O problema atinge diversos países que, por causa dessas dívidas, estão impedidos de se desenvolver. Alguns já se acham privados da autodeterminação ou estão com suas soberanias aviltadas.
A dívida externa não é um fenômeno novo. Existe desde os primórdios do capitalismo. Apresenta, contudo, nas décadas recentes, conotação particular de excepcional importância.
Os que se colocam no terreno científico da análise econômica buscam situar esse problema da dívida no contexto geral da economia capitalista mundial. Para tanto, é necessário reportar-se à análise marxista do capital e, a partir daí, acompanhar o desenvolvimento dos fatores que caracterizam as dívidas externas atuais.

Da livre concorrência ao Monopólio

Em 1867 Marx publicou o Livro I de O Capital. Nas décadas de 60 e 70 do século XIX o capitalismo competitivo atingiu seu desenvolvimento máximo. Embora antes de 1860 já se registrasse a existência de monopólios capitalistas, foi no final do século XIX e no início do XX que "os cartéis se converteram em uma das bases de toda a vida econômica", e o "capitalismo se transformou em imperialismo" (Lênin, O Imperialismo, Etapa Superior do Capitalismo) (1).

Com essa obra de Lênin, publicada em 1916, o pensamento marxista desenvolveu-se, acompanhando a evolução que se efetivara na base econômica da sociedade. Enquanto O Capital, de Marx, expõe em profundidade as leis gerais do capitalismo, em O Imperialismo, Etapa Superior do Capitalismo Lênin identifica, 50 anos depois, as particularidades da etapa superior, monopolista, do próprio capitalismo.
Hoje, transcorridos mais de 70 anos dessa publicação, a base econômica monopolista do sistema permanece a mesma em suas linhas gerais. Vivemos, ainda, a época do imperialismo estudada por Lênin. É por isso que sua obra apresenta espantosa atualidade.

Mas o capitalismo, hoje, adquiriu também importantes particularidades. Uma delas é a forma que tomou e o papel que passou a ter a dívida externa, como um dos mecanismos primordiais da espoliação imperialista.

Monopólio e Capital financeiro

O surgimento de nova etapa no capitalismo – a etapa imperialista – começa com a concentração da produção e do capital. Assim criam-se os monopólios. No setor industrial, a concentração da produção leva ao aparecimento do capital monopolista industrial; e no setor bancário ocorre fenômeno equivalente. A função originária dos bancos era a intermediação dos pagamentos. Uma função secundária. À medida que a economia mundial foi se desenvolvendo e as operações bancárias se multiplicando, dá-se um processo de concentração bancária e "os bancos se convertem, de modestos intermediários que eram antes em monopólios onipotentes” (Lênin, obra citada).

Da fusão dos capitais bancário e industrial surge o capital financeiro e, nesta base, a oligarquia financeira.

A emergência do capital financeiro e da oligarquia financeira é um dos traços que, no limiar do século XX, assinala a presença do capitalismo imperialista. Os empréstimos internacionais ganham impulso e características próprias a partir de então.

As transações feitas pelo capital financeiro naquela época garantiam-lhe duas vantagens: a comissão do empréstimo ou o lucro da intermediação financeira e a imposição de condições especiais para a aplicação do dinheiro emprestado. Lênin documenta que o capital financeiro estipulava de 8% a 18% de juros sobre o montante emprestado, neste início do século; e observa como as "cláusulas do empréstimo" obrigavam os devedores a diferentes injunções, como a de comprar produtos no país credor e em ramos industriais determinados. "A exportação de capitais – escreve Lênin – passa a ser um meio de estimular a exportação de mercadorias" (Lênin, obra citada).

A exportação de capitais

A exportação de capitais – outro traço característico do imperialismo – ganha um desenvolvimento sem precedentes nos primeiros anos do século XX. O comportamento dos países capitalistas guarda entre si certas diferenciações. Dois casos são analisados por Lênin – o da Inglaterra e o da França. A Inglaterra exporta capitais em nível elevado para suas colônias, investindo em estradas de ferro, portos, minas etc. A França exporta principalmente para a Europa, mas não sob a forma de investimentos em empresas, e sim como capital de empréstimo. O imperialismo inglês seria chamado por Lênin de imperialismo colonial, em contraposição ao da França denominado de imperialismo usurário. A França, ao tempo em que concedeu empréstimos à Rússia, em 1905, impôs-lhe condições que deveriam prevalecer, por contrato, até 1917. Financiamentos feitos por ingleses, franceses, belgas e alemães para a construção de estradas de ferro no Brasil eram acompanhados de cláusulas que o obrigavam a adquirir os materiais necessários para a construção nos países de onde o capital de empréstimo se originava.

A ação do capital financeiro e a exportação de capitais fazem com que se estendam os tentáculos das grandes potências imperialistas por todo o mundo, submetendo os diversos países à dependência. A ação imperialista, do capital financeiro e da exportação de capitais, leva não só ao controle do mundo, mas também a uma divisão deste entre as diferentes potências. Desse controle não escapam nem os Estados que formalmente gozam de independência política, mas que se encontram condenados à dependência econômica.

Os empréstimos internacionais nas primeiras décadas deste século já eram operações realizadas pelo capital financeiro em escala universal. Não tinham, entretanto, a magnitude e a importância preponderante que vieram a ter recentemente. A própria expressão "dívida externa", hoje havida como categoria essencial da moderna economia política, não foi usada por Lênin em O Imperialismo, Etapa Superior do Capitalismo. Os empréstimos resultavam em operações altamente rentáveis para os monopolistas pelos juros que estabeleciam e pelas imposições acessórias que propiciavam. O credor quase sempre obtinha vantagens comerciais, concessões de diversos tipos como exploração de uma jazida, construção e operação de portos, venda de produtos etc. A evolução do Imperialismo
O destaque excepcional que as "dívidas externas" passaram a ter nas operações do grande capital financeiro é resultado da evolução que teve o imperialismo.

Retomando a análise de Lênin, debrucemo-nos sobre um dos aspectos mais importantes do capitalismo financeiro – o seu caráter parasitário.

Segundo observa Lênin, "a base econômica mais profunda do imperialismo é o monopólio" e todo monopólio "engendra inevitavelmente uma tendência ao estancamento e à decomposição". Ao fixar arbitrariamente preços e ao controlar os mercados, os monopólios tendem a fazer desaparecer "as causas estimulantes do progresso técnico e, por conseguinte, de todo o progresso”. É claro que essa tendência não poderá eliminar a concorrência capitalista, pelo menos por muito tempo. Mas como o imperialismo promove uma acumulação imensa de capital monetário, resulta, pela tendência parasitária do monopólio, "o incremento extraordinário da classe, ou melhor dizendo, do setor rentista”. "A exportação de capitais acentua este divórcio completo entre o setor rentista e a produção e imprime um selo de parasitismo aos países monopolistas". Ao examinar a relação entre o lucro auferido pela Inglaterra de seu "comércio exterior e colonial, da importação e exportação" e o recebido, em 1899, pelo setor que vive de rendas, Lênin constatou: "o lucro dos que vivem de rendas é cinco vezes maior que o lucro do comércio exterior do país mais comercial do mundo". E arremata: "Eis aqui a essência do imperialismo e do parasitismo imperialista”.

A partir desta análise Lênin introduz o conceito de "Estado rentista" ou "Estado usurário", chamando a atenção para o fato de a Holanda ser, na época, um modelo de "Estado Rentista". Citando estudos da época, diz Lênin: "A Inglaterra está se convertendo paulatinamente de Estado Industrial em Estado Credor. Apesar do aumento abrupto da produção e da exportação industriais, cresce a importância relativa para toda a economia nacional dos lucros procedentes dos juros e dos dividendos, das emissões, das comissões e da especulação". E conclui: "(…) isto é precisamente o que constitui a base econômica do auge imperialista".

Nos anos posteriores à publicação da obra de Lênin o imperialismo continuou a se desenvolver. Uma nova potência imperialista se destaca frente às outras: os Estados Unidos. A pujança de sua economia chama a atenção. Os EUA são, hoje, o principal país credor do mundo em geral e do Brasil em particular.

Como estes fenômenos novos se articulam com a teoria leninista do imperialismo?
O processo de monopolização leva, como já vimos, o imperialismo a ter um caráter parasitário, de decomposição. O setor rentista ou usurário também se desenvolve e vai assumindo crescente importância. Quanto maior a monopolização, tanto mais exacerbado o parasitismo, tanto mais profunda a separação entre o capital investido na produção e aquele investido na especulação, tanto mais ressalta o setor que vive de rendas.

O crescimento do imperialismo, a demonstração de sua pujança, verifica-se, contraditoriamente, com o desenvolvimento do seu parasitismo, do seu estado de decomposição, com a importância do seu setor rentista, usurário, especulador, não produtivo. Lênin salienta que no período inicial do século, "nos EUA, o desenvolvimento econômico tem sido mais rápido que na Alemanha e, precisamente graças a esta circunstância, os traços parasitários do capitalismo norte-americano contemporâneo ressaltam com particular relevo".

O desenvolvimento do capitalismo nas décadas que se seguiram à obra de Lênin tornou muito maior, mais complexo e organizado o setor financeiro internacional. O potencial de ganhar dinheiro à margem da atividade produtiva cresceu sobremaneira. Agigantou-se a capacidade parasitária do sistema financeiro.

Na linha de frente dessa febril atividade parasitária, centenas de grandes bancos manejam as finanças do mundo, tomando decisões fundamentais à vida dos povos. Bancos, grupos de bancos e organismos internacionais, Citibank, Loyds, Chase, Bird, FMI, Clube de Paris e outros organizam, dividem e controlam, entre si, a imensa agiotagem intercontinental, da qual a moderna dívida externa dos países é uma mera expressão jurídico-legal.

FENÔMENO NOVO

A dívida externa, com a feição hoje assumida na economia política, surge nas últimas duas décadas. Atinge países em desenvolvimento da Ásia, tidos por Paul Volcker, presidente do Banco Central dos EUA, como “terminais de fabricação de empresas multinacionais"; países não desenvolvidos da África; ex-países socialistas da Europa Oriental e países em desenvolvimento da América Latina.
O caso do Brasil – transformado em maior devedor do mundo – é exemplo da natureza deste fenômeno.

Durante toda a década de 1960 a dívida brasileira oscilou entre 3 e 4 bilhões de dólares, mantendo-se estável. Nos anos 1970, ela salta de 4 para 50 bilhões de dólares. Pouco depois da metade da década de 1980, explode em 115 bilhões de dólares, a maior do mundo. Há um tipo de explicação que responsabiliza governantes improbos por terem endividado em demasia o país, para financiar projetos megalomaníacos, de forma imprevidente e utilizando mecanismos desonestos de recebimento de propinas e comissões "por fora". Se bem que estes governantes impatrióticos e corruptos, corno os da época da ditadura militar, influenciaram com seu entreguismo desenfreado o crescimento da dívida brasileira, as razões de fundo para o gigantismo da dívida transcendem a inépcia, a desonestidade e o impatriotismo daqueles governantes.

Evolução da dívida brasileira

O primeiro surto do endividamento brasileiro recente dá-se entre 1969 e 1973. A dívida passou de 4 bilhões para 12 bilhões de dólares. É o momento de um ciclo de expansão na economia brasileira, que certamente influenciou o endividamento. Mas, a causa básica do crescimento de 200%, em cinco anos, de uma dívida que crescera apenas 30% em 10 anos, decorre da situação das finanças internacionais. Naquele período, era grande a disponibilidade de dinheiro nos bancos europeus e americanos, de tal sorte que não eram os clientes que estavam atrás dos bancos, mas os bancos que estavam atrás dos clientes. Eram oferecidos créditos de longo prazo, juros tradicionais e taxas de risco (spread) relativamente baixos. A quem arranjasse um bom cliente, tipo Eletrobrás, com um bom avalista, tipo Banco Central do Brasil, os banqueiros davam "por fora" urna boa comissão, que era, claro, debitada ao tomador. Foi como sucedeu no caso do financiamento da usina hidrelétrica de Água Vermelha, quando o banco Crédit Comerciale de France depositou em bancos suíços "comissões" para o grupo do então embaixador em Paris, Delfim Netto, como está descrito no chamado Relatório Saraiva, e confirmado pelo ex-ministro do Exército, general Sílvio Frota. O surgimento de uma conjuntura internacional adversa no meio financeiro, logo após o primeiro "choque do petróleo", levou às primeiras elevações dos juros e dos spreads, que começaram a refletir fundo no custo da dívida brasileira. No triênio 1974-76, a dívida subiu para 26 bilhões de dólares e os juros pagos, neste período, foram de 4 bilhões de dólares, o equivalente a todo o montante da dívida existente em 1964, ano do golpe militar no Brasil.

Reequilibrado o mercado financeiro internacional, com a reciclagem dos petrodólares, de novo cresce a disponibilidade dos bancos e estes voltam a procurar novos clientes, oferecendo prazos dilatados e baixos spreads. As autoridades monetárias brasileiras definiram uma política econômica de endividamento crescente, incentivando a tomada de empréstimos no exterior, inclusive aumentando artificialmente os juros internos. O resultado foi um novo salto da dívida brasileira, que passou de 26 bilhões de dólares, em 1976, para 44 bilhões de dólares, no final de 1978.

A disparada dos juros

É a partir do fim da década de 1970 que ocorre um fato novo nas relações financeiras internacionais. Com o retorno a uma conjuntura recessiva e os efeitos do segundo "choque do petróleo", os banqueiros internacionais elevaram os juros a níveis jamais vistos. Há cerca de 150 anos, os juros médios dos empréstimos internacionais oscilam de 6 a 8 por cento. Agora, eles são subitamente elevados para 12,15 e até 21,5%, valor alcançado pela prime rate americana, em maio de 1981. O que valeu de Helmut Schmidt, chanceler alemão, a observação de que eram "os mais altos juros cobrados desde o nascimento de Jesus Cristo".

Esse súbito e elevado crescimento das taxas de juros está relacionado ao grande poderio do capital parasitário, daquele que pretende auferir altas rendas, independentemente, à margem e em detrimento da atividade produtiva.

O juro é uma parte do lucro do capital, pago ao seu proprietário, pelo empresário que o tomou emprestado e o aplicou produtivamente. Em O Capital (Livro III cap. XXI), Marx apresenta o exemplo do proprietário de 100 libras esterlinas que cede este capital, emprestado, a um industrial que, pondo-o em atividade, obtém um lucro de 20 libras. Se, ao cabo de um ano, este industrial paga ao proprietário do capital 5 libras, retiradas do seu lucro de 20 libras, é a esta quantia de 5 libras que se chama juro. No caso, o juro foi 25% do lucro do industrial. Mas o proprietário do capital que recebeu 5 libras pelo dinheiro que emprestou poderia cobrar pelo mesmo empréstimo 6 libras, sete ou dez! Seus juros poderiam aumentar. Evidentemente, não poderiam subir demasiadamente porque se não, ao industrial, já não interessaria tomar o dinheiro emprestado. Isto situa um problema de grande importância: o lucro médio tem limites estabelecidos pelas leis do mercado, a lei do valor, o preço de produção, a lei da oferta e da procura. E o juro não obedece a leis determinantes, é estipulado arbitrariamente.

No capítulo citado de O Capital, Marx acentua: "não existe taxa 'natural' de juros"; "a taxa média de juros ou a média das taxas de juros (…) não é determinável, em seus limites, por alguma lei geral, porque se trata apenas da repartição do lucro entre dois possuidores de capital sob títulos diferentes".

Não dependendo de nenhuma lei geral que a determine a parte do lucro, que é paga como juro, oscila ao acaso.
Com o grande incremento do capital financeiro crescem as suas condições de aumentar arbitrariamente as taxas de juros e de destinar ao custeio e desenvolvimento do capital parasitário parcelas cada vez maiores do lucro médio do capital.

No Brasil, esse fenômeno trouxe grandes repercussões na economia e na política e mostra as razões mais profundas da recessão local.
O dinamismo do sistema capitalista depende dos reinvestimentos feitos pelos empresários a partir dos lucros auferidos por suas empresas. A parcela do lucro reinvestida na produção é computada no que se chama de formação bruta do capital fixo. É da máxima importância comparar a evolução dessa parcela com a outra – a que se destina ao pagamento dos juros da dívida externa.

Na década de 1970 o crescimento médio anual da "Formação Bruta do Capital Fixo" (FBCF), foi de 23%. Mas, a partir de 1979, com a elevação das taxas internacionais de juros, esse crescimento caiu para 3%. Em contrapartida, os juros da dívida externa nos anos 1970 foram de US$ 1,2 bilhões e, a partir de 1979, de US$ 4,2 bilhões, chegando em rápida escalada a US$ 11,4 bilhões, patamar em que até hoje permanece.

Os juros da dívida externa, em 1970, representavam 2,3% do total da FBCF. Em 1979 passaram a representar 8% e, em 1982, nada menos que 19%. Aí é que se deu o período recessivo (2).
A transformação de lucros que poderiam ser reinvestidos produtivamente em juros estéreis remetidos ao exterior é causa básica da recessão.

Ciranda financeira

A repercussão dos juros flutuantes – a que os contratos obrigam os países endividados a seguir – no montante das dívidas, foi avassaladora. A América Latina foi a mais prejudicada com esse novo mecanismo. A cada 1% de adicional na taxa de juro o Continente tinha de pagar cerca de 1,8 bilhão de dólares por ano. Em apenas três anos – de 1981 a 1983 – os países latino-americanos pagaram 81,7 bilhões de dólares. O México teve sua conta de juros quadruplicada de 1979 a 1981, passando de 2,3 bilhões para 9,8 bilhões de dólares. E o Brasil, no mesmo período, viu sua conta de juros aumentar duas vezes e meia, chegando a 12 bilhões de dólares em 1982.

Configura-se, então, uma ciranda financeira terrível nas contas externas brasileiras, com enormes prejuízos para o país. Para pagar as altas contas dos juros, arbitrariamente elevadas, o Brasil tomava dinheiro emprestado, aumentando sua dívida, tendo de pagar mais juros, e de tomar mais dinheiro emprestado, caindo, assim, no círculo vicioso da agiotagem internacional, do capital parasitário ávido de encher suas burras sem trabalho, sem produção, sem desenvolvimento, com rendas, juros, taxas, papéis e mais papéis.

Os países da América Latina, jogados no pântano do capital em decomposição, passaram a ser ludibriados abertamente e acintosamente saqueados. A maior parte dos novos empréstimos, tomados para pagar juros, aumentava o montante da dívida e nem chegava a entrar nos países devedores. Entre 1981 e 1985, a América Latina contraiu 272,9 bilhões em empréstimos, dos quais 250 bilhões de dólares não entraram no continente. Parte substancial, 170 bilhões de dólares, ficou nos mesmos bancos que fizeram o empréstimo para pagamento de juros ou de parcelas do principal.

Os juros anormalmente elevados vigoraram até 1985, como política financeira dos Estados Unidos. Nos seis anos de aplicação dessa política, a América Latina pagou 209,7 bilhões de dólares de juros. Tem-se mostrado recentemente que a Alemanha, depois da Primeira Grande Guerra Mundial, foi obrigada a pagar uma quantia astronômica como reparação da guerra, 250 bilhões de dólares. A América Latina depois de pagar 209,7 bilhões de dólares, longe de ver essa dívida diminuir, viu-a dobrar e chegar a 368 bilhões de dólares. Exportar – Solução entreguista
O capital financeiro internacional, a partir de 1981, definiu outro tipo de política a ser executada pelos países devedores para continuar cumprindo fielmente suas sentenças de morte. Todo esforço deveria ser feito para atingir grandes superávits nas balanças comerciais para que assim houvesse divisas para se pagar a dívida e seus serviços. Os grandes superávits viriam, em primeiro lugar, do rebaixamento forçado das importações, deixando de importar inclusive insumos e componentes indispensáveis ao crescimento e até à manutenção da produção nacional. O país exportaria também tudo o que tivesse à mão, independentemente de preços e, sobretudo, com preços aviltados. O objetivo era exportar, não investir, desaquecer a produção, promover a recessão, retrair o mercado interno.
O Brasil entrou fundo nessa política e passou a exportar não só minérios, café, cacau, soja, máquinas e automóveis, como os produtos mais exóticos tipo barbatana de tubarão, palito, pele de jacaré, ovo de codorna, novela de televisão etc.

Países que tinham crônicos déficits em suas balanças comerciais, como num passe de mágica começaram a ter enormes superávits. O imperialismo demonstrou grande capacidade de manipular as regras do jogo do comércio internacional. Em termos de América Latina, a política de recessão forçada e da exportação a qualquer preço, a política de produzir divisas para pagar dívidas, fez com que um déficit continental de 1,7 bilhão de dólares, em 1981, se transformasse num gigantesco superávit de 113,6 bilhões de dólares nos quatro anos seguintes. A essa quantia acrescentaram-se mais divisas para entregar aos banqueiros internacionais, entre 1981 e 1985, a cifra astronômica de 133 bilhões de dólares como pagamento dos serviços da dívida da América Latina.

Essa fabulosa quantia é quase sete vezes maior que toda a promessa feita pelos Estados Unidos quando lançaram com espalhafato, no começo da década de 1960, seu programa Aliança para o Progresso, que previa a inversão salvadora de 20 bilhões de dólares na América Latina durante dez anos! E mais: o montante entregue pelo pobre continente latino-americano ao capital estrangeiro para pagamento de juros de suas dívidas, de 1981 a 1985, é equivalente ao que o governo dos Estados Unidos gastou em toda a guerra do Vietnã.
O impacto da recessão na economia latino-americana foi brutal. A produção caiu, fábricas foram fechadas, o desemprego se elevou e com ele o aguçamento da crise social.

A política de recessão forçada e da exportação a qualquer preço, mesmo do ponto de vista puramente econômico, não foi alternativa para o problema das dívidas dos subdesenvolvidos. Porque grandes superávits comerciais só podem aparecer se os países altamente capitalizados comprarem muitos produtos, ainda que a preços de banana, dos países endividados. No jogo internacional essa função foi sendo assumida, nos últimos anos, pelos Estados Unidos, o que gerou novos problemas e impasses. Eles terminaram se transformando em grande país devedor, com imensos serviços de sua dívida e com uma economia desequilibrada. As contradições, principalmente com os japoneses, se aguçaram, e retaliações comerciais e barreiras protecionistas foram ativadas.

Os países saqueados pelo capital parasitário têm sofrido duros reveses em seus processos de desenvolvimento. De 1980 a 1985 o PIB per capita, da África, caiu 11%; de América Latina e Caribe, 7,5%; do Oriente Médio, 19,5%. No mesmo período, os países ricos cresceram em média 8%. (Melvin Westlake, revista South, em Retrato do Brasil, de 6 a 12 de abril de 1987). Escritores e economistas têm chamado os anos 1980 de "a década perdida" para todos os países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.

"Caminhos da sobrevivência"

Ameaçados, os países têm procurado caminhos para sobreviver. Na América Latina alguns têm sido tentados. O Peru optou por limitar os pagamentos dos juros da dívida a 10% do saldo de sua balança comercial. Por causa disso, o FMI o tem tratado com hostilidade. A Venezuela tentou estabelecer limites nos juros de sua dívida, não tendo mantido sua posição. As Filipinas têm procurado selecionar dívidas, repudiar umas e pagar outras.

O Brasil, depois da chamada Nova República, passou a dar um tratamento diferenciado à questão da dívida externa, se cotejarmos com a posição mantida pela ditadura militar com a subserviência mais completa e antipatriótica do regime dos generais ao capital imperialista. O governo Sarney inaugurou, sobretudo com Dilson Funaro no Ministério da Fazenda, uma política de negociação sem monitoramento. O FMI foi mantido à distância e sua política recessiva não foi aceita. O objetivo do desenvolvimento foi recolocado e com ele uma política de maior emprego.

Contudo, após o fracasso do Plano Cruzado I, o país buscou um novo caminho para enfrentar seu problema capital. O próprio fracasso do Cruzado I, em boa parte se deve a – no momento em que existiam divisas no país e em que o governo gozava de algum prestígio –, não terem sido tomadas medidas enérgicas que tocassem no problema capital do país. Já numa situação econômica e política difícil, com reservas gravemente diminuídas, o governo teve de fazer uma suspensão parcial do pagamento dos juros da dívida externa. Os banqueiros internacionais se irritaram. Na relação com os devedores os grandes banqueiros não admitem qualquer veleidade de independência, exigem submissão total. Para que não prosperasse o exemplo do Brasil, de pequena e pálida resistência às imposições dos banqueiros, estes começaram a selar acordos relativamente benéficos com outros países devedores, como Venezuela, Argentina, Filipinas e México. No plano interno brasileiro, começaram a divulgar rumores de um golpe de Estado e exigiram a saída do ministro da Fazenda, Dilson Funaro.

Mas, mesmo com sua tímida moratória, o governo Sarney reafirma sua política de prioridade às exportações e toma medidas recessivas, com o objetivo de assegurar saldos comerciais crescentes com o exterior, de modo a retomar o pagamento do serviço da dívida. O novo ministro Bresser apressa-se em preparar politicamente o retorno do Brasil ao comando do FMI. O seu plano econômico já adota a fórmula clássica do Fundo: conter a inflação na base do arrocho salarial, desaquecer a economia e buscar os superávits comerciais. É a mesma receita que tem levado tantos países ao fundo… do buraco.

No rumo da desnacionalização

De repente, "nova" e "salvadora" idéia desponta no horizonte das alternativas ditadas pelos banqueiros internacionais e pelos técnicos à cata de soluções capitulacionistas: transformar os juros e o principal da dívida em capital de risco no Brasil.
Esta idéia vem associada a um ajuste na estratégia de penetração do capital estrangeiro no Brasil: a criação de zonas industriais voltadas exclusivamente para a exportação, verdadeiros enclaves coloniais na economia nacional.

A idéia aparentemente é simples: se os empréstimos são transformados em capital de empresas não haverá mais juros a pagar. Na realidade, as coisas se processam de modo inverso. Como os juros são apenas parte do lucro advindo do emprego do capital emprestado, as taxas de juros nunca poderão ser maiores do que a taxa média de lucro do capital, sob pena de inviabilizar os empréstimos (3). Por isso, em médio e longo prazos, os empréstimos convertidos em capital de risco tenderão a pressionar por remessas de lucros em taxas superiores às dos juros anteriormente praticadas.
Do ponto de vista de solucionar a sangria de divisas, a conversão da dívida em capital de risco não passa de um paliativo que, longe de resolver, agravará o problema.

Mas quanto a resolver o problema dos banqueiros internacionais e das empresas multinacionais a conversão funciona eficientemente.
Os bancos estão tendo grandes prejuízos com a desvalorização crescente de seus títulos relativos a dívidas de países do chamado terceiro mundo. Devido às dificuldades quanto ao recebimento destes empréstimos, ou mesmo de seus juros, os títulos dessas dívidas vêm sofrendo cada vez maior deságio no mercado financeiro. No mercado secundário eles estão valendo, em média, 30 a 40% menos do que seu valor de face. O que significa uma razoável perda de capital.

A conversão em capital de risco é um meio de resolver esse problema, ou pelo menos diminuir a perda. Quando um título da dívida é convertido em investimento direto, o valor deste investimento vem a ser o valor nominal deste título, desaparecendo o deságio, ou seja, a desvalorização real desse título, recompondo o ativo do credor.
Os títulos da dívida externa brasileira, que vinham sofrendo um deságio de 25%, passaram, em agosto de 1987, a ser negociados com 46% de desvalorização sobre o valor de face. Uma dívida do Brasil de um milhão de dólares está valendo, no mercado financeiro, apenas 540 mil dólares. No entanto, se ela for convertida e registrada como investimento estrangeiro no Brasil, voltará a valer o mesmo milhão de dólares.

Para dourar a pílula, os arautos da conversão e os banqueiros falam em dividir o deságio com os países devedores, ou seja, uma parte do deságio não iria engordar o bolso do investidor e seria abatida do valor da dívida. Mas na prática, como sempre, a realidade é outra. O Chile, que vem adotando esse tipo de conversão e cujos títulos estão com deságio de até 40% no mercado internacional, o máximo que vem conseguindo receber desse deságio é 8%. Ou seja, a parte do leão continua com os bancos e com as multinacionais.

Como estratégia de desnacionalização, a conversão é bastante eficiente. A transferência de bilhões de dólares em ações de empresas nacionais para o controle de multinacionais, num tempo relativamente rápido, criará um forte impacto desnacionalizador sobre a economia do país, de dimensões nunca vistas.

Da dívida externa, só a parte contratada com bancos privados estaria sujeita ao processo de conversão. No caso do Brasil essa parte equivale, hoje, a cerca de 68 bilhões de dólares. E como 70% desses empréstimos são devidos pelas estatais, seria para estas empresas que se dirigiriam os esforços principais da conversão. E mesmo uma parcela minoritária desses empréstimos, se convertidos em ações, seria capaz de comprar o controle acionário de todas as maiores estatais brasileiras, privatizando-as ao capital estrangeiro.

Mas não é só. Como a economia brasileira, bem como a de outros países dependentes, não seria capaz de "absorver" todo esse potencial de "investimento" estrangeiro em empreendimentos rentáveis – devido à fragilidade do mercado interno – a idéia destas operações de conversão vem associada à estratégia da criação de "plataformas de exportação".

No Brasil, essa estratégia se materializa na "nova política industrial" proposta pelo governo Sarney. Essa política propugna a criação de zonas industriais voltadas para a exportação, criando novas e lucrativas oportunidades de investimento para as multinacionais, voltadas para o consumo dos países imperialistas, explorando nossa mão-de-obra barata e sem depender da demanda de nosso mercado interno. Verdadeiros enclaves coloniais que tornarão nossa economia semelhante à de países asiáticos como Coréia do Sul, Singapura e Hong-Kong.

Solução patriótica

A dívida externa brasileira (e das outras nações dependentes) coloca com força na ordem-do-dia a questão nacional. Todo o mecanismo da dívida volta-se para o saque da nação, para a pilhagem de suas riquezas. Por trás de siglas vetustas, aparentemente respeitáveis, como FMI, Bird, Clube de Paris, CITICORP, Chase, escondem-se verdadeiras quadrilhas de agiotas e mafiosos.

A defesa da nacionalidade brasileira está a exigir uma atitude patriótica e enérgica face à gravidade da questão. O governo e os outros aliados internos do imperialismo desconsideram olimpicamente os dados que demonstram estarmos sendo roubados. Ganham para isso.
Mas onde o sentimento de nacionalidade sobrevive, principalmente junto às vastas camadas populares, cresce a resistência patriótica à espoliação.

Há tempos as correntes verdadeiramente democráticas e patrióticas levantam a proposta de suspender o pagamento da dívida e de realizar-se uma auditoria rigorosa, após o que se tomaria uma deliberação sobre o que fazer. É a única solução patriótica em curto prazo.
Em longo prazo o povo brasileiro deve preparar-se para o único caminho consequente – o do enfrentamento com o sistema financeiro internacional, denunciando a dívida e declarando o seu não pagamento.

Parte de um estudo a ser publicado pelo autor.

* Haroldo Lima é líder do Partido Comunista do Brasil na Assembléia Nacional Constituinte.

Notas
(1) "O famoso truste do petróleo dos EUA, a Standard Oil Company (ESSO) foi fundado em 1900", documenta Lênin.
(2) Ver o estudo "Dívida externa, instrumento de dominação neocolonialista", de Luiz Gonzaga, in Princípios, n.º 11.
(3) Marx admite a hipótese em que o juro pode ser superior ao lucro, mas em "casos isolados" (MARX, Karl, O Capital, cap. XXII, Livro III).

EDIÇÃO 14, OUT/NOV, 1987, PÁGINAS 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31