Para o diretor de CartaCapital, criador de Veja, Jornal da Tarde e outras importantes publicações, um proletariado consciente e um partido avançado são essenciais para o progresso social

Recentemente CartaCapital trouxe um duro artigo seu sobre a qualidade do jornalismo brasileiro — pelo menos o jornalismo das grandes empresas de comunicação. Vivemos uma era de vale-tudo na mídia?
Mino Carta — A mídia no Brasil sempre foi uma das faces do poder. Portanto, nada disso surpreende. A diferença esteja, talvez, no fato de que os jornalistas e profissionais em outros tempos, ainda que sujeitos a regimes muito peculiares, tinham melhor qualidade. Claro, ela sempre serviu ao poder, sempre foi um instrumento nas mãos do poder, mas, evidentemente, os profissionais tinham melhor conhecimento do idioma, lidavam melhor com o vernáculo do que hoje. Portanto, de um modo geral, embora não tenha mudado a mídia desse ponto de vista — ou seja, sempre a serviço do poder — ainda assim os profissionais tinham melhor qualidade do que hoje. O jornalismo brasileiro, desse ponto de vista, decaiu brutalmente. De resto, intelectualmente, o Brasil decaiu muito. Então, nem nisso pode haver grandes surpresas. Havia jornalistas como Rubem Braga, Joel Silveira, Claudio Abramo, Jânio de Freitas — que ainda está aí militando, tem uma coluna na Folha de S.Paulo —, Abílio Costa Filho. Enfim, havia jornalistas de muito boa qualidade, gente que lidava bem com o vernáculo. Sem contar que se tratava de pessoas com uma visão de mundo bastante ampla, com um conhecimento do que interessa efetivamente, e extenso. Homens que sabiam aplicar o senso comum em determinadas circunstâncias, que não diziam barbaridades. E que, de uma maneira ou de outra, no relacionamento com os outros jornalistas tinham um comportamento justo, sem se sujeitarem de maneira tão clamorosa à idéia da concorrência. Não estavam tão preocupados com os interesses dos seus patrões. Portanto, é inegável, isso já aconteceu no Brasil. Mas piorou muito, também nesse ponto de vista. No mais, entretanto, sempre serviu ao poder.

A imprensa já foi descrita como o quarto poder. Ela faz parte do sistema de poder formado pela classe dominante e pelo grande capital?
Mino Carta — Neste exato momento em que estamos vivendo? Ora, nesta crise fica demonstrado claramente o quanto essa mídia serve ao poder. Essa pressão toda, essa forma muito peculiar de denuncismo corresponde, efetivamente, ao propósito do poder de degenerar Lula até o último momento. No fundo, não me parece que o objetivo seja derrubar Lula. Acredito, inclusive, que um recente editorial de O Estado de S. Paulo é perfeito: “Ruim com Lula, pior sem ele”.
Porque os banqueiros nunca ganharam tanto neste país como neste momento, graças à política do senhor Palocci. De um modo geral quem tem dinheiro está se saindo maravilhosamente bem porque com esses juros qualquer um ganha dinheiro. Só que, quais são as outras vantagens? Nenhuma. Produção, zero — ou, pelo menos, em baixa. E cinqüenta empresas aproximadamente conseguem exportar. Exportam. Já aí ganham pouco — porque sem dúvida elas ganham —, mas esse ganho está sujeito às regras mundiais e não às do Brasil. Portanto, o lucro é menor. E o resto é o que se move. E a produção é pura fumaça.
Mino Carta — Nunca concordei muito com a idéia de que querem um golpe, sobretudo porque acredito não convir a eles derrubar Lula. Não convém ao poder derrubar Lula. Sempre pensai que estivesse em andamento um processo de sangramento deste governo para, em primeiríssimo lugar, impedir a reeleição e, em segundo, esmagar qualquer idéia de governo de esquerda no país.

Recentemente o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos acusou a imprensa de querer pautar o governo. Como são essas relações entre governo, imprensa e grande capital?
Mino Carta — Sim. Mas, toda a mídia — com raríssimas exceções — se presta a esse jogo. Porque é o que serve ao poder, o que convém ao poder. Talvez ela queira pautar o governo. Mas, mais que isso: ela se tornou o instrumento, é o próprio bisturi que sangra lentamente. É a sanguessuga que se presta ao serviço do poder. Qual a relação entre o jornalismo das grandes empresas de comunicação e a chamada verdade dos fatos?
Mino Carta — Nenhuma, relação zero. A verdade dos fatos, que chamo nos meus devaneios de verdade factual, é ignorada; não importa o fato. O que importa é a interpretação do fato. O deputado Antonio Delfim Netto diz: “Só sai o que realmente interessa ao poder”; “Só se acompanha o assunto que interessa ao poder”. E é verdade. Veja, por exemplo, a crise de 1992, que levou ao impeachment de Collor. Em outubro de 1990, ou seja, um ano e meio antes da entrevista de Pedro Collor para a Veja, o instrumento-mor, publicada em abril de 1992, já havia aparecido essa denúncia do Pedro: a revista IstoÉ preparou uma matéria, assinada pelo Bob Fernandes, que ficou três meses atrás do PC Farias. Hospedou-se, inclusive, no mesmo apart-hotel. Houve inclusive uma tentativa de compra deste que vos fala, por parte de um emissário da ministra Zélia Cardoso de Mello, que foi à redação da IstoÉ numa tarde de sexta-feira do final de outubro de 1990. Collor estava no poder havia sete meses. E esse sujeito foi lá e ofereceu, abertamente, algo que eu não sabia o que era. Respondi a ele: “Ponha-se daqui para fora”. E, ao coloca-lo para fora ainda disse: “Não sou o dono disto aqui. O dono se chama Domingo Alzugaray”. Ele se foi embora. Depois de umas duas horas o Domingo foi até mim, com os olhos fora das órbitas, e me disse: “Escuta, me ofereceram uma grana preta para não publicar esta matéria. O que você acha?”. Respondi: “Acho que devemos publicar.” E a matéria saiu. Mas eles teriam gastado dinheiro à toa porque ninguém foi atrás daquela matéria, não repercutiu. A IstoÉ nessa ocasião tinha uma tiragem de 200 mil exemplares, era de uma maneira uma revista com uma circulação bem maior que a nossa atual. Mais que o dobro da tiragem. E ninguém foi atrás porque naquele momento não interessava.

Mas o PT e o governo são acusados por ações que não apareceram hoje, mas constituem uma prática antiga…
Mino Carta — Para mim, esta situação é o fecho perfeito do golpe de 1964. Completa-se a obra de uma forma impecável. O golpe de 1964 teve profundas ligações com a eleição de Getúlio e com a morte de Getúlio. Começa ali o movimento para impedir que o Brasil vire um país contemporâneo do mundo, com partido de esquerda de verdade, com os sindicatos fortes, à sombra de uma industrialização que avançasse rapidamente. Uma coisa eu digo, o João Havelange ensinou ao mundo, com o futebol, como se compram os votos das federações. A classe dominante brasileira é formidável, desse ponto de vista: é a vocação da predação elevada ao cubo.
Com isso, o país fica inviável. Veja a reforma política. Há quem diga “Olha, o parlamentarismo”. Imagina! O parlamentarismo precisa de partidos mais que o presidencialismo. O presidencialismo se contenta com um bom bipartidarismo, enquanto o parlamentarismo precisa de partidos eficazes. E nós não os temos. A única exceção parecia ser o PT. Nós não temos partidos. Temos clubes.

Você foi um dos criadores da revista Veja, da Editora Abril que, durante muitos anos, foi a revista brasileira mais importante e hoje foi transformada em um panfleto político de má qualidade. Como isso aconteceu, em sua opinião?
Mino Carta — Em primeiro lugar, aconteceu um fato inegável: todas as grandes, empresas de comunicação brasileiras estão quebradas. Por quê? Isso é incompetente. É incompetente, perdulário, tem manias de grandeza. Então, gastam demais. É isso. Começam a ceder às imposições da publicidade, dos publicitários. Além disso, tem a famosa bonificação de venda. O negócio é ibope, ou tiragem. E nesse critério qualidade não importa. E então o periódico — convencido de que o público é composto de idiotas — baixa o nível. É uma mídia que pretende nivelar por baixo. Sou de uma geração de jornalistas que tem a convicção de que é preciso nivelar por cima. Mas hoje acham necessário nivelar por baixo.
Esta é uma crise espantosa porque é política e é moral. Mais, é espantosa e mostra como este país é inviável. Nessas condições é inviável.

O que seria necessário para o país se tornar viável? Mino Carta — Não sei. Não gostaria de afirmar coisas muito bombásticas, mas acredito que sem um gravíssimo abalo social isto aqui não conserta. Não tem muita alternativa. É um país medieval. É preciso acabar com a Idade Média. O Brasil de hoje é muito pior que o Brasil de cinqüenta anos atrás. Era um país entre a formas políticas populistas, mas era um país incrivelmente promissor que realmente tendia a um desenvolvimento forte, veemente, vigoroso, à sombra exatamente da revolução industrial. Havia um projeto no fundo nascido do Getúlio Vargas, embora ele tenha sido a certa altura um ditador. Mas percebeu algumas coisas e dotou o país de alguns instrumentos mínimos. Depois tivemos “O petróleo é nosso!”, em 1952, que consolida esse caminho. O que não tinha ainda acontecido era o surgimento de um proletariado na acepção européia do termo, quer dizer, uma classe operária consciente de sua força. Mas antes que ela surgisse deu-se o golpe de 1964. Em nome do quê? Da subversão em marcha e do caos econômico. A subversão eu continuo procurando, desesperadamente. Sinto cada vez mais falta dela. Naquela ocasião eu fiquei à procura da subversão, mas ela não deu o ar da sua graça. É preciso uma classe operária consciente de sua força. A Revolução Francesa precisou dos sans culotte para tomar a Bastilha.
O Partido Comunista Italiano foi decisivo para o progresso da Itália. Por quarenta anos foi dono de Milão, Gênova, Bologna etc, e nunca pegaram ninguém por corrupção. Eles tinham um projeto para a Itália. E um projeto muito independente, como se sabe. E que chegou ao apogeu com Enrico Berlinguer. Aldo Moro foi morto em 1978 porque estava em gestação o famoso compromisso de juntar as forças, as forças melhores. O Partido Comunista Italiano chegou quase a 40% dos votos a uma certa altura. O que era uma brutalidade para um país católico, como a Itália.
Tenho muitos amigos entre os comunistas italianos. O Massimo D’Alema, por exemplo, quando vem para cá, sempre nos encontramos. São pessoas de excelente qualidade. E porque eram comunistas sabiam perfeitamente que não poderiam ter o mais pálido deslize. Quer dizer, você representa efetivamente a esquerda, então, precisa dar o exemplo. A sua obrigação é essa.

Hoje se fala muito em modernidade, mídia eletrônica etc. No passado, a televisão adiantava notícias que só sairiam no jornal do dia seguinte; hoje, a internet coloca no ar em tempo real um enorme conjunto de informações. Qual o impacto dessa nova realidade? Há espaço para a mídia impressa? O historiador Clóvis Moura já lembrava que quando o telefone foi introduzido no Brasil foi usado para melhorar a repressão aos escravos fugitivos. Isto é, a modernidade a serviço do atraso…
Mino Carta — Eu não havia pensado nisso, mas essa comparação com a prestação de serviço a que o telefone se prontificou a oferecer aos donos do poder é muito correspondente a isso. Pense na televisão, antes ainda dos computadores, da internet. Pense no que foi a televisão em termos de manipulação. Como se vê a manipulação… A vitória de Lula foi algo extraordinário, porque pela primeira vez, na minha existência, vi a vitória do candidato da oposição no Brasil para a Presidência da República. E contra uma mídia muito fortalecida pela presença exatamente dessa tecnologia. Com manipulação diária, cujo resultado é a repetição dos mesmos conceitos. Todo mundo repete os mesmos conceitos, as mesmas idéias. Repete as mesmas palavras. Com isso se vê como a manipulação foi eficaz.
Isso é terrível para o Brasil. Como eu dizia, pela primeira vez na história do país vi a oposição ganhar contra essa mídia eletrônica, policiada por sistemas fantásticos, tecnologias avançadíssimas etc. Ganharam. Sessenta e dois por cento do eleitorado votaram no PT. Isso é uma escolha complicada num país como o Brasil. Muito complicada e muito importante. E revolucionária. E o PT não entendeu. Ele não conseguiu… Não teve, a meu ver, nem inteligência, nem coragem para implementar um projeto deferente com todas as cautelas recomendáveis, com todas as precauções devidas para não naufragar logo. Mas um projeto diferente. Mas ele foi tão para baixo, ele caiu tanto que até do ponto de vista da operacionalização ele recorreu aos métodos dos outros. Como a CartaCapital consegue se manter nesse ambiente?
Mino Carta — Eu diria que visamos a um público especial — não ouso dizer inteligente porque isso parece jactância. Como poderia ter sido o público do Retrato do Brasil, digamos. É um público que pensa. Não precisa, necessariamente, concordar com nossas idéias. Mas é o público que está disposto a nos ouvir. Portanto, em primeiro lugar, a escolha do público é muito clara. E não nos incomodamos, exatamente, em competir com quem tem tiragens fluviais. Não é esse o objetivo. Somos, a meu ver, incrivelmente honestos, muito honestos. Além disso, pagamos o que se deve pagar e não temos dívidas com ninguém e isso nos dá uma independência enorme. E conseguimos fazer muita economia. Esses fatores conjugados explicam a presença de CartaCapital, que completa nesses dias, exatamente, onze anos — quatro como semanal. Também esse projeto foi sendo feito aos poucos, com muita paciência. Primeiro, fizemos uma revista mensal, durante um ano e meio. Depois, quinzenal, durante cinco anos e meio. E agora, semanal, há quatro.

Minha impressão é de que o nível cultural dos jornalistas caiu muito nas últimas décadas. Há entre eles uma forte adesão a uma visão conservadora do mundo, um espírito novidadeiro e, cada vez mais, uma queda na capacidade de enxergar o conjunto…
Mino Carta — Eu, infelizmente, nunca acreditei muito no jornalismo porque o jornalismo é necessariamente superficial. Não há nunca — por causa do tempo e dos tamanhos — a perspectiva para entender bem o que de fato aconteceu. Mas a honestidade é questão central. Que você conte as coisas como as viu, deixando bem claro que aquilo que está dizendo é como você viu, mas que pode existir uma outra verdade. Isso me parece a tarefa mínima do jornalista. Para mim, não é este o jornalismo que está sendo praticado no Brasil hoje. E o mundo, de um modo geral, está vivendo uma quadra complicada. Talvez estejamos vivendo uma espécie de Idade Média, no mundo inteiro. Com um império absolutamente inadequado, representado magnificamente pela figura — até mesmo caricata — do senhor Bush, que é o nosso imperador. E talvez não nos damos conta disso. Agora, é sempre muito difícil, apesar de tudo, comparar o Brasil com outros países que avançaram. Não tenho dúvidas de que essa história da globalização conseguiu transferir para o globo os males que eram nacionais, às vezes localizados. Há os ricos e os pobres. E os ricos vão viver cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Só que isso foi transferido para o globo, que ficou muito pequeno, até em função dos avanços tecnológicos. Mas de qualquer maneira, para mim, certas comparações são sempre muito difíceis. Temos de pensar Brasil. Então quando dizem “a ideologia acabou” querem dizer o quê? Que a esquerda acabou, basicamente? Não sei, vai ver é mais difícil ser de esquerda e, países onde a renda média per capita é de 25 mil euros e essa riqueza é bem distribuída. Mais ou menos bem distribuída, porque no fundo nós queremos o quê? A igualdade de oportunidades, que é fundamental. Agora, aqui, nem pensar. Então, se pensarmos exatamente neste país, não chegamos a R$ 3 mil em renda média per capita — se fosse bem distribuída, mas não é. Um por cento da população detém 50% dos bens. Somos vice-campeões mundiais em má distribuição de renda. Esse é um dado do Banco Mundial, não uma invenção do Kremlin, de 50 anos atrás.
Por isso ainda somos, sim, um país medieval que precisa de ideologia. Um partido de esquerda num país como o Brasil — forte, aguerrido, capaz de até canalizar, para o melhor, as energias — é fundamental para fazer uma mediação com o povo sofrido que até hoje não se deu conta do seu sofrimento, que não tem consciência da cidadania. Se não houver um bom partido de esquerda é uma tragédia. Não pe bom. É muito ruim para o país. E o PT jogou fora a oportunidade. E essas coisas não se repetem tão facilmente.

José Carlos Ruy é jornalista e editor de Princípios; e Priscila Lobragatte é jornalista de A Classe Operária.

EDIÇÃO 81, OUT/NOV, 2005, PÁGINAS 22, 23, 24, 25, 26