Analisaremos aqui como o pensamento liberal evoluiu em meio a esse impasse. Em seguida, veremos como a teoria marxista supera a contradição entre igualdade e liberdade presente no liberalismo. Entre os clássicos do liberalismo, vamos acompanhar o pensamento de três autores que representam marcos distintivos na evolução dessa corrente Hobbes, Locke e Rousseau. Depois, veremos como essa mesma problemática é encarada por Marx, Engels e Lênin.

O ESTADO DE NATUREZA NO PENSAMENTO LIBERAL

Todos os autores clássicos do liberalismo fundamentam suas formulações teóricas na discussão sobre qual seria a situação "natural" do homem, antes de este ter sido "corrompido" pela sociedade. Este "estado de natureza", no entanto, não é uma investigação histórica das sociedades humanas antes do surgimento da propriedade privada e do Estado. Trata-se de uma abstração teórica, em que cada autor procura extrair da sua cabeça qual seria a natureza dos diferentes indivíduos se estes fossem concebidos fora da sociedade.

O primeiro autor a formular a teoria política nestes termos foi o inglês Thomas Hobbes, que pode ser considerado o "pai" do liberalismo. Alguns poderão objetar à inclusão deste autor na matriz do pensamento liberal em função das conclusões inegavelmente autoritárias e absolutistas do seu raciocínio político. Mas o fato é que ele lança os fundamentos de toda a estrutura do pensamento liberal ao, pela primeira vez, abordar a questão política tendo como unidade básica de raciocínio o papel do indivíduo na sociedade.

O PENSAMENTO DE THOMAS HOBBES

A grande obra do autor que sintetiza toda a sua teoria política é Leviatã (1), escrita em 1651. Ao lançar suas premissas para fundamentar o papel do Estado na sociedade, Hobbes analisa a natureza do homem a partir de uma concepção classificada por Marx e Engels posteriormente de "materialista-mecânica". Segundo Hobbes, ao estudar a natureza humana, não se pode separar o pensamento da matéria que pensa. Mas esse materialismo hobbesiano se volta para a investigação dos indivíduos, e não da sociedade. Ele parte primeiro do estudo do homem individual, visto isoladamente, para depois refletir sobre quais seriam as consequências da sua junção em sociedade. Ou seja, em nenhum momento desenvolve uma análise materialista histórica, procurando situar a natureza humana em função das diferentes etapas de desenvolvimento da sociedade como um todo.

Ao situar a natureza humana dessa forma, Hobbes concebe os homens como sistemas de matéria em permanente movimento motivados por suas paixões. A própria essência da vida humana seria essa incessante e voraz busca da satisfação de seus mais variados desejos. Neste movimento permanente, o autor inglês considera haver uma igualdade fundamental entre todos os homens em termos de suas capacidades e aptidões, tanto no que se refere às aptidões físicas como às aptidões mentais. Ao referir-se às aptidões físicas, Hobbes fala sobre a própria força corporal dos homens em si. Aqui entra uma formulação básica para toda a sua teoria – a existência de uma igualdade essencial na capacidade de os homens matarem-se uns aos outros. Embora haja uma certa variação na força física dos homens, esta variação não é grande o suficiente para que o mais fraco não possa matar o mais forte. "Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo".
Em termos da teoria de Hobbes, usando as palavras do pensamento do personagem de Jô Soares, "aí é que mora o perigo…”. Isto porque os homens, quando se juntam em sociedade, enfrentam uma situação de conflito entre si.

Aqui, a igualdade natural dos homens se transforma numa igual sujeição às leis de mercado que dominam todos os aspectos da vida humana. O valor de cada homem em sociedade é estabelecido por seus semelhantes que, constantemente, se comparam uns aos outros, e valorizam suas respectivas aptidões e qualidades numa espécie de operação permanente da lei da oferta e da procura. Enquanto os homens viviam isoladamente fora da sociedade, a questão de "quem é melhor" obviamente não se aplicava. Mas a junção destes homens naturalmente iguais em sociedade acaba gerando diferenças de riqueza, honra, mando etc. Como todos os homens são igualmente regidos pela ânsia de satisfazer paixões semelhantes, e se consideram iguais no direito de gozá-las, a situação da sociedade passa a ser de tensão e conflito permanente, um estado que Hobbes chamava de "guerra de todos contra todos". Neste estado, era impossível a moderação. Como os homens permanecem essencialmente iguais, principalmente na capacidade de se matar uns aos outros, esta "guerra" não pode ter vencedor. O resultante caos acaba por não garantir o mais forte de todos os desejos, que é a própria sobrevivência.

Com base nesse raciocínio, todo ele baseado na igualdade fundamental dos homens, a conclusão política de Hobbes é de que para se auto-preservar, e para preservar a sociedade, os homens não têm outra alternativa senão abrir-mão de sua liberdade de movimentos. Todos devem subordinar-se por igual ao poder absoluto de um soberano – o "Leviatã" – que concentrará todos os poderes em suas mãos. Na sua opinião, o governo que melhor poderia cumprir este papel seria o da monarquia absoluta. Cabe ressaltar que essas formulações de Hobbes rompem com toda a tradição política de sua própria época. Até então, o poder da monarquia absoluta era justificado por concepções que afirmavam justamente o contrário, desigualdade inerente aos homens e exercício do poder como missão "divina". Assim, Hobbes introduz os postulados da teoria liberal na teoria política, mas termina com conclusões abertamente absolutistas. Por isso, suas obras foram duramente rechaçadas tanto pelos defensores como pelos adversários do absolutismo na Inglaterra do século XVII.

Na verdade, a concepção igualitária do autor inglês se apoiava na perspectiva da burguesia ascendente nesse período de afirmação do mercado capitalista. Da mesma forma que o pequeno produtor era tragado para a sociedade de mercado, Hobbes construiu sua teoria política no "trauma" do indivíduo isolado, forçado agora a conviver com seus semelhantes em sociedade. Da mesma forma que os capitalistas eram tragados inexoravelmente para um conflito de vida ou morte no mercado, o autor retrata como os indivíduos são impulsivamente levados a desejar além do seu "valor", gerando uma luta onde "vale tudo" na sociedade. Mas suas conclusões políticas não interessavam à burguesia ascendente que disputava seu espaço com a monarquia, e por isso ele foi descartado.

Em toda a sua teoria, Hobbes não leva em conta o fato histórico inconteste de os indivíduos concretos da sua própria sociedade estarem divididos em classes sociais distintas e antagônicas. Isto torna uma ilusão a sua visão de indivíduos competindo em igualdade de condições num mercado protegido pelo monarca, já que o acesso dos homens à riqueza, ao conhecimento e ao poder é necessariamente desigual numa sociedade dividida em classes. Assim, a tal "igual capacidade de matar" dos indivíduos inexiste. Um grupo de indivíduos em posição dominante na sociedade acaba desenvolvendo mecanismos para concentrar em suas mãos o monopólio da morte e da violência (isto é, cria o Estado!), usando-os para preservar seus privilégios. O poder absoluto do soberano, argumentado pela visão igualitária não classista de Hobbes, acaba tendo como consequência política concreta a
perpetuação da desigualdade na sociedade.

Esta é a curiosa evolução do pensamento do autor inglês, "pai” do liberalismo. Ele baseia sua teoria numa visão radical da igualdade natural dos homens vistos em isolamento, daí concluindo a sua igualdade social. Mas ao conceber a junção desses homens em sociedade, justamente por causa dessa igualdade, ele conclui a necessidade de poderosas restrições à liberdade individual, a submissão completa ao poder do monarca-soberano.

Assim, Hobbes traz à tona no berço da teoria liberal a contradição fundamental entre igualdade e liberdade. Suas conclusões políticas têm como consequência prática a negação de ambas!

O PENSAMENTO DE JOHN LOCKE

A tarefa de retomar os postulados de Hobbes, vinculando-os com conclusões mais afinadas com os interesses da burguesia inglesa ascendente, foi assumida por John Locke. Seu principal trabalho teórico, o Segundo Tratado de Governo (2), foi escrito apenas 40 anos depois do Leviatã de Hobbes (em 1690). Os defensores atuais do liberalismo assumem com muito mais tranquilidade a sua herança do que a de Hobbes. Para isto contribuem em grande escala as conclusões mais "liberais" da sua teoria em relação às formas de governo, em contraposição ao autor anterior. Outro aspecto importante que torna o seu pensamento mais adequado ao liberalismo nos dias de hoje é que Locke lançou as bases para conciliar a premissa igualitária-individualista do liberalismo com a gritante desigualdade de classes existente nas sociedades capitalistas.

Assim como Hobbes, Locke fundamenta seu raciocínio na discussão sobre a natureza do homem no "estado de natureza". Mas, este introduz uma discussão abordada pelo autor anterior só secundariamente: a questão da propriedade. Para Locke, a questão da propriedade tem uma importância central para a discussão política. Ele chega mesmo a afirmar: "o grande e principal objetivo, portanto, da união dos homens em comunidade, colocando-se eles sob o governo, é a preservação da propriedade". Esta noção de propriedade é definida de duas formas diferentes ao longo do Segundo Tratado de Governo. Uma delas é mais abrangente e inclui "a liberdade, a vida e os bens”. A outra, mais usada no decorrer do texto, se refere à propriedade sobre os produtos materiais da terra e à própria terra em si. Veremos a seguir o porquê disso.

Locke separa dois estágios no "estado de natureza": antes e depois da introdução do dinheiro na sociedade humana. No primeiro, as "leis da natureza" colocavam limites bastante estreitos à possibilidade de apropriação e acumulação na sociedade. Em primeiro lugar, Deus tendo dado a terra em comum a todos os homens, o único critério que poderia transformar essa propriedade comum em propriedade privada seria o trabalho. Só quem retirar alguma coisa do estado de natureza e produzir algo com o trabalho do seu corpo pode se considerar o "proprietário" desse produto do seu esforço. Assim como Hobbes, Locke usa como ponto básico de seu raciocínio a "condição natural" do pequeno produtor dentro de sua sociedade marcada pela afirmação crescente do mercado capitalista. A questão da apropriação é vista em função do trabalho individual de "artesão". Em momento algum se concebe a perspectiva da apropriação coletiva com base no trabalho comum dos homens sobre a natureza, que historicamente caracterizou as sociedades primitivas.

Essa concepção do trabalho como critério para a propriedade limita, por sua vez, o direito à acumulação. Os produtos só podem ser apropriados privadamente de acordo com as necessidades do consumo individual. O "desperdício" também é contrário às "leis da natureza". Esta junção do direito à propriedade pelo trabalho como o não-direito ao desperdício tem como consequência uma visão de sociedade onde produtores individuais dividem entre si a propriedade em proporções relativamente iguais. Sem a produção de excedentes, a relação entre esses produtos é mantida em perfeita harmonia pelo mercado. Esse primeiro estágio do "estado de natureza", portanto, seria um período de paz e não de "guerra de todos contra todos" como concebia Hobbes.

Mas estas limitações colocadas ao direito de acumulação e apropriação são anuladas com a introdução do dinheiro na sociedade humana. Já que o dinheiro não é perecível, elimina-se o limite que condicionava a apropriação ao consumo individual. Com o surgimento do dinheiro, passa a ser "racional" a acumulação de excedentes na produção. Assim, no segundo estágio do "estado de natureza", a "lei da natureza" que limitava a propriedade e preservava a igualdade transforma-se no seu contrário: a justificativa da acumulação ilimitada e da desigualdade.

Esta formulação lança as bases para encarar a sociedade dividida em classes de proprietários e não proprietários. Vinculado ao "direito" de um indivíduo vender o seu trabalho a outro, esta visão legitima a apropriação e acumulação baseada no trabalho alheio, que constitui o cerne da sociedade capitalista que já se afirmava na Europa do tempo de Locke. Com a introdução da possibilidade de acumulação ilimitada, os produtores entram em confronto entre si, e a sociedade tende para o desequilíbrio e o conflito. Ela engendra ainda a divisão da sociedade em classes, trazendo consigo o risco de saques e rebeliões. Neste estágio, o "estado de natureza" tende muito mais para o Estado de Guerra visualizado por Hobbes.

Este desenvolvimento também produz racionalidades desiguais para os indivíduos de classes distintas. O indivíduo não-proprietário (ou seja; o trabalhador assalariado) vive apenas "da mão para a boca", procurando simplesmente sobreviver. Por isso é incapaz de refletir sobre o bem-estar da sociedade. Só o proprietário teria condições de cultivar esta racionalidade "mais elevada".
Para os proprietários, capazes de enxergar racionalmente os riscos trazidos pela situação de guerra à preservação das suas propriedades (definidas no sentido mais restrito), só resta a alternativa de formar o governo civil para conter os conflitos que ameaçam dilacerar a sociedade.

Ao contrário de Hobbes, Locke prega um governo que seja a expressão da "vontade da maioria", e não a maioria dos proprietários, pois estes são os únicos capazes de raciocinar em função do bem-estar comum. À verdadeira maioria da sociedade – os trabalhadores não-proprietários – caberia apenas aceitar a sociedade civil e o seu governo, tendo em vista a preservação da sua "propriedade", definida aqui em termos mais abrangentes para significar o direito à vida, à sobrevivência. Assim, a racionalidade dos proprietários leva-os a exercer a soberania através do governo civil. A dos não-proprietários leva-os a acatar este governo civil. Onde Hobbes argumentava a igualdade de todos na sujeição ao poder onipotente do Leviatã, Locke prega a desigualdade de direitos políticos segundo um critério de classe.

Mais uma vez vem à tona a tensão permanente entre a igualdade e a liberdade no pensamento liberal. Para Locke, a liberdade só é concebida para uma minoria, à custa da sua negação para a grande maioria de trabalhadores não-proprietários.

O PENSAMENTO DE ROUSSEAU

A grande preocupação do autor francês Jean-Jacques Rousseau, na segunda metade do século XVIII se voltava justamente para essa tensão entre a igualdade e a liberdade. No esforço para resolvê-la, o pensador que inspirou a revolução francesa escreveu duas grandes obras: Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens, publicada pela primeira vez em 1755, e Do Contrato Social (3), escrita em 1757. A importância dada pelo autor a essa problemática pode ser vista na seguinte citação de Do Contrato Social:

"Se quisermos saber no que consiste, precisamente, o maior de todos os bens, qual deva ser a finalidade de todos os sistemas de legislação, verificar-se-á que se resume nestes dois objetivos principais: a liberdade e a igualdade".

A argumentação de Rousseau começa por uma grave constatação – "O homem nasce livre, e por toda parte encontra-se a ferros". Esta frase concentra todo o esquema de pensamento do autor. Por natureza, os homens são iguais no gozo da liberdade. Mas a vida em sociedade introduz uma desigualdade cada vez maior e gritante entre os indivíduos. Esta desigualdade se desenvolve de tal maneira que se transforma na igual escravidão de todos perante o déspota. Seu primeiro trabalho citado acima investiga a origem dessa crescente desigualdade. O Contrato Social busca apresentar soluções para evitá-la, ou pelo menos minimizá-la.

Assim como Hobbes e Locke, Rousseau fundamenta todo o seu pensamento político na tentativa de reconstituir o que seria a vida humana no tal "estado de natureza". Para ele, a "natureza" do homem é o seu isolamento. A vida em sociedade é artificial, e representa um aviltamento da condição natural humana. O autor francês nega radicalmente a visão do homem como um ser social. Nisto, chega ao extremo de negar a própria vida em família no estado de natureza "puro". É importante ressaltar que essa visão está marcada pela concepção da mais absoluta igualdade dos homens.

Todos enfrentam isoladamente, em iguais condições, as intempéries da Natureza. A esta igualdade corresponde também uma liberdade individual natural, pois cada indivíduo é o dono do seu destino, não precisando do seu semelhante para sobreviver. Assim, a liberdade individual se expressa de forma mais contundente, para Rousseau. na capacidade individual de auto-conservação do homem no estado de natureza. E como a situação era de total isolamento, este estágio inicial da vida humana era imune a conflitos.

O próximo desenvolvimento humano, ainda no estado de natureza, é a formação da primeira e única sociedade natural – a família. Este desenvolvimento, que Rousseau chama de "primeira revolução", é o fruto da descoberta pelo homem das vantagens da habitação para a sua própria sobrevivência. Com a habitação, vem a constituição do núcleo familiar. Mais uma vez, cabe chamar a atenção aqui para o fato de a visão de família projetada por Rousseau para o estado de natureza ser o da família nuclear, que se afirma com a ascensão do capitalismo, e não da família extensiva que predominou durante todo o desenvolvimento humano até então.

Esse estágio da "família" ainda preserva, no fundamental, a igualdade e a liberdade humanas. No tocante à desigualdade, introduz uma primeira diferença entre homens e mulheres. No tocante à liberdade, ela é garantida para todos, já que qualquer integrante da família é "livre" para ficar ou sair, assim que tiver adquirido as noções básicas para sua sobrevivência. Mas, ao "deflorar" o isolamento do indivíduo e enquadrá-lo numa primeira vida em sociedade, o indivíduo passa também a ser moldado pela realidade da sociedade que integra. Apesar disto, a valoração de Rousseau desse estágio é positiva, pois as famílias continuam mantendo um isolamento "natural" entre si. Este era visto por ele até mesmo como o estágio mais feliz e duradouro do desenvolvimento humano, por ocupar uma posição "intermédia" exata entre a "indolência do estado primitivo" e a "atitude petulante do amor próprio em nossos dias".

Mas para Rousseau, uma sucessão de acidentes geográficos através dos séculos teria arrancado a humanidade dessa sociedade natural, agrupando diferentes famílias em tribos que habitavam regiões isoladas das demais. Esta vida em tribos representou a passagem do
homem à vida em sociedades artificiais. O convívio dos homens nestas sociedades fez surgir a comparação entre eles dos seus diferentes atributos naturais. Com a descoberta da agricultura e da metalurgia, criaram-se as condições para o surgimento da propriedade. Da cultura das terras brotou a sua partilha. O que até então era comum, passou a ser privado. Este surgimento da propriedade, aliado às desigualdades de aptidões naturais entre os homens, introduziu pela primeira vez na sociedade humana a desigualdade social. A criação das sociedades artificiais gera a desigualdade de fortunas, o uso e abuso das riquezas e outros problemas do tipo que só se agravam à medida que a sociedade se desenvolve. Esta se divide irremediavelmente em ricos e pobres. A partir daqui, a vida dos homens em sociedade tende inexoravelmente para o conflito e a disputa, torna-se o equivalente do estado de "guerra de todos contra todos" na visão de Hobbes.

Em função disso, parte dos ricos a iniciativa de formar o poder de Estado para conservar e proteger os seus bens. O governo surge como uma forma de os ricos estenderem a sua fortuna e poder na sociedade através das leis e da autoridade. Por isto mesmo, a tendência de todos os governos é de marchar para o extremo da desigualdade – o despotismo – onde, por ironia, a igualdade é restabelecida com a submissão de todos ao déspota. O governo visto nestes termos por Rousseau é claramente o "Leviatã" preconizado por Hobbes.

Face a essa tendência liberticida e antiigualitária de todos os Estados, o pensador francês conclui que a única alternativa que resta é tentar combater essa tendência com uma legislação que procure defender tanto a liberdade como a igualdade. É neste sentido que Rousseau faz a defesa do governo constituído pelo "Contrato Social". A idéia básica é que todos os indivíduos devem alienar por igual a sua liberdade ao Estado, para estabelecer uma união "perfeita" onde a vontade de cada um tenha o mesmo peso dos demais na formação da "Vontade Geral". Deve-se erguer uma série de instituições políticas, portanto, que assegurem a participação direta do indivíduo nas deliberações políticas. Por isto o pensador francês defendia a montagem de pequenas cidades-Estado abarcando um número reduzido de cidadãos.

Esta é a solução apresentada por Rousseau para resgatar a igualdade e a liberdade na sociedade
moderna. Mas o próprio pensador francês reconhece tratar-se de uma solução parcial e limitada. Pois mesmo num governo autenticamente constituído com base no "Contrato Social", existiria uma compulsão inerente à corrupção do poder pelo soberano. Este, alegando estar atuando em função da "Vontade Geral", pode muito facilmente usurpar a autoridade e impor o despotismo.

Assim, mesmo para Rousseau, o "Contrato Social" nunca consegue de fato restabelecer por completo a igualdade e a liberdade na sociedade moderna. O que consegue é temporariamente defender mais ou menos essas duas aspirações das investidas contra elas desferidas pelo soberano. Uma vez consumada a usurpação, só uma nova revolução pode instaurar um governo que se aproxime novamente dos princípios do "Contrato Social", apenas para degenerar mais adiante e dar surgimento a um novo despotismo, que também será derrubado. E assim por diante, numa sequência interminável. Desta forma, a humanidade estaria condenada a viver apenas espasmos de liberdade e igualdade, em meio a longos períodos de despotismo. O pensamento de Rousseau se volta justamente para tentar achar os mecanismos capazes de fazer prolongar ao máximo esses espasmos. Ele não se propõe a resolver de forma definitiva a afirmação dessas duas aspirações na sociedade humana, por achar isto impossível.

Como Hobbes e Locke, todo o raciocínio de Rousseau se baseia numa reflexão abstrata sobre a natureza humana tendo como centro a perspectiva do pequeno produtor capitalista. Por isso, o máximo de "igualdades" que ele consegue conceber na sociedade é uma em que todos os indivíduos sejam de alguma forma proprietários, e os extremos na divisão desta propriedade sejam evitados. Na verdade, trata-se da defesa política de uma espécie de "classe média". Mas o fato histórico concreto é que a sociedade da sua época não se encontrava dividida entre proprietários ricos e proprietários pobres, e sim entre classes proprietárias e classes não-proprietárias.

Por isso, sem atacar pela raiz a questão da propriedade capitalista, as instituições de democracia direta preconizadas por Rousseau não superavam os limites da república democrática burguesa. As idéias do autor francês eram as mais poderosas para inspirar a derrocada do absolutismo. Mas eram incapazes de assegurar direitos reais para a imensa maioria dos cidadãos composta por trabalhadores. Rousseau avança em relação a Locke ao propor direitos políticos formais para os cidadãos das classes não-proprietárias. Mas essa igualdade de direitos formais se coloca com a desigualdade social real existente na sociedade, em função da sua divisão em classes antagônicas. Só o questionamento da propriedade capitalista poderia acarretar a extensão de direitos democráticos reais para os trabalhadores e, simultaneamente, abordar a questão da igualdade e da liberdade num novo patamar. É justamente isto que é feito pela teoria marxista.

A ABORDAGEM DO MARXISMO

Assim como Hobbes representou um corte abrupto com todo o pensamento político anterior, a teoria de Karl Marx representa uma nova revolução no pensamento político do século XIX em diante. Até os dias de hoje, os grandes movimentos de emancipação social buscam em suas idéias as alavancas para a transformação da realidade. Ao colocar a questão da liberdade humana sob um novo ângulo, radicalmente diferente do anterior, o marxismo consegue superar a problemática da igualdade nos marcos em que era colocada pela teoria política liberal. E esta superação se apóia numa autêntica revolução filosófica na abordagem das próprias premissas da teoria política.

Rompendo com a tradição do liberalismo, o pensamento de Marx se baseia não na concepção de indivíduos abstratos/a-históricos, deduzidos da reflexão humana, mas na de indivíduos concretos/históricos que habitam e habitaram o mundo real ao longo dos tempos. A abordagem de Marx é ao mesmo tempo histórica e materialista. Histórica, porque não parte da construção lógica do que seria a condição do homem num hipotético "estado de natureza", e sim da investigação concreta do que caracteriza o homem em seus vários estágios de desenvolvimento real dentro da sociedade. Materialista, porque procura investigar as condições concretas e objetivas que enquadram e limitam o desenvolvimento humano em cada época. Note-se que não se trata aqui do materialismo mecânico de Hobbes, que transplantava para o homem o movimento mecânico das máquinas, mas de um novo materialismo, dialético, que procura situar a atividade criadora humana na realidade concreta sobre a qual atua. Por isso, como ponto de partida para qualquer avaliação sobre a "natureza humana", é preciso primeiro estudar as condições históricas que enquadram a sua ação.

O que essa abordagem histórica revela, confirmado por qualquer antropólogo ou historiador contemporâneo, é que o homem é sobretudo um ser social. O homem sempre viveu em sociedade, desde os primórdios da sua própria existência. Por isto mesmo, nada mais afastada da verdadeira natureza humana do que a imagem formulada pelos autores clássicos do liberalismo, de homens em extremo isolamento no "estado de natureza" ao estilo Robinson Crusoé. Em contraposição a isso, Marx investiga as diferentes relações estabelecidas pelos homens entre si e com a natureza ao longo da História.

Este é o verdadeiro patamar de igualdade entre os homens na concepção marxista. Todos são igualmente seres sociais. Todos são igualmente limitados no alcance possível da sua atividade pelas condições sociais da época. A partir daqui. o patamar da igualdade desaparece entre os indivíduos. Tanto porque os indivíduos são diferentes entre si – têm aptidões e capacidades físicas e intelectuais desiguais – como porque as condições sociais enfrentadas pelos indivíduos diferem de época para época, geração para geração, região para região, classe para classe etc.

A investigação histórica sobre os modos como os homens se relacionam entre si em sociedade revela que a atividade principal da humanidade em todas as épocas é a produção, o trabalho. No estudo desses diferentes modos de produção, Marx descobriu uma distinção básica entre as sociedades primitivas, onde os instrumentos e os meios de produção são propriedade comum de todos, e as sociedades divididas em classes, onde esses instrumentos são propriedade privada de apenas uma parcela da sociedade. Nas sociedades do “comunismo primitivo” reina a plena liberdade nas relações entre os homens. Não existe nenhum aparelho especial para conter a ação e iniciativa humanas. A autoridade do “cacique” ou “patriarca” é baseada no respeito à experiência e no consenso. Não existe ainda o Estado propriamente dito, mas essa liberdade humana é limitada pelo baixo grau de conhecimento do próprio homem. Este vive à mercê das forças da natureza. Está totalmente sujeito às suas intempéries. Na sua primitiva ignorância é dominado pela “ditadura da natureza”, por isso, na formulação de Engels, está preso ainda ao “reino da necessidade”.

SOCIEDADE DE CLASSES

Com o desenvolvimento da produção, surgem os meios para ocupar e explorar a terra e os seus frutos. Mas surge junto, historicamente, também a divisão da sociedade em classes produtoras, não-proprietárias e classes proprietárias não-produtoras. Este desenvolvimento da produção dá ao homem cada vez mais o conhecimento técnico e científico para domar a natureza e suas leis em benefício da humanidade. Mas este conhecimento é concentrado nas classes proprietárias e usado em função dos interesses de uma minoria. Assim, apenas esta minoria passa a poder desenvolver plenamente suas aptidões e capacidades individuais, à custa da negação dessa mesma individualidade para a maioria que trabalha. Estes continuam prisioneiros do "Reino da Necessidade".
Neste contexto, o apelo liberal à igualdade sem questionar o caráter privado da propriedade refletiu basicamente as exigências de forças sociais interessadas em desenvolver a dominação de classe pelo mecanismo "imparcial" do mercado (a burguesia ascendente), contra as que queriam manter um sistema "fechado" de dominação (a aristocracia decadente). Mesmo Rousseau, o pensador liberal mais preocupado em afirmar a liberdade e a igualdade dos homens, esbarrou na limitação desta premissa liberal e foi incapaz de afirmar teoricamente as duas aspirações em sua plenitude.
A este respeito Lênin escreve no seu célebre O Estado e a Revolução (4): “Democracia para uma insignificante minoria, democracia para os ricos, tal é o democratismo da sociedade capitalista. Se se observar mais perto o mecanismo da democracia capitalista veremos por todo lado, tanto nos “pequenos” pormenores da legislação eleitoral (censo de residência, exclusão de mulheres etc) como na técnica das instituições representativas, como nos obstáculos efetivos aos direitos de reunião (os edifícios públicos não são para os miseráveis), como na organização puramente capitalista da imprensa diária etc. Etc. – veremos restrições e mais restrições ao democratismo. Estas restrições, exceções, obstáculos para os pobres parecem pequenos, especialmente aos olhos dos que nunca passaram eles próprios pela necessidade, nem nunca conheceram de perto as classes dominadas na sua vida cotidiana – mas, no conjunto, estas restrições excluem, eliminam os pobres da política, da participação ativa na democracia".

Para Marx, a passagem da sociedade pelos diferentes estágios de dominação de classes foi historicamente necessária para desenvolver na humanidade a capacidade de se tornar senhor e não mais vítima cega dos caprichos da natureza. Com o advento da sociedade capitalista, o alto grau de desenvolvimento da ciência e de concentração da produção torna historicamente viáveis a eliminação da propriedade privada e a transformação dos instrumentos de produção em propriedade comum de toda a humanidade. Só assim se pode liberar plenamente as capacidades e aptidões individuais de todos os homens que, senhores da própria natureza, passariam do "reino da necessidade" para o "reino da plena liberdade". A esta sociedade em que os homens detêm a propriedade em comum dos meios de produção Marx chama de comunismo. Mas diferentemente do comunismo primitivo anterior, agora os homens já terão um alto grau de conhecimentos técnico-científico para usar as leis da natureza em seu benefício.

SOCIALISMO E COMUNISMO

Marx separou no comunismo duas fases distintas: uma primeira, inicial e transitória, que se conveio depois chamar de socialismo; e a segunda de comunismo "pleno". Na primeira, a repartição dos bens produzidos em sociedade se dá segundo o critério da quantidade e da qualidade do trabalho desempenhado pelos indivíduos. Na segunda, se dá de acordo com as necessidades dos indivíduos. Nesta formulação o marxismo supera a problemática da igualdade nos termos em que era apresentada pelo pensamento liberal.

A este respeito, transcrevemos uma passagem elucidativa do texto Crítica ao Programa de Gotha, de Marx. O argumento marxista reconhece e afirma a diferença, a desigualdade, a individualidade dos homens. Por isso, o estabelecimento da igualdade entre indivíduos é superado teoricamente. O que se procura eliminar na sociedade é a divisão em classes, que na verdade sufoca a libertação do potencial individual da maioria da sociedade que trabalha e deve se "limitar ao seu papel". Mas eliminada a exploração de classe, as diferenças entre os homens não só se mantêm como até se ampliam na medida em que todos ficam livres para desenvolver suas aptidões e capacidades individuais, e a sociedade se volta para oferecer a todos as condições concretas para que isso possa ocorrer.

Os homens são diferentes, seja pela diferença de atributos físicos e mentais, seja pela diferença de necessidades que enfrentam em função de distintas condições de vida. O que se procura eliminar são as desigualdades provocadas pela divisão da sociedade em classes. Isto é, que apenas floresçam as diferenças provocadas pela plena afirmação da individualidade humana. Assim, a igualdade entre os indivíduos como era concebida pelos pensadores liberais não se coloca na sociedade comunista. Na primeira fase, a desigualdade se dá pela diferente capacidade de trabalho. Na segunda, pelas diferentes habilidades e necessidades dos homens.

Ao romper com as premissas do liberalismo, o marxismo consegue, assim, superar a problemática da igualdade e afirmar plenamente a questão da liberdade na sociedade moderna.
Por isso, são inteiramente infundadas as acusações dos ideólogos do anticomunismo que procuram apresentar o marxismo como a negação da individualidade. Quem defende esses pontos de vista, consciente ou inconscientemente, faz a defesa da continuidade de um sistema social, o capitalismo, que, este sim, nega a individualidade para a esmagadora maioria da população composta por trabalhadores.

Na concepção marxista, é através da coletividade que o indivíduo se forma e se desenvolve. E na coletividade, o desenvolvimento livre de cada um é a condição para o desenvolvimento livre de todos. Estas relações dialéticas entre sociedade e indivíduo encontram terreno para seu pleno desenvolvimento no comunismo. Desta forma, Marx não é apenas um legítimo herdeiro das tradições do pensamento humanista. É o primeiro pensador que conseguiu identificar as possibilidades concretas e reais para a plena afirmação da liberdade humana.

* Luís Fernandes é Colaborador de Princípios.

Índice de notas:
(1) HOBBES, T. Leviatã, Abril Cultural, São Paulo, 1983, p. 74.
(2) LOCKE, J. Segundo Tratado sobre o Governo, Abril Cultural, São Paulo, 1983, p. 82.
(3) ROUSSEAU, J. J. Do Contrato Social, Abril Cultural, São Paulo, 1983, p. 235.
(4) LÊNIN, V. I. O Estado e a Revolução, publicado no volume 2 das “Obras Escolhidas”, Edições Avante, Lisboa, 1978, p. 289.

EDIÇÃO 13, DEZEMBRO, 1986, PÁGINAS 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38