O professor da Unicamp João Quartim de Moraes relançou, pela editora Expressão Popular, o primeiro volume do livro A Esquerda Militar no Brasil. Esta obra, publicada pela primeira vez em 1991, já nasceu clássica, ajudou a romper o silêncio que caíra sobre parte da história da esquerda brasileira e contribuiu para superação de uma série de preconceitos em relação à atuação dos militares na vida política brasileira.

O projeto do autor é vasto, devendo se concretizar numa obra de três volumes – dos quais dois já foram publicados. O primeiro que o público tem agora reeditado aborda da conspiração republicana até a Coluna Prestes; o segundo, da Coluna até o levante da Aliança Nacional Libertadora e o último – ainda em preparação – da participação de revolucionários brasileiros na defesa da República espanhola até o golpe de 1964.

Há poucos anos você lançou Liberalismo e Ditadura no Cone Sul – uma coletânea de artigos que tinham como tema central a participação política dos militares na América do Sul – e agora você relança o primeiro volume de Esquerda Militar no Brasil. De onde vem o interesse por este tema que era um verdadeiro tabu para a intelectualidade de esquerda?
Quartim – Antes de mais nada, motivou-me a constatação de que o golpe de 1964, como disse com lúcida precisão o saudoso Nelson Werneck Sodré, “foi político, embora operado por forças militares”. Sodré retomou esta argumentação notadamente nos debates que marcaram os trinta anos do movimento sedicioso desencadeado em 31 de março de 1964. Mostrando que, de 1945 em diante, as intervenções políticas das Forças Armadas foram inspiradas pelos partidos reacionários derrotados nas urnas, ele explicou com clareza e farta documentação o processo através do qual os latifundiários e a burguesia entreguista intoxicaram ideologicamente parcela ponderável da oficialidade.

Ao contrário do que geralmente se pensava, os militares, incluindo a oficialidade, não tiveram apenas um papel negativo na história brasileira. Esta, sem dúvida, é uma das contribuições de seu livro. Por favor, fale um pouco sobre o papel progressista desempenhado por eles no processo da abolição da escravidão. Quartim – O Clube Militar, em seu quarto mês de existência, em outubro de 1887 escreveu a página mais generosa de sua secular existência. Ameaçados em seus odiosos privilégios, os donos de escravos reagiam à crescente mobilização abolicionista com uma truculência que seria imitada, no século seguinte, pelos inimigos da reforma agrária. Martinho Campos, que chefiara o gabinete do Império em 1882, assim resumia seu programa de governo: “Os abolicionistas são salteadores; mas, para estes, tenho meu revólver. A escravidão deve ser mantida, por amor dos próprios escravos”. Por amor dos próprios escravos que, teimando em não compreender as motivações filantrópicas de seus proprietários, fugiam em massa das senzalas e das plantações, intensificava-se a caça aos fugitivos; como, porém, embora numerosos, os esbirros empregados neste sórdido trabalho de busca e captura mostravam-se incapazes de deter a onda de evasões os senhores de escravos passaram a pressionar o governo para que, como diriam hoje, mobilizasse o Exército em defesa da ordem social, isto é, na caçada aos foragidos. Em vários centros urbanos formavam-se quilombos, entre eles o de Santos, contra o qual se encarniçavam especialmente os escravocratas por ali se concentrarem, em número crescente, fugitivos das plantações de café da região de Campinas. O apelo ao Exército para desmantelá-lo era tido como iminente. Foi então que, reunidos no recém-fundado Clube Militar, os oficiais abolicionistas elaboraram, sob a direção de Deodoro da Fonseca que assumira a presidência da nova entidade, um “requerimento" à regente Isabel, apresentando “um pedido que é antes uma súplica”: que “o Governo Imperial não consinta que nos destacamentos do Exército que seguem para o interior […] os soldados sejam encarregados da captura dos pobres negros que fogem à escravidão…”. Essa histórica resolução está redigida num tom de respeito e de dignidade que torna ainda mais eloqüente a inspiração ética que o anima.

Por que o jacobinismo – representado na figura do Marechal Floriano – não constituiu uma alternativa viável, tendo que abandonar o governo nas mãos da oligarquia agro-exportadora paulista?
Quartim – O jacobinismo original (o da Revolução Francesa de 1789-1794) foi definido por Antonio Gramsci com insuperável concisão: aliança da burguesia revolucionária com os camponeses. O fato de o nosso ter sido circunscrito aos centros urbanos, notadamente ao Rio de Janeiro, dá a medida de seus limites. Com a circunstância muito agravante do apoio ao extermínio de Canudos. Mas embora confundisse patriotismo e chauvinismo, o jacobinismo brasileiro configurava uma corrente republicana radical cujo grande inspirador foi Floriano Peixoto, que, embora não tenha, obviamente, a estatura de um Maximilien Robespierre, esboçou os rudimentos da plataforma histórica da esquerda nacionalista em nosso país.
Determinamos o significado de uma política tanto pelo que ela propõe quanto por aqueles que a ela se opõem. O ferrenho escravocrata liberal Silveira Martins, principal ideólogo das forças ultrafederalistas e monarquistas que em junho de 1892 se levantaram no Rio Grande do Sul contra o governo federal (o objetivo imediato era derrubar o governador do Estado, Júlio de Castilhos, republicano convicto com grande prestígio popular e um dos grandes pioneiros da escola pública em nosso país), anos antes no Senado do Império, tinha atacado o projeto Dantas, que emancipava os escravos sexagenários, nos seguintes termos: “Será o suplício da Constituição, uma falta de consciência e escrúpulo; um verdadeiro roubo, a naturalização do comunismo, a ruína geral, a situação do Egito, a bancarrota do Estado, o suicídio da Nação”. Um século mais tarde, os porta-vozes do latifúndio retomariam as mesmas imprecações, em tom igualmente histérico, contra a reforma agrária.
No livro, fundamento e desenvolvo a tese de que, com a chegada de Prudente de Morais à presidência, a ditadura dos generais positivistas foi substituída pela dos fazendeiros. Um destacamento militar bastou para derrubar o Império. Mas quem mandava no país eram os grandes agrários, donos da terra e dos cafezais. Ainda predomina, entretanto, mesmo em certos meios de esquerda, a interpretação liberal de nossa história política, que contrapõe a “sociedade civil” (uma destas expressões feitas de borracha mole, que se prestam a todas as torções: inclui tanto os que jantam no Fasano quanto os que dormem embaixo da ponte) ao Estado (considerado em abstrato, sem referência à dominação e exploração de classe).

Durante a República Velha também ocorreram várias intervenções militares, fundamentalmente da baixa oficialidade. Que papel elas desempenharam na crise do regime oligárquico?
Quartim – O fato de o principal movimento político dos militares durante a República Velha ser conhecido por tenentismo indica que o espírito de rebelião atravessou horizontalmente a escala hierárquica: os jovens oficiais, de baixa patente, batiam-se pelo progresso, ao passo que os mais velhos e mais próximos do topo da carreira defendiam a ordem dos fazendeiros. Mas os esquemas topológicos (baixo/alto; esquerda/direita) só são úteis quando não se interpretam de modo demasiado literal. Tenentes de direita foram protagonistas do movimento dito dos “jovens turcos”, que combateu raivosamente os “tenentes”; de outro lado, as ainda pouco estudadas “salvações” dos anos dez (contestação militar do poder político das oligarquias agrárias) foram conduzidas por coronéis e generais, numa divisão vertical (de alto a baixo da escala hierárquica) da oficialidade.
Todos os levantes tenentistas, bem como a grande maioria das demais intervenções militares (inclusive as “salvações”), foram dirigidos contra a dominação política das oligarquias rurais, contribuindo decisivamente para miná-la (1924-1927), derrubá-la (1930) e impedir sua restauração (1932). No segundo volume de A Esquerda Militar no Brasil (“da Coluna à Comuna”), publicado em 1994, mostro que a chamada “revolução constitucionalista” de 1932 foi, na verdade, uma frustrada tentativa de restabelecer a velha república dos fazendeiros.
Mas de todas as rebeliões militares, a de mais profundo conteúdo social e por isso mesmo mais cruelmente reprimida foi a revolta dos marinheiros (dita “da chibata”), em 1910, contra os maus tratos e os atrozes castigos corporais a que eram discricionária e sistematicamente submetidos pelos oficiais.

Existe uma crítica provinda de setores de esquerda – inclusive comunista – que atribui um viés autoritário e elitista ao movimento tenentista, por ter-se recusado a mobilizar e armar os trabalhadores, especialmente no levante de São Paulo em 1924. O que isso tem de verdadeiro?
Quartim – Os liberais de todos os matizes sempre terão razão num ponto: os tenentes eram tenentes, tanto quanto na lógica formal dizemos A=A. Eram, portanto, funcionários da organização que constitui a ossatura do aparelho do Estado e o braço armado de sua força coativa e que, por isso mesmo, é fortemente hierarquizada e rigidamente disciplinada. Não poderiam se transformar da noite para o dia, mesmo quando empenhados na contestação da ordem estabelecida, em bolcheviques ou algo parecido.
Sabemos que a linguagem política nunca é ideologicamente neutra. “Autoritarismo” e “elitismo” são alguns destes “conceitos” de borracha molenga que podem ter certo valor descritivo, mas se prestam a todas as manipulações da historiografia e da “ciência política” burguesa, sobretudo estadunidense.
No que concerne à recusa de “mobilizar e armar os trabalhadores” é preciso não confundir o estabelecimento dos fatos com sua interpretação. Assinalo que houve amplo recrutamento de voluntários durante o período em que São Paulo esteve em poder dos rebeldes e procuro explicar por que não houve aliança política dos dirigentes “tenentistas” com os dirigentes populares paulistanos. Melhor do que em “elitismo”, falo, no livro, em limites burgueses da consciência democrático-revolucionária dos “tenentes”. A participação popular na luta armada não ultrapassaria a forma do recrutamento de voluntários. Nada de milícias operárias. A exatidão histórica exige, entretanto, que não se atribua esta atitude ao tenentismo em geral, mas fundamentalmente ao general Isidoro Dias Lopes e aos oficiais a ele mais diretamente ligados. Em sua qualidade de chefe militar do movimento, Isidoro fez prevalecer seu ponto de vista, contrário ao armamento do proletariado. Consta que o Major Miguel Costa não partilhava desta opinião.

O que levou uma parte da burocracia de Estado, justamente aquela que tem por função preservar a ordem, a viver em pé de guerra contra a monarquia e a República oligárquica? Quais interesses de classe esse setor das Forças Armadas representava?
Quartim – O marxismo nos fornece a chave teórica deste complexo de questões. Nem a burocracia, nem o Estado pairam, sempre idênticos, acima do movimento concreto da história. Procurei reconstituir sinteticamente a evolução das relações entre Império e Exército. Elas só podem ser compreendidas levando em conta o caráter precário da organização estatal, que nas zonas agrárias, estava, em larga medida, às ordens dos fazendeiros, classe dominante no Império, e de seus prepostos. Eles aceitaram a centralização do poder, na medida em que a estabilidade institucional garantia a ordem social, mas necessitavam também de uma força armada política e organicamente descentralizada que constituísse um instrumento de dominação adequado a uma classe cuja base econômica era a grande plantação escravista. Essa força, a Guarda Nacional, foi criada pelo padre Feijó logo nos primeiros meses de Regência (a 18 de agosto de 1831), para servir de “sentinela da Constituição jurada”. Sua função primordial era, na fórmula concisa da História militar do Brasil de Sodré, “neutralizar as forças armadas regulares”. Com efeito, já em seu primeiro ano de existência sufocou uma rebelião militar que pretendia a volta ao trono de D. Pedro I. O efetivo do Exército foi reduzido, de 1830 para 1831, de cerca de 30.000 a cerca de 14.000 homens.
Não era, evidentemente, por espírito antimilitarista e ainda menos por convicções pacifistas que a oligarquia agrária empenhava-se em enfraquecer o Exército. O que neste a inquietava era seu caráter de braço armado do poder central. Já a Guarda Nacional era na verdade um conjunto de milícias estaduais, recrutadas e comandadas pelos grandes agrários ou por algum de seus prepostos na política local (ungido do título de coronel). Eles eram, sobretudo, liberais no sentido institucional do termo: queriam um Estado ultrafederal, descentralizado ao máximo, de maneira a que o poder efetivo ficasse o mais perto possível da sede de suas fazendas. Se o duque de Caxias é o patrono do Exército, é porque entre este e a monarquia havia uma convergência objetiva: a preservação da unidade nacional.
O Exército se tornara antiescravista a partir da guerra do Paraguai. Os filhos dos fazendeiros consideravam engajar-se nas durezas e riscos da guerra a última de suas opções existenciais. Mais fácil era pagar um “voluntário” negro que lutasse em seu lugar, em troca da alforria. Não apenas por razões humanitárias, mas, sobretudo, por constatar que, em caso de confronto bélico, a nação podia contar mais com os escravos do que com os senhores, os militares tenderam a aderir à causa da emancipação.
Dezessete anos depois, proclamando a Abolição, a monarquia reduziu a quase nada sua sustentação por parte da oligarquia agrária. Mesmo porque muitos dos fazendeiros que já não mais, ou só residualmente, recorriam ao trabalho escravo tinham aderido, com graus diversos de convicção, à causa republicana. Cabe perguntar por que os militares tomaram a iniciativa de derrubar o regime em 15 de novembro de 1889, embora a Regente Isabel tivesse assinado a lei de 13 de maio de 1888 e a despeito da contradição entre o objetivo político-institucional do Exército (fortalecer o poder central, até como condição de sua própria sobrevivência como organização nacional) e o da fração republicana da oligarquia, que pretendia, como os demais fazendeiros, enfraquecer o poder central em proveito do poder local e regional. Realizou amplamente este programa na chamada “aliança do café com leite”.
Quanto à questão dos interesses de classe que os militares rebeldes representavam, a melhor resposta, dentre as muitas que foram oferecidas é a de que estavam em sintonia com todos os que viviam do outro lado da porteira das fazendas. Cabe, porém, enfatizar a continuidade dos valores positivistas que inspiraram os jovens oficiais abolicionistas dos anos 1880 e os tenentes dos anos 1920.

Uma das particularidades do comunismo no Brasil foi a forte participação de militantes e dirigentes provindos da oficialidade das Forças Armadas. A própria direção da Aliança Nacional Libertadora era composta por oficiais do Exército e da Marinha. A que se deve esse fenômeno?
Quartim – Não havia militares no grupo fundador do PCB. Mas, até a intervenção sectária e obreirista do Secretariado sul-americano do Komintern, houve apoio aos levantes tenentistas. Esta posição está claramente sustentada em Agrarismo e industrialismo de Octavio Brandão (obra pioneira recentemente relançada pela editora Anita Garibaldi), sem esquecer de que Astrojildo Pereira foi visitar Luis Carlos Prestes em seu exílio boliviano para lhe expor e discutir os princípios do comunismo. Praticamente toda a ala esquerda do movimento tenentista convergiu para o comunismo seguindo a mesma referência que a tinha levado a não aderir, em 1930, ao dispositivo armado da Aliança Liberal. Esta referência tinha um nome glorioso, o Cavaleiro da Esperança.
Os militares também tiveram um papel importante – se não central – na campanha nacionalista ocorrida na década de 1950. A Campanha “O Petróleo é Nosso!” foi praticamente comandada por oficiais.
Em 1950, a chapa nacionalista, encabeçada pelos generais Estillac Leal e Horta Barbosa, venceu por ampla maioria as eleições para a direção do Clube Militar. Mais do que meros nacionalistas, os oficiais que a integravam eram também antiimperialistas. Além da campanha “O Petróleo é Nosso!”, tiveram também papel importante, ao lado do PCB (do qual alguns faziam parte), na luta para impedir que soldados brasileiros servissem de tropa auxiliar na invasão estadunidense da Coréia, decidida pelo presidente Truman (o mesmo das duas bombas atômicas). Nelson Werneck Sodré, que a integrava e já era considerado, não sem razão, o principal teórico da esquerda militar, assumiu a direção do Departamento Cultural do Clube, cuja revista tornou-se a tribuna dos oficiais empenhados a fundo na batalha pelo desenvolvimento nacional, por uma política externa independente e por reformas sociais avançadas. A direita militar, exacerbada pelos ódios da “guerra fria”, logo se articulou numa “Cruzada Democrática” para aniquilar esse perigoso foco subversivo que ousava contestar a subordinação do Brasil ao “colosso do Norte” (fórmula reverencial dos deslumbrados com o poderio do dólar e do Pentágono). Com o apoio dos colossos estadunidenses, logrou não somente derrotar a ala nacionalista do Exército, mas também acuar Getúlio ao suicídio.
Na História militar do Brasil Sodré relata as perseguições então desatadas, que só seriam suplantadas pelo expurgo promovido pelos golpistas vitoriosos de 1964 contra seus companheiros de farda fiéis à legalidade constitucional. Interrompida em 1955, quando o general Lott desarticulou o dispositivo golpista da UDN contra a posse de JK, a perseguição recrudesceu em 1960 com a vitória de Jânio Quadros sobre o general Lott, candidato nacionalista.
O fiasco do golpe militar de 1961 contra a posse de João Goulart renovou o oxigênio intelectual nos meios militares, permitindo e até suscitando a eclosão de novos movimentos de militares de esquerda. O plural aqui é decisivo: estes movimentos foram pelo menos três, o dos oficiais nacionalistas, o dos sargentos e o dos marinheiros e fuzileiros navais. Não foi “gradualmente” que eles perderam espaço dentro das Forças Armadas, mas de um só golpe, o de 31 de março de 1964.

O que liga os jacobinos republicanos do final do Império e início da República aos tenentes revolucionários da década de 1920 e aos oficiais nacionalistas de 1950? Em outras palavras, o que o autoriza a colocá-los todos dentro do que você chamou de esquerda militar? Quartim – O nexo histórico que liga os tenentes revolucionários dos anos 1920 aos oficiais nacionalistas dos anos 1950 são os tenentes aliancistas e comunistas dos anos 1930. Já disse acima o nome que expressa eminentemente esta continuidade de três décadas: Luís Carlos Prestes. Já a conexão entre os jacobinos do final do Império e início da República e o tenentismo é bem mais tênue. É nítida, entretanto, a continuidade, num tempo histórico de cerca de três gerações, dos valores positivistas que inspiraram os jovens oficiais, da participação na campanha abolicionista e na proclamação da República aos levantes antioligárquicos dos anos 1920: confiança na emancipação da humanidade através do conhecimento científico, ênfase nos princípios republicanos, na escola pública etc.
A esquerda se determina pelas causas que defende e pelos inimigos que combate. Todos estes movimentos militares combateram por causas generosas e politicamente avançadas. Todos contestaram as iniqüidades da ordem estabelecida.
A história da esquerda militar parece ser a crônica de uma derrota. Os jacobinos foram derrotados pelas oligarquias no alvorecer da República, depois a esquerda tenentista perdeu espaço no pós-1930 e, por fim, a oficialidade nacionalista depois de altos e baixos foi eliminada no pós-1964. A esquerda militar não conseguiu impor sua hegemonia nas Forças Armadas e exercer influência decisiva nos rumos do Estado brasileiro.
Nem tudo foram derrotas: 1888, 1889, 1930 e 1932 marcaram vitórias das forças do progresso. A esquerda tenentista perdeu espaço no pós-1930 porque, erroneamente em meu entender, não participou do movimento que derrubou a república oligárquica. Recuperou-o (por muito pouco tempo) com a Aliança Nacional Libertadora (ANL), um dos mais pujantes avançados revolucionários de massas de nossa história. Não se inclinando perante o ato de força de Getúlio a ANL enveredou pela trilha da insurreição, tentando responder à repressão política pela violência armada. As conseqüências foram terríveis e politicamente catastróficas.
Outras vitórias das forças do progresso não teriam sido possíveis sem a participação ativa da esquerda militar. Além da criação da Petrobras, a ela devemos, em larga medida, a vitoriosa resistência aos golpes reacionários de 1955 e de 1961, bem como a realização do plebiscito de 3 de janeiro de 1963, em que 80% dos votantes disseram sim ao reconhecimento dos plenos poderes presidenciais de João Goulart.
Quanto às razões da derrota da esquerda militar brasileira, elas são as mesmas que as da derrota de toda a esquerda brasileira e, portanto, se inscrevem no estudo do imenso desastre para nossa nação que foi a vitória da contra-revolução de 1964.

Você tem sido incisivo ao afirmar que o golpe militar de 1964 destruiu a possibilidade de ser mantida a tradição de uma esquerda militar nacionalista no seio da corporação militar. Esta é uma situação irreversível ou é possível que volte a se constituir uma esquerda militar no país? Qual deveria ser a atitude da esquerda socialista diante das Forças Armadas na atualidade?
Quartim – O movimento socialista, notadamente os comunistas, exercerão influência junto aos militares de espírito verdadeiramente patriótico se defenderem e, sobretudo, levarem adiante, uma plataforma que assuma as grandes aspirações históricas das forças progressistas brasileiras: as reformas sociais avançadas que ponham fim à miséria de nosso povo, o desenvolvimento das forças produtivas de nosso país, a afirmação da soberania nacional através de uma política externa independente e voltada para a integração sul-americana.
Mas, perante a memória histórica do povo brasileiro, cometeríamos, entretanto, a pior das infidelidades – a traição à memória de nossos mortos – se consentíssemos em pagar, pelas boas relações com os militares de hoje, o preço do esquecimento dos crimes cometidos pela ditadura. Mesmo porque, nos países sul-americanos submetidos ao terrorismo de Estado, só no Brasil os torturadores não somente permanecem totalmente impunes, mas também continuam a receber elogios por parte da cúpula do Exército.
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Augusto Buonicore é mestre em história pela Unicamp e diretor do Instituto Maurício Grabois.

EDIÇÃO 86, AGO/SET, 2006, PÁGINAS 66, 67, 68, 69, 70, 71