Se há um tema que preocupa os poetas de nosso tempo é o da poesia de circunstâncias. A bem da verdade, faz mais do que preocupá-los: exaspera-os e subleva-os. Muitos poetastros e ritmadores prosaicos a praticaram e, assim, a poesia eterna, o fundo mais constante do homem, parece às vezes ameaçada. Não queremos descuidar esta ameaça, não queremos ignorar a imitação, a burla da poesia, nem subestimar seu perigo. E devemos a nós próprios a defesa da poesia verdadeira, a verdadeira poesia de circunstâncias.

Quisera, mas cedi ao atrativo de um título mais simples que nomeia a coisa sem revelar sua ressonância, intitular estas reflexões assim: "Da poesia de circunstâncias à poesia eterna". Mas não há duas classes de poesia, e todos os adjetivos que se podem unir à poesia para defini-la, lírica, épica, heróica, didática, dramática, rítmica, livre ou ligeira, não impedem que se ouça em primeiro lugar a palavra poesia, quer dizer, a palavra canto. A poesia é a linguagem que canta. Se perguntássemos a dez pessoas das ruas de nossas cidades, mal instruídas e sábias, o que é um poeta, responderiam: "É alguém que faz versos". Não fiz a prova, mas estou seguro. Enquanto, na Grécia, por exemplo, fui apresentado como poeta a camponeses analfabetos e todos respondiam: "Ah, sim, um cantor". Pois desde os mais antigos tempos, a poesia é a linguagem que canta; e penso que isto não mudará jamais.

O dicionário nos diz que circunstância é um lugar comum que se refere a pessoa, coisa, lugar, meios, motivos, maneira e tempo. A crítica dos homens e de suas obras deve, pois, considerar primeiro todas as condições de pessoa, coisa, lugar, meios, motivos, maneira e tempo. Julgará assim em que medida um homem foi movido pelas circunstâncias e em que medida essas circunstâncias o elevaram ou rebaixaram. Um homem normal se identifica não só com os seres que tem próximos, mas também com os que não conhece, com os acontecimentos que atuam sobre eles, e com os acontecimentos que eles provocam. E o poeta arde por reproduzir a vida. "O mundo – disse Goethe (1) – é tão grande, tão rico, e a vida oferece um espetáculo tão diverso que nunca faltarão temas de poesia. Mas é necessário que seja sempre poesia de circunstâncias, dito de outra maneira, é preciso que a realidade brinde a ocasião e a matéria. Um caso singular se converte em geral e poético precisamente pelo fato de que o trata o poeta. Meus poemas são todos poemas de circunstâncias. Inspiram-se na realidade, sobre ela se fundam e repousam. Nada tenho que fazer com poemas que não se baseiam em nada.

Não se diga que a realidade carece de interesse poético; um poeta triunfou na prova precisamente quando seu espírito sabe descobrir em um tema trivial algum aspecto interessante. A realidade deve brindar o motivo, o ponto de partida, o núcleo propriamente dito, mas é tarefa do poeta formar com isso um todo que seja belo, animado”.

Todo poema, podemos dizer com Goethe, é de circunstâncias. Mas, tanto se se entende esta palavra no sentido mais amplo como no mais estrito empregado comumente, o poema só existirá, só alcançará seu objetivo, se escapa à mediocridade. E mais ainda no segundo caso do que no primeiro. Estamos dispostos a perdoar a um poeta de gênio suas contradições, suas imprecações, seus excessos; em que dificilmente absolvemos a um medíocre,. apesar de seus bons sentimentos. Isto porque, por um lado, geralmente foram pesadas as razões, as circunstâncias que levaram o verdadeiro poeta a contradizer o bem e, por outro, a linguagem do medíocre, linguagem gratuita, é imprestável.

Antes de tudo o leitor ideal não quer que o enganem. Desconfia, sabe que a consciência no mal é muitas vezes menos perigosa que a inconsciência no bem. Está em guarda contra a hipocrisia. Sabe até que ponto de degradação a facilidade e a covardia podem conduzir um incapaz.

A poesia verdadeira deve expressar o mundo real, mas também nosso mundo interior e esse mundo transformado que temos sonhado, esta verdade que está em nós se nossos olhos se abrem realmente. Se o mundo real não embebeu a cabeça do poeta, este nunca poderá restituir ao mundo senão abstração e confusão, sonhos informes e crenças absurdas. Sua realidade poética pessoal não resistirá diante da realidade poética do mundo. Não estará no mundo, pois não terá levado o peso do homem, seu próprio peso, o peso do homem no mundo e do mundo no homem. Não se terá realizado nele o trabalho da reflexão. Falará como um fantasma. É fácil ser um fantasma para si mesmo e para os demais. É tão fácil obedecer à fadiga, à pena, à ociosidade, mais fácil romper aparentemente com o mundo concreto do que com as velhas brumas da preguiça, da miséria e da morte, mais fácil suicidar-se que viver, sobretudo por dever. Para obter a soma do que existe no mundo é preciso ter a coragem de acrescentar objetos e sentimentos, amor e ódio, cores e formas, épocas e climas. O poeta unirá sua sensibilidade, seu julgamento, sua imaginação a esse mundo real que deve superar e transformar. Fa-lo-á com paixão, e se se lança de corpo inteiro a isso sairá vencedor das inevitáveis lutas entre o bem e o mal, entre juventude e decadência, entre o ódio armado e o amor que se reproduz.
Trata-se de emergir, com as multidões imemoriais e as multidões futuras, do barro fétido da opressão do homem pelo homem, do poeta pelo filisteu, do mártir pelo verdugo.

É preciso que o pensamento humano recobre a saúde, essa pedra filosofal; recobre sua unidade; que possa aniquilar o que não é pura e simplesmente o bem, a vida, a felicidade de viver.
Sabemos que só há gênio poético na medida em que o poeta não mente. E hoje não mentir é atuar. Que a poesia seja um meio de ação, um meio de ir adiante, pois canta por todas as janelas e em todos os horizontes, canta a evidência e o exemplo contra a mentira.

Os frutos, as flores são as circunstâncias da primavera, como uma revolução pode ser a circunstância da felicidade de um povo e de todos os povos. O poema revolucionário deve buscar sua inspiração em sentimentos claros, fundados na necessidade de viver e de reproduzir a vida, em um desejo de justiça bem definido, lógico. Sem embargo, como esse sentimento se funda na solidariedade humana pode e deve ter um conteúdo poético tão denso como o sentimento amoroso, outra expressão da luta pela vida.

É preciso que o poeta, o homem, se apodere da realidade, que a domine. Essa realidade está longe de ser ambígua. Não se mascara. Não existe anjo da realidade. Ela pode ser desgraçada e poeirenta, cruel e vã, monstruosa. Pode chamar-se idiotice, miséria, doença, guerra. O poeta não vive nas alturas, não adormece freqüentemente com doces beatices; mas uma vez que atravessou nossa angústia, não deve submeter-se a ela. Tampouco deve considerar que os caminhos da poesia são estreitos e suas formas imutáveis. Todo poeta valoroso tem o dever de abrir um caminho tão amplo como seja possível à exa1tação humana. E para isso todas as formas são boas, sua linguagem se compõe de todas as palavras, de todas as coisas. Não há formas consagradas, como tampouco há temas nem palavras sagrados ou profanos ou vulgares.

Contra todas as filosofias errantes, começamos a compreender, com Gorki, que nada no mundo merece mais atenção que nosso amigo e inimigo, o homem. Uma poesia objetiva é a poesia da natureza submetida ao homem, tal como realmente é, vulnerável, perfectível, reduzida a um papel sublime de mãe e serviçal, poesia do trabalho despojado de todo egoísmo, poesia do combate pela liberdade, poesia da felicidade material igual para todos, poesia da grandeza humana que não suporta ter uma sombra. O ideal do poeta se realiza: cria para os outros e pelos outros. A palavra poeta pode ter parecido ridícula, mas agora recobra sua nobreza. É agora sinônimo de irmão. Tem o peso do pão, tem a ligeireza ardente do homem que não quer mais passar fome.

A muitos de nós só nos falta um pouco mais de consciência, consciência das possibilidades humanas e também das possibilidades da poesia. A poesia nunca inventou obstáculos para si própria, nunca se propôs fins. Só adorou os deuses à medida da imortalidade. Esta imortalidade, hoje, é concreta, pois a esperança suprema não teme mais a morte do que o combate.

Damos razão a Goethe: "Todo poema é de circunstâncias". E para desmentir os defensores de uma poesia imaterial, repitamos: para que um poema passe do particular ao geral e adquira assim um sentido válido, durável, eterno é preciso que a circunstância concorde com os mais simples desejos do poeta, com seu coração e seu espírito, com sua razão.

Se não, a circunstância se perde no momento, no instante; só a vincula à duração o fato de ter sido, em certo tempo, mais ou menos bem cantada. Pois é preciso distinguir entre as circunstâncias. Existem circunstâncias que ficam para sempre encerradas em si mesmas, na anedota e no episódio. Mas há outras que levam o acontecimento à altura da história e da poesia.

A memória se perde, mas a consciência subsiste. Por isso não se deve confundir poesia de circunstâncias com poesia de encomenda. A poesia de encomenda só por casualidade pode corresponder ao desejo, à convicção profunda, à sensibilidade do poeta. A verdadeira poesia de circunstância deve brotar do poeta com a precisão de um espelho fiel aos outros homens. Responde então ao que Maiakóvski chamava de "encomenda social", por oposição à encomenda casual, sem valor, não transmissível.

A circunstância exterior deve coincidir com a circunstância interior, como se o próprio poeta a houvesse produzido. Resulta então tão verdadeira como a emoção amorosa, como a flor engendrada pela primavera, como a alegria de construir para viver. O poeta segue sua idéia, mas essa idéia o leva a inscrever-se na curva do progresso humano. E pouco a pouco o mundo o substitui, o mundo canta através dele.

LIBERDADE

Nos meus cadernos de escola
Nas carteiras e nas árvores
Nas areias e na neve
Escrevo teu nome

Em toda página lida
Em toda página em branco
Pedra, papel, sangue ou cinza
Escrevo teu nome

Em toda imagem doirada
E nas armas dos guerreiros
Ou nas coroas dos reis
Escrevo teu nome

Na floresta e no deserto
Nos ninhos e nas giestas
Nos ecos de minha infância
Escrevo teu nome

Nas maravilhas da noite
No pão branco da manhã
Nas estações em noivado
Escrevo teu nome

Em todo farrapo azul
No tanque de água mofado
No lago de lua viva
Escrevo teu nome

Nos campos e no horizonte
Nas asas dos passarinhos
E nos moinhos de sombra
Escrevo teu nome

Em todo sopro da aurora
No mar e em cada navio
Na montanha adormecida
Escrevo teu nome

Nas espumas e nas nuvens
Nos suores da tormenta
Na chuva densa e enfadonha
Escrevo teu nome

Nas formas resplandescentes
Nos sinos de várias cores
Em toda verdade física
Escrevo teu nome

Nos caminhos acordados
E nas estradas vistosas
Ou nas praças transbordantes
Escrevo teu nome

Na lâmpada que se acende
Na lâmpada que se apaga
Em minhas casas reunidas
Escrevo teu nome

Na fruta cortada ao meio
Do meu espelho e meu quarto
No leito concha vazia
Escrevo teu nome

No meu cão guloso e terno
De orelhas que estão em guarda
Nas suas patas sem jeito
Escrevo teu nome

Na minha porta de entrada
Nos objetos familiares
Nas ondas de fogo lento
Escrevo teu nome

Em toda carne cedida
Na fronte de meus amigos
Em cada mão que se estende
Escrevo teu nome

Na vidraça das surpresas
E nos lábios sempre atentos
Bem acima do silêncio
Escrevo teu nome

Nos refúgios destruídos
Nos faróis desmoronados
Nas paredes de meu tédio
Escrevo teu nome

Nas ausências sem desejo
Na solidão toda nua
Nesta marcha para a morte
Escrevo teu nome

Na saúde que retoma
No Perigo que passou
Nas esperanças sem eco
Escrevo teu nome

E ao poder de uma palavra
Recomeço minha vida
Nasci para conhecer-te
E chamar-te
Liberdade.

* Paul Eluard (1894/1952) – poeta e militante comunista francês.
Poema de Paul Eluard, escrito e publicado clandestinamente, em plena ocupação nazista. Era o grande brado do Poeta, identificado com as dores e os anseios do povo e da Pátria.

Nota:
(1) J. W. GOETHE (1749-1832) – poeta alemão, autor de Fausto, obra-prima da poesia e da dramaturgia universal.

EDIÇÃO 10, ABRIL, 1985, PÁGINAS 55, 56, 57, 58