Em cultíssima carta sobre a segunda edição de Raízes do Brasil – clássico acerca da condição Homo brasilis –, de Sérgio Buarque de Holanda, o poeta Cassiano Ricardo reclamara precisão etimológica brasileira entre polidez e homem de coração para dar significância à categoria cordial, um dos constructos polêmicos e férteis de Holanda.

Na famosa missiva (julho de 1948), em irritadiça síntese de 11 aforismos, Cassiano resume: “Mas que cordialidade seja, no sentido em que tomamos e praticamos essa palavra (polidez), a nossa contribuição ao mundo, não me se afigura aceitável, nem cabível”. Dito de outro modo, bondade brasileira, sim: mais envolvente, mais política, mais assimiladora.

Igualmente irritadiça é a resposta de Holanda: “Quando escrevi a palavra cordial, entendia-a no seu verdadeiro sentido. Você a interpreta na sua acepção fingida”. Notando inclusive o mutável em nossa existência, para o autor de Raízes, com a urbanização e o desenvolvimento das metrópoles o homem cordial estava fadado provavelmente a desaparecer.

Completados 70 anos, Raízes tem, necessariamente, de ser visto como legado das grandes inquietações e indagações sobre o caráter nacional brasileiro. Como diz acertadamente Elide Rugai Bastos (As criaturas de Prometeu. Gilberto Freyre e formação da sociedade brasileira, Global, 2005), nas décadas de 1920 e 1930 nossos pensadores buscavam a compreensão sobre o Estado, a cultura e a identidade nacional; época da semana modernista, da formação do Partido Comunista, do tenentismo, enquadra Bastos.

Excelente estudo, o livro de Bastos (Concurso Nacional de Ensaios – prêmio Gilberto Freyre 2004-2005) vai além da costumeira interpretação sobre a inequívoca grandeza de Casa-grande & senzala (1933): a obra também auxiliaria no argumento científico, pós-Revolução de 1930, aos setores agraristas, reiterando ter a propriedade da terra “papel equilibrador da sociedade”. Nada de reforma agrária!

Mas quem garante que o passado nacional estipula “o número de opções ainda abertas”, pois seu passado – condenado – desproveria recursos para certas escolhas? Para o cientista social Wanderley Guilherme dos Santos, em seu (igualmente premiado) livro Horizonte do desejo. Instabilidade, fracasso coletivo, e inércia social (FGV, 2006), o Brasil teve sempre quem enterrasse sua evolução, ao lado de otimistas crônicos dos belos cenários futurísticos. E, a rigor, jamais saberemos o que podemos ou não fazer, hoje, por conta do que fizemos ou evitamos fazer no passado, enfatiza Guilherme dos Santos.

Ganhador do prêmio Vitor Nunes Leal (Academia Brasileira em Ciência Política, 2005), o estudo possui o traço dos grandes pensadores contemporâneos da sociedade brasileira. Com atualizada documentação empírica sociológica e econômica, nele o autor disserta uma tese no capítulo “A interrogação nacional”: o Brasil evoluiu até aqui conhecendo
estágios de “estabilidades dissipativas” ou conservacionista do status quo, e de instabilidades produtivas e improdutivas. Dito de outro modo, uma “Lei da Poliarquias” desfavoreceria por decisões majoritárias número de interesses potencialmente superior àqueles interesses atendidos; e, exibindo taxas, dinâmicas eleitorais e organizacionais
superiores às das “democracias ricas”, o Brasil não consegue superar grande parte dos desequilíbrios improdutivos que lhe vitima.

De acordo com Guilherme dos Santos, escapa aos teóricos da desigualdade e da miséria permanente o atual fenômeno do crescimento da riqueza independentemente da extinção, aumento ou redução da miséria. Sendo a razão última do relativo imobilismo social a combinação de:

a) ser freqüente em comunidades de porte razoável uma massa social dotada de inércia, resistente a mudanças bruscas; e b) a “conhecida” dificuldade
de organização para ação coletiva de enorme contingente de brasileiros, “talvez” tenha origem no descompasso entre longa acumulação capitalista, episódios redistributivos
sem ameaça à acumulação, e crônica estabilização das desigualdades.

A. Sérgio Barroso

EDIÇÃO 87, OUT/NOV, 2006, PÁGINAS 81