Os anos que antecederam o primeiro Fórum Social Mundial (Porto Alegre, 2001) foram palco de uma trajetória ascendente de reorganização e fortalecimento do movimento antiimperialista internacional. Após duas vitórias consideráveis – uma contra a implantação do AMI (Acordo Multilateral de Investimentos) no âmbito da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) em abril de 1998, na cidade de Paris; e, outra, em Seattle em dezembro de 1999 contra a “Rodada do Milênio” de negociações da OMC (Organização Mundial do Comércio) – foi criada uma atmosfera propícia para o surgimento de um espaço global de diálogo e definições de estratégias para o movimento social global que se instaurava.

O ano de 2000, que precedeu o I Fórum Social Mundial, foi marcado por uma mescla de regozijo sobre os acontecimentos de Seattle e questionamentos sobre os passos que se dariam em seguida. Uma espécie de euforia tomou conta dos principais sindicatos, redes e associações tanto locais, como nacionais e internacionais. Após as duas vitórias, sobre a OCDE e a OMC, se fortalecia a convicção da possibilidade de imprimir derrotas reais ao imperialismo, a partir de uma ação conjunta no plano mundial. Destacam-se como fatores relevantes do período, o surgimento da ATTAC (Associação por uma taxa Tobin de ajuda aos cidadãos); os protestos durante a reunião do Fórum Econômico Mundial em Davos; as mobilizações durante a 10a Cúpula da UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) em Bangkok; os protestos em Washington durante reunião do G7; o início do movimento “Marcha Mundial das Mulheres”; as atividades de protesto durante reunião do G7 em Okinawa no Japão; os protestos e mobilizações durante reunião anual do FMI e BM em Praga e as mobilizações durante a Cúpula da União Européia em Nice.

Apesar da concentração das mobilizações e das iniciativas antiglobalização se encontrarem majoritariamente nos países do Norte, foi no Sul que se buscou a sede para o I Fórum Social Mundial (2001). O evento foi concebido como uma tentativa de expressão e articulação de todas as lutas em curso na escala mundial. Sua sede, Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul no Brasil, sob a administração do PT se consolidou como modelo de gestão democrática e popular – tendo no Orçamento Participativo o seu melhor cartão postal – e possibilitou a reunião de três formas de manifestação do movimento antiimperialista no período:
“A ‘primavera’ de Porto Alegre se alimentou e deu conta tanto do movimento internacional antineoliberal, (…) como também do crescimento do protesto social na América Latina; e também, o espírito da esquerda social e política brasileira e, neste último caso, em especial da gestão municipal e estadual do PT gaúcho. Estes três fios se juntaram para tornar possível o Fórum.” (Taddei, 2001).

Na seqüência do primeiro fórum a idéia se espalhou pelo mundo e se transformou na referência do movimento anti-Davos (1), ou seja, de todos aqueles que se voltam contra a globalização neoliberal comandada pelos países centrais do capitalismo, grandes corporações transnacionais e agências de fomento e investimento hegemonizadas por esse campo. Cada edição do FSM foi marcada pelas especificidades do momento e pelo crescimento numérico e organizativo do movimento. O I FSM, Porto Alegre 2001, contou com 18 mil participantes e teve a cara da novidade e da esperança de vitórias concretas sobre o neoliberalismo. O II FSM, Porto Alegre 2002, teve 51 mil participantes e como marca central a resposta dos movimentos sociais à ofensiva conservadora estadunidense pós-11 de setembro. O III FSM, Porto Alegre 2003, contou com 100 mil participantes e sua principal expressão foi a organização da luta mundial contra a instalação da Guerra no Iraque, culminando com o êxito das manifestações simultâneas de 15 de fevereiro. Do IV FSM, Mumbai 2004, participaram 75 mil pessoas, tendo sido marcado pela demonstração da efetiva mundialização do Fórum provada com o êxito de fazê-lo na Ásia e de modo mais popular. O V FSM, Porto Alegre 2005, contou com 155 mil participantes cadastrados e foi marcado pelo intenso debate quanto ao seu futuro, pela total auto-gestão das atividades e maior abertura do fórum à participação da população de Porto Alegre através da construção do “Território Social Mundial” à margem do Guaíba.

As tensões presentes no processo Fórum Social Mundial

Cinco anos depois do início da experiência Fórum Social Mundial podemos afirmar que não somente sua amplitude, sua capacidade de aglutinação na luta contra o imperialismo e sua inovação no campo da participação política constituem o fundamento sobre o qual se desenvolve a articulação dos movimentos sociais no nível global. As tensões presentes no seu interior também têm se demonstrado como fatores constitutivos e o entendimento dessas tensões é essencial para decifrar o funcionamento dessa máquina gigante.

Destacam-se como principais tensões as seguintes polêmicas: a) o fórum é “espaço” ou é “movimento”? b) partidos políticos devem ou não participar oficialmente do fórum? c) o fórum realmente é mundial? Escolhemos essas três questões por considerá-las mais relevantes no debate em torno do FSM, mas outras também poderiam ser mencionadas como a polêmica sobre o surgimento da “idéia original” do Fórum ou sobre a sua sustentabilidade ao longo do tempo, que estão inter-relacionadas com as polêmicas escolhidas. Em torno das polêmicas duas tendências principais se posicionam buscando hegemonizar a condução do processo. Denominemos arbitrariamente a primeira de “horizontalista” e a segunda de “movimentista” apenas para efeito didático de entendimento.

Uma primeira tendência se proclama inventora do FSM e representante de uma “nova geração política”, livre dos vícios dos movimentos e organizações sociais e populares que despontaram no século XX sob a influência do movimento comunista internacional e autora de uma nova cultura política. Expressando as linhas mestras do pensamento desse campo encontramos o livro O desafio do Fórum Social Mundial – um modo de ver de Francisco Whitaker (2005). Nele, numa passagem bastante marcante, o autor, ao tentar demarcar com o campo marxista, chega a reconhecer ser desrespeitoso nomear como “práticas do mundo velho” aquelas que levaram muitas pessoas a dedicarem suas vidas, com sacrifício pessoal inclusive, para refletir e agir na tentativa de destruir o monstro capitalista.

Fazendo clara alusão ao comunismo e às práticas dos partidos revolucionários, o autor compara as tais “velhas práticas” a um polvo que está embaixo da mesa das novas propostas em curso, sempre ameaçando virar a mesa.

Daí já é possível extrair o pensamento desse campo a respeito das polêmicas enunciadas. Um dos braços desse polvo que ameaça virar a mesa das novas práticas políticas é a tentativa de transformar o fórum em movimento, segundo Whitaker. Para o autor, se transformarmos o fórum em movimento estaremos jogando fora um poderoso instrumento de luta que fomos capazes de criar a partir da mais preciosa descoberta política dos últimos tempos: a força da articulação horizontal livre que explica tanto o sucesso de Porto Alegre, como o de Seattle e o das manifestações de 15 de fevereiro contra a guerra.

Deste modo, o FSM é um espaço e os espaços não têm líderes. Ele é só um lugar, fundamentalmente horizontal, como uma praça sem dono. A própria Carta de Princípios do fórum expressa bem essa contraposição ao estabelecimento de qualquer tipo de direção ou liderança dentro dele: ninguém pode falar em nome do fórum, não caberia falar em nome de um espaço, nem de seus participantes. Todos conservam seu direito de se exprimir e de atuar durante e posteriormente ao fórum segundo suas convicções, assumindo ou não posições e propostas que tenham apresentado ou sido apresentadas por outros participantes, mas nunca em nome do fórum e do conjunto de seus participantes.

Desse posicionamento deriva obviamente o preconceito quanto à participação dos partidos políticos, com especial preconceito quanto aos partidos revolucionários herdeiros da tradição leninista. Segundo Whitaker, são os partidos que não compreendem o fórum, pois a ação horizontal em rede nem sempre é compreendida por eles que se sentem temerosos de perder o monopólio da representação e da atuação política. É sugerida então uma atitude completamente passiva aos partidos, alegando que fariam melhor se ouvissem, atentos, o que a chamada sociedade civil diz e faz e procurassem incorporar em seus programas e ações os anseios e experiências da multiplicidade de iniciativas que vão se tornando visíveis com o fórum. Mas eles só podem observar porque uma vez admitidos como participantes tentariam partidarizar os movimentos e conquistar o poder da condução política do processo. Somente com o afastamento das ambições partidárias, portanto, o fórum poderá exercer sua vocação de construção de um novo mundo.

Como principal promotora dessa construção estaria uma já consolidada sociedade civil planetária. Nesse ponto os “horizontalistas” são bastante otimistas quanto à terceira polêmica, a da real mundialização do FSM. Segundo eles, ao se afirmar como “espaço” e afastar as ambições partidárias o Fórum deu o passo que já vinha sendo experimentado pelos movimentos populares e cívicos, insurgindo-se contra a dominação da cultura política da ação comandada de cima para baixo. Fazendo surgir um novo ator político, a sociedade civil planetária, com a dimensão e a articulação mundial que tem o sistema liberal atualmente hegemônico. Tal sociedade civil planetária está fundada sob novas formas de atuação política, livre da tendência autoritária das “velhas práticas” e absolutamente diversificada e plural. Não cabendo a ela unificar uma proposta ou um projeto de “outro mundo”, mas estimular a proliferação de micro e macro projetos que por si só já caracterizam a invenção do novo mundo.

Na contramão dessa linha de pensamento e ameaçando permanentemente a hegemonia dos “horizontalistas” na condução do Fórum está um campo que denominamos previamente de “movimentistas”. Sua composição não é nada homogênea e abriga todos aqueles, inclusive “horizontalistas”, que apostam em uma maior realização da capacidade propositiva e de resistência ao neoliberalismo engendrada no Fórum. Como expressão maior desse campo está a Rede Mundial dos Movimentos Sociais que surgiu no I FSM de uma iniciativa da CUT e do MST (e, por extensão, da Via Campesina), e de diversos grupos com um papel protagonista na luta mundial contra a globalização – como os comitês da ATTAC e a Confederação Camponesa da França, a Marcha Mundial das Mulheres, as marchas européias de desempregados, o Jubileu sul, a Aliança Social Continental, a OCLAE, a campanha “50 Years is Enough!”, a Focus On The Global South, que desde o primeiro Fórum potencializam os encontros do FSM discutindo e aprovando documentos em torno de um calendário de lutas, subscrito por centenas de entidades. A força das assembléias e das declarações dessa Rede Mundial dos Movimentos Sociais tem sido tão expressiva e contundente que não raras vezes suas decisões são divulgadas pela imprensa e assumidas pelos próprios participantes do fórum como as “decisões” de cada fórum, causando um verdadeiro frisson entre os “horizontalistas”. Quanto à primeira polêmica, portanto, os “movimentistas” não temem que o fórum deixe de ser eminentemente um espaço de articulação caso algumas das decisões gestadas no seu interior se sobressaiam como unificadoras e mobilizadoras de ação do conjunto dos participantes e dos que tem no fórum uma referência. Pelo contrário, o fórum se fortalece quando transcende os cinco dias de encontro anual, definindo agendas e lutas prioritárias que o mantenham vivo no decorrer do ano no âmbito local, nacional e mundial.

Quanto à participação dos partidos é interessante notar não termos encontrado uma posição radicalizada quanto à importância da participação dos partidos. Encontramos uma posição muito mais flexível e ao mesmo tempo vacilante na hora de comprar esse debate. Encontramos no seio desse campo duas linhas de pensamento que apostam na importância dos partidos no processo FSM, sem, porém, comprar o debate frontal para a garantia de sua participação. Segundo uma delas, sem o apoio decisivo do PT, por exemplo, como partido do governo do Rio Grande do Sul e de Porto Alegre não teria sido possível realizar o FSM com a ambição que o caracterizou desde o início. Seguindo essa linha de pensamento, Boaventura, em FSM – manual de uso (2005), considera que o problema da relação entre partidos e movimentos não pode ser resolvido em abstrato, as condições históricas e políticas variam de país para país e podem ditar respostas distintas em contextos diferentes, a relação entre partidos políticos (especialmente de esquerda) e o FSM continuará, portanto, a ser debatida nos diferentes países onde os fóruns tiverem lugar, não cabendo uma decisão generalizável.

Uma outra linha de pensamento, presente dentro do campo dos “movimentistas”, não defende a incorporação direta dos partidos como participantes ou organizadores do fórum, mas indireta, através da sua influência nas lutas em curso no movimento global e por intermédio da ação de seus militantes em diversas associações e organizações civis.

Segundo os defensores dessa participação “indireta” dos partidos, existe hoje uma crise de representação política da esquerda que se manifesta tanto no fracasso de iniciativas internacionais como o Foro de São Paulo como na distância entre partidos e o novo movimento antiglobalização; mas, ao contrário do que pensam os “horizontalistas”, o próprio fórum pode contribuir para acelerar a recomposição política da esquerda em diferentes terrenos e superar a crise, essa tese é defendida no livro Fórum Social Mundial – a história de uma invenção política de José Corrêa Leite (2003). Uma terceira tendência que não pode ser chamada de linha ou campo propriamente presente no debate, por ter pouca produção concreta e pouco acesso aos fóruns decisórios do FSM, estaria principalmente sob a influência de organizações, movimentos, intelectuais influenciados por fortes partidos comunistas como da Índia, Cuba e Brasil, mas que além de terem pouca influência organizada, com exceção de Índia e Brasil por terem sido sede de edições do Fórum, não contam com a concordância de partidos comunistas importantes como da Grécia e de Portugal para levar adiante esse debate.

Por fim, quanto à terceira polêmica, os “movimentistas” são bem mais pessimistas ao avaliarem a real mundialização do Fórum Social Mundial. Em especial pela escassa participação da África e da Ásia, mesmo no fórum em Mumbai a participação africana foi bastante baixa. O que se agrava ainda mais se tivermos em conta que a ausência de movimentos e de organizações desses continentes refletem-se em parte na ausência de temas e de debates especificamente adequados a suas realidades e relevantes para elas (Santos, 2005). Neste sentido o FSM de Mumbai (Índia 2004) foi um passo decisivo para a globalização do processo do FSM, mas muito ainda há por fazer.

O VI Fórum Social Mundial

Foi como resultado deste amplo debate, que permeou o processo de consolidação, expansão e crise de amadurecimento do FSM que se decidiu realizar a VI edição de forma policentrica, ocorrendo no mesmo período em várias regiões do planeta. Mas como todo planejamento de largo porte corre seus riscos o que se delinea hoje é a ocorrência de dois eventos principais no período de janeiro de 2006 constituindo o VI FSM: o Fórum de Bamako em Mali (19 a 23 de janeiro) e o Fórum de Caracas na Venezuela (24 a 29 de janeiro). A Europa não será sede do FSM policêntrico, o Fórum Social Europeu ocorrerá em abril de 2006 na Grécia. Como conseqüência principalmente dos danos causados por um forte terremoto que vitimou o Paquistão em outubro desse ano, o capítulo asiático do VI FSM que ocorreria entre 24 e 29 de janeiro na cidade de Karachi precisou ser adiado por dois meses. Em 2007 o FSM volta a ocorrer de forma centralizada, dessa vez em Nairobi, no Quênia. A escolha do continente africano para sediar o VII Fórum se deu como fruto da necessidade de mundialização do Fórum e com especial atenção ao continente ao mesmo tempo mais vitimado pela globalização neoliberal e menos participativo nos eventos antiglobalização, por uma série de motivos que infelizmente não podemos debater aqui.

Sem querer apontar previsões, mas observando as tendências em movimento, tudo indica que o Fórum de Caracas será a estrela do FSM 2006. A efervescência do movimento de resistência ao neoliberalismo, conjugada com uma série de vitórias populares nacionais indubitavelmente se encontra hoje na América Latina. O sucesso da Cumbre de los Pueblos durante a última cúpula de chefes de Estado das Américas em Mar del Plata na Argentina demonstrou a magnitude e a força do movimento que vem se consolidando na região. Tenho meus motivos para acreditar que o sucesso do Fórum em Caracas fortalecerá o campo dos “movimentistas”, apontando rumos mais concretos para a luta antiimperialista da atualidade. Mas só a história nos dirá.

*Ana Maria Prestes Rabelo é mestranda em Ciência Política pela UFMG e membro da Direção Nacional da UJS.

Nota
(1) Fórum Econômico Mundial que acontece todos os anos em Davos na Suíça, reunindo grandes chefes das finanças e da indústria mundial, há mais de trinta anos.

Referências
LEITE, J. C. Fórum Social Mundial – A história de uma invenção política. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2003.
SANTOS, B. S. O Fórum Social Mundial – Manual de Uso. São Paulo: Cortez, 2005.
TADDEI, E. & SEOANE, J. (Org.) Resistências Mundiais – de Seattle a Porto
Alegre. Petrópolis: Vozes, 2001.
WHITAKER, F. O desafio do Fórum Social Mundial – um modo de ver. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2005.

EDIÇÃO 82, DEZ/JAN, 2005-2006, PÁGINAS 68, 69, 70, 71, 72