção e a maneira nacional-ética dessa presidência.

Na verdade, Evo teve três posses: a primeira no parlamento, nada especial. (Ressalte-se o fato de ele ter sido o primeiro presidente a prestar juramento com os punhos para cima). A segunda ocorreu com uma grande circunscrição popular na Praça de San Francisco, local de comícios políticos, sobretudo populares. Nela, reafirmou cumprir sua promessa: priorizar o atendimento dos interesses populares e nacionais. A terceira posse, e juramento, se realizaram em Tiawanacu, atrás da Puerta del Sol, no limiar do que em essência foi um ritual indígena. Mais chamou a atenção o fato de Evo ter sido proclamado “presidente de todos os índios do continente americano”, tal a profundeza da origem e “cor” de sua candidatura.

A campanha causou impacto. Para o trabalhador irritado com a exploração, o desemprego e a falta de direitos e fustigado pelo neoliberalismo apresentava-se apenas uma opção. Para os oprimidos, marginalizados e discriminados pelos séculos se oferecia uma única oportunidade. Para os anteriores e a outros mais foi o momento de quitar as dívidas pela entrega e o saque a que foi submetido todo um país, exaurido de seus recursos naturais e subjugado à condição de mais pobre da América do Sul, apesar das riquezas que possui. Na mente das pessoas – trabalhadores, indígenas ou simplesmente patriotas – enraizou-se a consigna Agora ou nunca!.

Obviamente, cada grupo social, classe, gênero ou tipo étnico possuía representação social diferenciada – mas não dessemelhante – entre elas, baseada numa mesma realidade, isto é, retratando um mesmo ser social. Haviam sido cristalizados um conhecimento e uma explicação – de sua vida cotidiana e do porquê dessa representação – que mostravam um inequívoco caminho em direção à superação, pela via das mudanças. O “Agora ou nunca” significava para os operários pôr fim à impiedosa exploração que propala o neoliberalismo e à devolução dos direitos obtidos mediante a firmeza de lutas intensas e mesmo cruentas.

Para os indígenas significava a possibilidade de acesso ao governo, com o ganho. Em resumo, recuperar a dignidade, poder livremente ser o que de fato representava como pessoa. Para o restante da grande maioria de dezembro havia chegado a hora da reivindicação nacional: devolver ao país o que lhe foi despojado da maneira mais arbitrária possível – particularmente os recursos energéticos, o gás natural – aviltando a Constituição Política do Estado (CPE). Nunca as massas haviam se mobilizado por essa causa com tanta combatividade ou vultuosidade. Sublevaram-se e afastaram um presidente.
Chegou a hora também de se livrar da asfixiante amarra da dívida externa, ilegal e imoral. Chegou a hora, enfim – como se estabeleceu na história – das lutas independentistas e libertadoras: que a Bolívia se faça)!

O programa eleitoral do MAS era extenso, mais para analistas curiosos do que para os eleitores. Reproduzia bons desejos e intenções. No entanto, havia a necessidade de um programa mínimo e mobilizador que indicasse densamente as tarefas urgentes do momento. Ele surgiu quase espontaneamente da exigência social de romper com o velho e esgotado modelo neoliberal e de assinalar novos rumos para o desenvolvimento independente e soberano do país.

Dessa necessidade despontou uma espécie de decálogo que, no fundo, propunha um programa de recuperação dos recursos e do patrimônio nacional; de desenvolvimento da economia (mista) em benefício do país e das maiorias nacionais; de uma educação e serviços de saúde como necessitava o país atual, uma previdência social solidária e distributiva e uma reforma política por meio da convocação de uma Assembléia Constituinte. Esta deveria aprovar uma nova Constituição Política de Estado (CPE) que manifestasse a nova realidade do país, a ser elaborada a partir da aplicação de um modelo de desenvolvimento social e econômico contrário ao neoliberalismo.

Essa proposta também carrega em si o conceito bastante arraigado, sobretudo no ocidente do país, da “refundação da Bolívia”. Na abrangência dessa refundação, no entanto, há matizes em sua percepção. Algumas vezes possui marcado acento indigenista e este é enfrentado, a partir dos distritos do oriente do país, com a exigência de estabelecer um regime autônomo distrital com amplos poderes. Como veremos mais adiante a compreensão oposta de “refundação” e de “autonomias distritais” transformou-se na contradição que domina o panorama da confrontação política boliviana. Contudo, é a contradição que aparece para disfarçar a arrogância das contradições essenciais.

O balanço de um ano de exercício de poder e os atos de governo darão uma idéia mais concreta do governo de Evo. Não foi fácil caracterizá-lo e ter segurança de ter sido totalmente correta a formulação que se fazia. A composição heterogênea de seu gabinete impossibilitou obter tal segurança. Causou surpresa a presença de personagens não pertencentes ao MAS, ou aderentes tardiamente à campanha eleitoral – a maioria deles na condição de convidados. Podia-se perceber a presença desde indígenas – que no passado manifestaram posições indianistas radicais e considerável distância com as concepções socialistas, mesmos elementos remanescentes dos governos anteriores, particularmente no ministério da economia. Indiscutivelmente, tiveram presença homens e mulheres de antigos pregressos na luta social e política que podem ter posições revolucionárias e socialistas. Contudo, havia a preocupação de que alguns desses estivessem vinculados a organizações duvidosas não-governamentais.

À medida que muito pouco do que havia sido oferecido foi aplicado – inclusive começou a surgir certo esmorecimento – foi determinado o Decreto Supremo 28701, chamado nacionalização dos hidrocarburetos. Sua elaboração – quase como de segredo de Estado – e a sua ostensiva apresentação em 1º de maio mudaram radicalmente o panorama. Evo recuperou uma confiança popular que estava em declínio. Tecnicamente, esse decreto não é de nacionalização. No entanto, dedica-se a restabelecer, sobretudo, o direito de propriedade da nação sobre os hidrocarburetos. Com a subscrição de novos contratos com as transnacionais petrolíferas – que outorgam maiores aberturas para o tesouro nacional – foi dado um importante passo adiante.

Pode-se, a partir de então, realizar outros empreendimentos, como a industrialização do gás, e exportar produtos com valor agregado. Pode-se contar com a ajuda da Venezuela nessa matéria e iniciar os processos de integração energética. Evidentemente, falta ajustar muitos detalhes nesse complexíssimo negócio dos hidrocarburetos. Por exemplo, cortar o excesso de empresas que registram como suas as reservas de hidrocarburetos nas bolsas de valores metropolitanas. A recuperação dos hidrocarburetos contribuiu para demonstrar que as transnacionais não são intocáveis.

Ameaçaram lançar as fúrias dos organismos internacionais, congelar as inversões etc. Nada disso aconteceu, embora nas novas condições existam grandes ambições (1). Esse panorama completou-se com o fim da atividade da Suez Lioneses des Eaus, transnacional que provocou a “guerra da água” em 2000.

A política pré-eleitoral de Evo foi muito habilidosa. Soube ganhar setores populares, entre eles o dos cooperativistas mineiros que cresceu, sobretudo, com a greve (a chamada “re-posicionamento”) na mineração estatal. O apoio foi retribuído com magistraturas parlamentares e com o ministério de mineração. Tardiamente ficou claro que o acordo era contrário à linha de princípios. Os dirigentes dos trabalhadores cooperativistas haviam se transformado em verdadeiros pequenos e médios empresários, com uma ambição incontrolável para avançar sobre áreas ainda pertencentes à antiga empresa mineradora estatal (Comibol).

Com a alta dos preços dos minerais, a mina Posokoni, a mais rica reserva de estanho da Bolívia, transformou-se em cobiçada presa. Com procedimentos ilegais, e até suspeitosos, de vinculações com a direita golpista foi provocado um enfrentamento, do qual houve mais de 60 mortes e muitos danos materiais. Evo destituiu o controverso ministro e restabeleceu um princípio muito querido ao povo boliviano: as minas são, fundamentalmente, do Estado e é prioritário recuperar a empresa nacional. Isso não significa acabar com a mineração privada, mas sim dar a ela limites e cortar os ganhos bem aplicados por Sánchez de Lozada, grande empresário minerador. Os trabalhadores cooperativistas (aproximadamente 4000) readquiriram sua condição de classe operária e, de fato, fortalecem o núcleo mais combativo do proletariado boliviano.

O problema da terra é potencialmente mais perigoso e explosivo. Com o neoliberalismo foi recriado o grande latifúndio, em especial no Oriente. Para a criação de gado, o cultivo da soja e de algodão – mas, sobretudo, para especulação da “engorda de terras” – protegidos pelos regimes burgueses, foram retidas terras de até 150 e 200 mil hectares! Enquanto isso, o Movimento dos Sem Terra (MST) e as organizações dos camponeses e etnias e povos nativos se mobilizaram para acabar com o latifúndio improdutivo, e devolver a terra a seus proprietários originais. Ninguém, nem governo nem camponeses, querem entrar em terras efetivamente produtivas.

O governo apresentou um projeto de alterações à lei agrária neoliberal aprovado na Câmara dos Deputados. No Senado – onde faltam votos ao MAS – houve uma tenaz resistência, já manifestada fora dos marcos legislativos. A questão da terra, há anos, provoca os enfrentamentos mais agudos. É aqui onde os atores sociais e, em primeiro lugar os latifundiários, recorrem à confrontação violenta e armada. Já ocorreram choques, mas apenas rudimentos diante da grandeza do problema e dos setores sociais envolvidos. O tema da defesa da “sacrossanta propriedade particular” move as paixões de sempre. Conceituados protagonistas (juízes, prefeitos, governadores) já apresentaram suas carabinas, jurando – sem originalidade nem surpresas – defender com sangue suas propriedades.

Com a estatização dos hidrocarburetos, a luta pela titularidade das minas e pelo fim do latifúndio colocou a nu as contradições sobre as quais está assentado o movimento da sociedade boliviana. Há outras esferas da luta social, contradições e problemas secundários não-resolvidos, mas os acima relacionados são os principais. A luta de classes – anunciada como “obsoleta” pelo neoliberalismo, junto com a intelectualidade desnorteada como coro, atenta aos dirigentes pós-modernos da “nova teoria” social – começa a manifestar-se com toda força, própria dos tempos de mudança social.

Um presente eleitoral foi atender a uma espécie de anseio popular: convocar uma Assembléia Constituinte (AC). É uma indicação de que os problemas centrais, as contradições fundamentais nem sempre se manifestam abertamente e de que atuem dissimulados no cenário da luta de classes. É o que acontece na AC. A aprovação do regulamento de debates, na verdade, uma questão trivial, provocou discussões as mais exasperadas e cenas empoladas, bem aproveitadas pela televisão para prazer dos que acreditam que a política, ou a confrontação ideológica, é assim. Por tão “nobre causa” ocorreram manifestações, greves de fome, reuniões e um mar de pronunciamentos.

Pela proposta da direita, todo artigo da nova CPE deve ser aprovado por 2/3 dos votos. Segundo a proposta da bancada do MAS, e de seus aliados, entre eles o PCB, apenas alguns artigos (propriedade dos meios de produção, orçamento nacional, impostos e outros de caráter político) devem ser aprovados por 2/3; para o restante basta maioria absoluta (50% + 1) que reproduz a correlação na eleição dos constituintes. O MAS ganhou em 7 dos 9 departamentos, com mais de 50%. A direita perdeu até em seus supostos baluartes: Santa Cruz e Tarija. A partir daí ameaça – e atua! – com um sentido separatista e de defesa cega de seus interesses egoístas.

Pela convocatória da AC, o texto aprovado da nova CPE deve ser submetido a uma consulta popular. Se o povo não estiver de acordo pode contestá-la. Portanto, é tolice chantagista o que faz a direita. E mais: é o pretexto para sua campanha desestabilizadora. As concessões feitas pelos agenciadores da convocatória proporcionaram à direita manobrar. O vice-presidente aceitou os 2/3 e a aplicação das liberdades, apesar de não ter estabelecido suas competências. Nesse momento é que a direita política e a oligarquia – principalmente, de Santa Cruz – recorrem à chantagem, tensionam o ambiente político e até se preparam para eventuais enfrentamentos armados. Não estão sozinhos nessa cruzada. A direita internacional, sobretudo o imperialismo, os abastecem de meios, recursos e experiência. Nada é casual nos movimentos da diplomacia estadunidense. O embaixador Goldberg foi representante dos EUA em Kosovo. Ou seja, trouxeram à Bolívia nada menos que um especialista em processos centrífugos, separatistas.

Apesar dessas armadilhas, o processo político democrático, popular e nacional-libertador continua em frente. Foram cometidos erros, existem imperfeições e até perigos “internos” no próprio processo. Não há ainda uma visão clara da necessidade de ajustar a direção do processo. Encontra-se muito distante de observar – não imitar – outros processos revolucionários que alcançaram, ou procuram, formas de articulação das forças-motrizes da mudança: os trabalhadores assalariados, a classe operária, os camponeses, os movimentos sociais populares e as organizações políticas da esquerda real. Este é o caminho, e não há como desperdiçar a conjuntura que a história nos presenteia.

Marcos Domich é secretário de Relações Internacionais do Partido Comunista da Bolívia (PCB). Traduzido por Maria Lucilia Ruy, mestre em Letras Clássicas.

Nota

(1) É um dever mencionar o apoio solidário do Partido Comunista do Brasil por ocasião da emissão do decreto de nacionalização dos hidrocarburetos e do direito da Bolívia “de dispor de seus recursos naturais”. A Petrobras tem importantes concessões na Bolívia e o seu comportamento não divergiu muito do de outras empresas petrolíferas estrangeiras.

EDIÇÃO 88, FEV/MAR, 2007, PÁGINAS 35, 36, 37, 38, 39