Quem tem agitado a questão são principalmente empresários ligados ao grande capital (brasileiro e multinacional), e políticos e intelectuais a ele ligados. Eles defendem a manutenção e o aprofundamento do atual modelo econômico vigente no país, que produz bens de grande requinte para uma elite endinheirada, e deixa de fora, à margem do mercado de consumo, a enorme massa empobrecida, cerca de dois terços da população, cuja renda mal dá para atender a necessidades básicas, como alimentação e moradia. Os porta-vozes do grande capital pregam que só há salvação nesse caminho, que conduz a uma integração maior do Brasil na economia internacional (1).

Os grandes empresários têm interesses específicos nesta questão. Querem manter intocado o atual modelo econômico e aumentar seus negócios com o mundo. Para a grande burguesia, a tese da modernidade significa o aprofundamento da articulação com o mercado mundial, sob hegemonia do grande capital brasileiro e multinacional.

Para as áreas sob domínio ideológico da burguesia, essas teses se traduzem em um conjunto de idéias que dominam o debate contemporâneo sobre a modernidade. Eles valorizam o domínio do mercado em todas as áreas da atividade humana, a prostração servil ante o imperialismo e suas modas intelectuais e o abandono de qualquer projeto coletivo. As teses da modernidade e do pós-moderno diluem a fronteira entre a cultura erudita e os produtos da indústria cultural, radicalizando a tese de que tudo é cultura: um filme publicitário tem o mesmo valor cultural que uma sinfonia de Beethoven. Elas destroem também toda perspectiva histórica, incapazes de compreender o presente como parte de um processo cujas raízes estão na experiência humana vivida coletivamente. A realidade é transformada em imagens dilaceradas e o tempo é fragmentado numa série de presentes perpétuos, "uma perpétua mudança que apaga aquelas tradições que as formações sociais anteriores, de uma maneira ou de outra, tiveram de preservar" (2).

Os propagandistas da modernidade entendida dessa forma — domínio do mercado, submissão ao estrangeiro, perda do sentido da história — encantam-se com idéias que julgam novas. Já se proclamou a morte de Deus; freqüentemente anuncia-se a morte do marxismo. Os pós-modernos vão além e vivem a época da "morte" de quase todas as idéias: Daniel Bell havia proclamado o fim das ideologias, cuja "morte" foi declarada por Jean-François Lyotard; Jean Baudrillard fala no fim do real; Michel Foucault sugere a "morte" do homem. Nada fica em pé depois da passagem do cavalo de Atila do pós-moderno, numa voragem sem fim onde a intuição, o sonho, o sentimento, são erigidos em fundamentos para o conhecimento, afastando qualquer julgamento com base racional, que se baseie no exame objetivo do mundo real. Seus limites, porém, são muito preciosos: a defesa e a manutenção do capitalismo. Marshall Bermann, por exemplo, sugere o fim das revoluções: "ainda que um comunismo triunfante possa jorrar das comportas abertas pela livre troca, quem sabe que ameaçadores impulsos jorrarão, ao mesmo tempo, despertados pelo comunismo ou latentes em seu bojo?". A sociedade burguesa, então, é preferível à comunista, sugere ele: seus males e defeitos já são familiares, enquanto o comunismo de Marx aponta a "direção de imensos espaços humanos desconhecidos, sem qualquer limite" (3).

Importante para olhar a seu redor, para examinar seu passado e compreender o presente, os pós-modernos inauguram uma época de subjetivismo extremado. "A idéia dominante do nosso tempo é que todas as crenças se originam no eu, e não têm outra fonte de legitimação" (4), diz o pensador norte-americano Alan Bloom. Essa avaliação indica a chave para alguns dos pressupostos filosóficos dessas teses e para o extremo relativismo de valores de nosso tempo. Elas reabilitam idéias do final do século passado, de pensadores como William James e, principalmente, Friedrich Nietzsche (1844- 1900), o fundador do irracionalismo moderno. Sua presença na cultura contemporânea é marcante, como na música, por exemplo, como mostra Alan Bloom. Os astros americanos cantam, diz, canções que não compreendem e obtêm enorme sucesso "porque algo na mensagem original sensibiliza as almas americanas. Mas por trás de tudo, os letristas principais são Nietzsche e Heidegger" (5).

Essa mensagem é simples e terrível, derivada de James e Nietzsche: toda verdade é relativa, e depende do julgamento e da vontade do indivíduo; por isso, só é verdadeiro aquilo que convém ao indivíduo. O pensador americano William James, que viveu de 1842 a 1910, foi o fundador do pragmatismo. Ele defendia que as teorias não são verdadeiras ou falsas, mas sim úteis ou inúteis. Em seu livro Pragmatismo escreveu que "chamava-se verdadeiro aquilo que se revela bom na esfera das convicções". Em outro lugar, James esclarece o significado disso, ao dizer que para ele; a razão aplica-se apenas aos negócios. "O mundo prático dos negócios é, por sua vez, racional no mais alto grau para o político, para o militar e para o homem dominado pelo espírito dos negócios."

Mas é em Nietzsche que essas idéias adquirem seu desenvolvimento clássico mais acabado. O irracionalismo alemão passa a ter, com ele, um papel dirigente, e Nietzsche é "seu primeiro e mais importante expoente", diz Georg Lukács num de seus livros mais importantes, El Asalto a Ia Razon (6). Nietzsche só reconhece uma fonte para a verdade e para a ação humana, a vontade (que ele chama de vontade de poder). "Suposto que nada está 'dado' como real, a não ser nosso mundo dos apetites e paixões, que não podemos descer ou subir nenhuma outra 'realidade' a não ser precisamente à realidade de nossos impulsos… não é preciso fazer o ensaio e perguntar a pergunta, se esse 'dado' não basta para, a partir de seu semelhante, entender também o assim chamado mundo mecânico (ou 'material')?", entendê-lo como "algo da mesma forma de realidade que nossa própria emoção" — escreveu ele em Para além do Bem e do Mal (7). Nietzsche foi o primeiro expoente do irracionalismo alemão. Para ele, a vontade é a fonte da verdade e da ação

Se nada existe além de nossas emoções e sentimentos, se a realidade objetiva não existe, não pode haver também um critério para a verdade. Assim, ele escreveu em outro lugar que "a essência da 'verdade' é esta apreciação: 'creio que isto ou aquilo é assim'. O que se exprime neste julgamento são as condições necessárias para a nossa conservação e para o nosso crescimento. A confiança na razão e nas suas categorias, na dialética e, portanto, na lógica, constitui prova a favor só de sua utilidade para a vida, não a favor de sua 'verdade'". (8).
Nietzsche e James se encontram aqui, e proclamam que só é verdadeiro aquilo que é útil. Mas o alemão vai mais longe que o americano, e tira todas as conseqüências de seu método subjetivista. "Nada é verdade, tudo é lícito", escreve em Assim falou Zaratustra (9). Em outro lugar, afirma que o conhecimento só vale como instrumento do poder. Assim, a moral, a consciência, a democracia, são invenções de escravos; é conhecida sua tese de que a história moderna é a invasão lenta, maléfica e segura, da massa de escravos que, golpeando o poder das elites, vão obtendo conquistas democráticas. "Para nós, que encaramos o movimento democrático não só como uma forma degenerada de organização política, mas também como um equivalente a uma degenerescência, uma decadência do homem que envolve sua mediocrização e depreciação, onde fixaremos nossas esperanças", lamenta-se ele em Para além do Bem e do Mal (10).

Essas idéias se baseiam em um profundo desprezo do filósofo pelas massas trabalhadoras. "Nos tempos modernos, escreveu ele, não é o homem ávido de arte, mas sim o escravo, quem determina as idéias gerais". "Fantasmas como os da dignidade do homem e da dignidade do trabalho são os frutos mesquinhos de uma escravidão que se esconde de si mesma. Desventurados tempos estes em que o escravo emprega tais conceitos, em que se excita a meditar sobre si mesmo e, mais que isso, desditosos sedutores, estes que puseram a perder o estado de inocência do escravo com os frutos da árvore do conhecimento!" (11).

"Uma cultura superior, escreveu ele, só pode surgir onde existam duas castas distintas no seio da sociedade: a dos trabalhadores e a dos ociosos, capacidade para desfrutar verdadeiramente de seu ócio; ou, para dizê-lo com palavras mais fortes, a casta do trabalho forcado e a do trabalho livre" (12).
Nietzsche só via uma saída para essa situação — saída que se tornou uma trágica realidade três décadas depois da morte do filósofo, com o nazismo: "a manutenção do estado militar é o último e supremo recurso para assumir ou manter a grande tradição com vistas ao tipo superior de homem, ao tipo de homem forte" (13).

Não é preciso frisar o caráter elitista e ultra-reacionário dessas idéias. Elas surgiram numa conjuntura particularmente ameaçadora para as classes dominantes européias, e refletem seus temores. A reação filosófica à Revolução Francesa já havia acentuado a religião, o elitismo e o subjetivismo como refúgios seguros contra ideologias que, pregando o progresso técnico e social como caminhos para a felicidade humana, mobilizavam as massas contra os privilégios da elite. Essas idéias, contudo, precisaram esperar pelo crescimento das lutas operárias, na primeira metade do século XIX, para aumentar seu prestígio entre a burguesia. As idéias de Nietzsche refletem esse recuo obscurantista, são sua expressão mais acabada. Esse recuo está sinalizado já no começo do século passado, quando Augusto Comte, o fundador da sociologia, elogiou a obra de Joseph De Maistre, um crítico reacionário da Revolução Francesa, e criticou Saint-Simon, queixando-se de sua "disposição revolucionária", com a "qual estou e devo estar em absoluta oposição", disse o fundador do positivismo (14).

Mais tarde, Emile Durkheim, outro pai da sociologia, continuador de Comte, negou a possibilidade de qualquer revolução: "os fenômenos físicos e sociais são fatos como os outros, submetidos a leis que a vontade humana não pode interromper à sua vontade, e que, por conseguinte, as revoluções no sentido próprio do termo são coisas tão impossíveis como os milagres" (15). Essa crença na importância do homem para interferir em seu próprio destino e construir um mundo melhor e mais justo teve larga aceitação entre pensadores que baseiam suas teses num empirismo estreito, a histórico e antidialético, incapazes de compreender que entre o homem e o mundo objetivo (formado pela natureza e pela sociedade) há um mútuo condicionamento — os fatos são fatos humanos, isto é, resultado da atividade prática do homem em sua relação com a natureza e com os outros homens.

Essa idéia de que o homem é impotente para alterar sua própria história tem muito prestígio, mesmo em nossos dias, entre os apologistas da burguesia, que pretendem manter intocado seu domínio; ela é irmã gêmea da idéia de que as leis do mercado (a famosa "mão invisível do mercado") é que deve gerir os destinos humanos, idéia cujo leque de aceitação é muito amplo e inclui gente como Mário Henrique Simonsen e o economista norte-americano Milton Friedman (o ideólogo de Augusto Pinochet). Mas seu caráter irracionalista ficou oculto durante muito tempo, sob camadas de argumentos que consideravam que a ciência deve lidar exclusivamente com fatos esforçando-se ao máximo para eliminar todo juízo de valor em seu julgamento.

O irracionalismo avançou depois da derrota das revoluções de 1830-1848 e da Comuna de Paris (1871)
O irracionalismo deu passos de gigante depois da derrota das revoluções democráticas de 1830—1848, na Europa e, principalmente, depois da derrota da Comuna de Paris, em 1871. Antes desses acontecimentos, o adversário dos filósofos irracionalistas eram os pensadores burgueses que, continuadores da Ilustração, defendiam o liberalismo e a idéia do progresso. "A situação muda radicalmente desde os combates de junho do proletariado parisiense e, principalmente, desde a Comuna de Paris: a partir de agora, será a ideologia do proletariado, o materialismo dialético e histórico, o alvo de ataque cuja natureza essencial determinará o desenvolvimento ulterior do irracionalismo", diz Lukács (16).

A obra de Nietzsche e seu ataque à democracia são a cristalização desse combate da elite. Imediatamente depois da queda da Comuna de Paris, ele escreveu a seu amigo, o barão de Gersdoff: "Podemos retomar a confiança. Não, nossa missão/alemã ainda não terminou. Sinto-me mais animado do que nunca, pois nem tudo sucumbiu sob o adormecimento e a elegância franco-judaicos e entre os cobiçosos manejos do presente. Continua existindo, apesar de tudo, uma valentia, a valentia alemã, que é interiormente, algo muito distinto do elan de nossos vizinhos, dignos de pena. Por cima de todas as lutas entre as nações, nos havia amedrontado aquela cabeça da hidra internacional, que rapidamente começou a agitar-se de uma forma tão espantosa, como o signo das lutas do futuro, tão diferentes" (17). A longa citação justifica-se por sua clareza — ela é quase um programa e uma profecia: a "missão alemã" é acabar com a "hidra internacional" (a Primeira Internacional), cujo espectro era mais ameaçador, para a elite, que qualquer guerra.

Esta longa apresentação das idéias de Nietzsche é necessária; ela teve grande influência no desenvolvimento do irracionalismo moderno e está presente, como pressuposto filosófico fundamental, na maior parte das formulações ideológicas da elite em nossos dias. Entretanto, elas tiveram que seguir um longo caminho para chegar a esse patamar. Elas influenciaram o pensamento filosófico e mesmo as investigações científicas nas ciências do homem. Sua valorização do instinto, da vontade, sua relativização dos valores, tiveram grande importância em muitos pensadores. Um deles foi Sigmund Freud que, apesar de grande cientista, forneceu um dos fundamentos mais fortes para o irracionalismo contemporâneo. Ê preciso ter cuidado na avaliação da contribuição de Freud para o conhecimento; deve-se evitar tanto a apologia de suas teses quanto o esquematismo simplista que as afasta sob o rótulo fácil de idealismo. Freud foi um cientista honesto, que enfrentou a fúria dos preconceitos de seu tempo para defender suas descobertas, e os marxistas devem ter, com sua obra, o mesmo cuidado que Marx teve com Hegel ou Ricardo, e Lênin com Hilferding ou Hobson. É preciso separar, atentamente, as descobertas geniais do pai da psicanálise a respeito da mente humana, de sua generalização muitas vezes inadequada e de afirmações baseadas numa compreensão não-dialética do desenvolvimento humano e da relação do homem com seu meio natural e com a sociedade.

Feitas essas ressalvas, é forçoso reconhecer que a idéia freudiana de incompatibilidade entre o indivíduo e a cultura é a matriz de uma enorme variedade de opiniões subjetivistas e abertamente irracionais que povoam a cultura burguesa de nossos dias. A relação entre o indivíduo e a cultura é traumática porque, acredita Freud, para poder viver numa coletividade, o indivíduo é obrigado a reprimir seus impulsos primitivos, os instintos. "Todo indivíduo é virtualmente inimigo da civilização", escreveu ele (18). Em outro lugar, disse que "o desenvolvimento da civilização impõe restrições" à liberdade do indivíduo, e o "impulso da liberdade é portanto dirigido contra formas e exigências específicas da civilização, ou contra a civilização em geral". "O homem primitivo se achava em situação melhor, sem conhecer restrições de instinto … o homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança" (19).

A idéia freudiana da incompatibilidade entre indivíduo e cultura é a matriz do subjetivismo
A civilização reprime os instintos e limita a liberdade — essa conclusão dos argumentos freudianos, juntamente com as idéias de Nietzsche sobre a relatividade dos valores e a moral como obstáculo para o florescimento do homem superior, está subjacente à grande parte dos ataques contemporâneos a todo e qualquer projeto político-social coletivo e à idéia do progresso. Uns poucos exemplos são suficientes para mostrar isso.

Nos anos 30, na Alemanha, formou-se um instituto de estudos, conhecido como Escola de Frankfurt, que tentou juntar as idéias de Freud e as de Marx, e cuja análise da sociedade contemporânea foi arrasadora e fortemente pessimista. Eles queriam compreender como é que a civilização européia da primeira metade do século (e principalmente seu próprio país, a Alemanha) pôde gerar um monstro tão devastador como o nazismo.

Procuravam essa resposta na análise da cultura da época, e chegaram à conclusão de que "o conteúdo da razão foi arbitrariamente reduzido" a seu uso instrumental e técnico (20). Dessa forma, acreditaram, "a história dos esforços humanos para subjugar a natureza é também a história da subjugação do homem pelo homem" (21). Ou: "a repressão dos desejos que a sociedade realiza através do ego torna-se cada vez mais insensata não só para a população como um todo como para cada indivíduo. Quanto mais alto se proclama e se reconhece a idéia da racionalidade, mais fortemente cresce na mente das pessoas o ressentimento consciente e inconsciente contra a civilização e seu agente dentro do indivíduo, o ego" (22). Em outro lugar, Adorno e Korkheimer chegaram à conclusão de que "a história da civilização é a história da introversão do sacrifício. Ou por outra, a história da renúncia" (23). Walter Benjamin, outro expoente da Escola de Frankfurt, considerou o progresso Como uma tempestade, uma "catástrofe única que segue empilhando escombro sobre escombro" (24). Mas coube a Herbert Marcuse, outro filósofo desse grupo, popularizar de forma mais ampla essas idéias, e seu livro Eros e Civilização tornou-se uma espécie de manifesto em favor do desejo e do indivíduo contra a cultura, nos anos 60.

Sartre defendeu um subjetivismo incompleto e envergonhado. Ele é um dos "mestres da modernidade"
Outro pensador que deve ser lembrado entre os "mestres da modernidade" é o francês Jean Paul Sartre; para ele, "o homem é, antes de mais nada, um projeto que se vive subjetivamente", e "nenhuma moral pode indicar-nos o que há a fazer". O subjetivismo de Sartre era ainda incompleto e de certa forma envergonhado: ele dizia também que, "quando dizemos que o homem é responsável por si próprio, não queremos dizer que o homem é responsável por sua restrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens" (25).

Essas idéias foram incorporadas e radicalizadas por alguns pensadores burgueses contemporâneos, principalmente franceses. O filósofo Cornélius Castoriadis, por exemplo, nega a possibilidade de qualquer base objetiva para as ciências sociais, e tenta provar que o conceito de mais valia é inadequado porque tem uma base cujo conteúdo é impossível de determinar: a hora de trabalhar (26). Michel Foucault, por outro lado, ataca toda norma social como autoritária. Ele escreveu que "uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida", e lamenta a evolução social posterior à Revolução Francesa: em referência às "sociedades que conhecemos até o século XVIII, nós entramos em uma fase de regressão jurídica; as Constituições escritas no mundo inteiro a partir da Revolução Francesa, os códigos redigidos e reformados, toda uma atividade legislativa permanente e ruidosa não devem iludir-nos: são formas que tornaram aceitável um poder essencialmente normalizador" (27).

Lukács mostrou que o irracionalismo moderno é fruto da luta da burguesia e da nobreza contra a idéia do progresso. Esse abandono pela burguesia da idéia do progresso foi expresso com clareza na obra de Raimond Aron, um sociólogo muito prestigiado pelos conservadores franceses. Ele escreveu, em 1958, um livro intitulado As desilusões do progresso, onde diz que "a sociedade moderna tornou-se incapaz de realizar seus ideais, resolver seus angustiantes problemas de vida, dominar a natureza e realizar o 'objetivo de Prometeu' " (28).

O pessimismo é o traço mais marcante desse quadro. A ciência é rejeitada, e suas conquistas são vistas como ameaças contra o homem; a verdade deixa de ter base objetiva e transforma-se numa revelação mística, intuitiva e radicalmente individual. Instaura-se um pluralismo de verdades que dilui as categorias do conhecimento, e as substituem por decisões individuais.

Perry Anderson mostrou que o modernismo, que surgiu na Europa no começo do século (e teve reflexos no Brasil, na Semana de Arte Moderna de 1922) foi condicionado pela "bruma da revolução social"; ele "surgiu na intersecção de uma ordem dominante semi-aristocrática, uma economia capitalista semi-industrializada e um movimento operário semi-emergente, ou semi-insurgente" (29), e os modernistas definiram-se em relação a ele, seja apoiando (e aderindo ao comunismo), seja opondo-se a ele (e aderindo ao fascismo). De qualquer forma, o modernismo colocou de pé a idéia que identifica modernidade com progresso técnico. O pós-modernismo contemporâneo é uma reação ao modernismo, promovida por uma geração que defrontou-se com ele nos institutos, academias e escolas, onde as obras modernistas foram transformadas em "monumentos reificados que precisam ser destruídos para que algo novo venha a surgir" (30).

Entretanto esse assalto ao passado simbolizado pelo modernismo é comandado pelo mercado, que impõe as regras adequadas à produção daquilo que serve para o consumo. "A emergência da pós-modernidade está estreitamente relacionada à emergência desta nova fase do capitalismo avançado, multinacional e de consumo", diz Frederic Jameson (31).

Esse campo criou a situação favorável para a confluência entre as idéias de William James, Friedrich Nietzsche e o positivismo de Comte e Durkheim — que longe de serem anacronismos do século passado, continuam com plenos direitos de cidadania no pensamento burguês contemporâneo (32). O mercado é quem determina essa função. Para a grande burguesia, a razão transformou-se em mera técnica, e a modernização é sinônimo de tecnologia. Isso é conveniente para ela; permite o aprofundamento do mesmo modelo econômico que lhe dá enormes lucros, mesmo que para isso tenha que abrir mão até da idéia de soberania nacional como uma velharia herdada do século XVI (33).

O domínio do mercado transparece também nas camadas intelectuais, produtoras de bens culturais e científicos para o grande capital. A ética subjetiva que permite a cada indivíduo escolher o que lhe convém permite esconder a alienação daqueles que, renunciando a uma autêntica e livre investigação do mundo objetivo, seja nas artes ou na ciência, rendem-se às exigências das caixas registradoras ou da folha de pagamento. O crítico de arte Paulo Sérgio Duarte mostra que o pós-moderno corresponde à emergência dos valores da sociedade de consumo no campo de cultura dos especialistas, num momento em que esses valores já se acham disseminados na cultura do homem médio, na vida cotidiana das sociedades contemporâneas. "Não há retomada de valores do passado para construção do presente", mas apenas as "conseqüências culturais da emergência da classe média", com sua preocupação com o consumo e o seu caráter regressivo (34). A artista plástica brasileira Regina Vater mostrou recentemente (num curso no Museu de Arte Contemporânea de São Paulo) como as galerias de arte em Nova York dominam a produção dos artistas plásticos. È uma situação que ela conhece de perto, pois mora há mais de dez anos nos EUA. O pós-moderno, diz ela, transformou o artista em produtor de objetos de decoração, com regras de composição precisas: figuras humanas, certas .cores ou alusões a situações sociais ou humanas não devem aparecer para não chocar a freguesia potencial — os grandes consumidores dessas obras são os executivos das multinacionais e seu gosto impõe-se fazendo com que alguns truques plásticos, geometrias, certas maneiras de usar as cores, prevaleçam no trabalho dos "artistas".

O conteúdo é negado e a produção é purificada quase como um rito de limpeza, diz Regina Vater. A alienação dessa enorme camada de intelectuais e artistas, que se colocam a serviço do grande capital, tem conseqüências nocivas, particularmente num país como o Brasil. Ao enfatizar um único modelo de modernização — a integração com o mercado mundial e a adoção de idéias, modelos e tecnologias produzidas fora do país — eles renunciam ao desenvolvimento das características próprias de nosso país. Acentuam a modernização como cópia e não como criação cultural autônoma, surgida do esforço para resolver de forma criativa os problemas nacionais. Descartam, principalmente, a idéia de que, mais do que tecnológica, a modernização deve ser social. É a permanência dê estruturas sociais caducas, geradas no período colonial, que fazem o povo brasileiro trabalhar para produzir bens que não poderá consumir, e enquadram o Brasil numa posição subordinada e dependente na divisão internacional do trabalho — isso é o obstáculo que impede a modernização verdadeira do Brasil. A manutenção de uma estrutura agrária extremamente concentrada, de uma indústria que produz bens de consumo para uma elite, de uma produção agrícola voltada para a exportação, e cujos preços são determinados pela variação da cotação dos produtos no mercado mundial — essas são algumas das características dessa formação social arcaica, que deve ser descartada pelo povo brasileiro e pelos intelectuais progressistas. Para a elite, esse tipo de modernização não convém — ela destruirá a base de seus privilégios; por isso, ela aposta na outra direção, a da manutenção do atual modelo econômico. E, nesse movimento, consegue — como o flautista de Hamelím — atrair pela doce melodia de sua propaganda, alguns "homens de pensamento" que trocam seu talento por um lugar nesse festim macabro.

* José Carlos Ruy, jornalista e historiador, colaboradoa da Prinípios.

NOTAS
1. Para mais detalhes sobre o modelo apregoado pelo grande capital, ver Retrato do Brasil, n° 58, agosto de 1988.
2. Friedric Jameson, "Pós-modernidade e sociedade de consumo", in Novos Estudos Cebrap, n° 12, junho de 1985.
3. José Carlos Ruy, "A Dialética do Capitulacionismo", Tribuna da Luta Operária, n° 135, 8 a 14 de junho de 1987.
4. Alan Bloom, "Nietzsche na América", Diálogo n° 3, v. 21, 1988.
5. Idem
6. Georg Lukács, El Asalto a la Razon, Ediciones Grijalbo, Barcelona, 1972.
7. Friedrich Nietzsche, Para além do Bem e do Mal, in Obras Incompletas, Os Pensadores, vol. XXXII, Abril Cultural, São Paulo, 1974.
8. Citado em Leon Kossovitch, Signos e Poderes em Nietzsche, Editora Ática, São Paulo, 1979, p. 58.
9. Lukács, p. 281
10. Citado em Sidney Finkelstein, Existencialismo e Alienação na Literatura Norte-americana, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1969, p. 62
11. Lukács, p. 264
12. idem, p. 269
13. idem, p. 276
14. Michael Lowy, As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchhausen — marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento, Editora Busca Vida, São Paulo, 1987, p. 23.
15. ¦15. idem, p. 27
16. Lukács, p. 6
17. idem, p. 263
18. Sigmund Freud, O futuro de uma ilusão, in Edição Standard brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol XXI, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974, p. 16.
19. Sigmund Freud, O Mal Estar na Civilização, idem, p. 116 e 137. Uma visão marxista do processo de socialização na criança, que não admite a oposição entre indivíduo e sociedade, mas sim sua integração dialética, pode ser encontrada em L.S. Vygotsky, A Formação Social da Mente, Editora Martins Fontes, São Paulo, 1988.
20. Max Horkheimer, Eclipse da Razão, Labor, Rio de Janeiro, 1976, p. 28
21. idem, p. 116
22. idem, p: 120.
23. Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, Dialética do Esclarecimento (Dialektik der Aufklarung), Jorge Zahar Editora, Rio de Janeiro, 1985, p. 61.
24. Walter Benjamin, Teses sobre a filosofia da história, em Benjamin, Coleção Grandes Cientistas Sociais, Editora Ática, São Paulo.
25. Jean-Paul Sartre, O existencialismo é um humanismo, in Os Pensadores, Abril Cultural, São Paulo, 1978.
26. Cornélius Castoriadis, A Experiência do Movimento Operário, Editora Brasiliense, São Paulo.
27. Michel Foucault, História da Sexualidade, vol. 1, A Vontade de Saber, Graal, Rio de Janeiro, 1984.
28. Citado em G. Kursanov, Veritas — Fundamentos de la Teoria Leninista de la Ver-dad, Editorial Progreso, Moscou, 1977, p. 240.
29. Perry Anderson, "Modernidade e Revolução", Novos Estudos Cebrap, nº 14, São Paulo, fevereiro de 1986.
30. Fredric Jameson., op. cit.
31. idem
32. Lowy, p. 27, 31 e 46.
33. Ver Retrato do Brasil, n? 58, agosto de 1988.
34. Paulo Sérgio Duarte, in Novos Estudos Cebrap vol. 12, junho de 1986

Nota da redação

Georg Lukács (1885-1971) foi um filósofo húngaro que se manteve durante um determinado período no campo do marxismo. Após o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética tornou-se um defensor das idéias revisionistas difundidas por N.S. Kruschev.

EDIÇÃO 16, DEZEMBRO, 1988, PÁGINAS 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65