Cabe perguntar se as atuais transformações tecnológicas têm contribuído para o aperfeiçoamento do trabalho humano, ensejando uma elevação do nível geral e individual de sua qualificação.
A análise do impacto da atual revolução tecnológica – que tem como pilares a microeletrônica, a microbiologia, e as novas formas de energia – mostra que novas possibilidades se abrem para: o aproveitamento dos recursos naturais; a produção artificial de materiais não disponíveis na natureza (os sintéticos); a mudança qualitativa dos instrumentos e meios de trabalho e outras formas de organização da produção e dos processos de trabalho. O fator crucial dessas mudanças é o enorme desenvolvimento científico e sua íntima relação com a aplicação imediata da ciência, que tem se tornado em força produtiva direta.

E o que tem acontecido com o homem, esta força produtiva considerada fundamental? Tem se tornado “descartável” pelo avanço científico e suas aplicações tecnológicas ou tem também incorporado novas condições físicas e mentais, mudando sua qualidade? E o trabalho humano, tem diminuído sua relevância na vida das pessoas e da sociedade, ou suas características ontológicas se renovam em novas formas de trabalho, bem diferentes das tradicionais? A nova qualificação tem sido um processo coletivo ou apenas pequenos grupos têm sido incorporados a esta nova dinâmica? De que maneira esta nova qualificação participa enquanto pressuposto da nova fase de acumulação e valorização do capital? Qual é o conteúdo desta nova capacidade de trabalho? Trata-se de um trabalho simplificado ou esta simplicidade é meramente aparente, escondendo requisitos de diversas formas elementares e básicas de trabalho, exigindo um novo perfil de escolaridade de caráter mais complexo, como o politécnico? Ou é suficiente apenas a apresentação de um perfil polivalente? As novas formas de organização do trabalho baseadas nos avanços tecnológicos têm permitido o alargamento da base de conhecimento, experiência, autoridade dos trabalhadores que as vivenciam, oferecendo-lhes possibilidades materiais efetivas para se tornarem mais ativos, criativos, conscientes e críticos do seu papel? Ou seja, a nova qualificação é realmente qualificadora? O que tem o sistema escolar a refletir sobre as relações entre estas transformações e a formação do homem e o que tais reflexões colocam para a escola enquanto mudança de sua prática?

As respostas para estas perguntas não estão dadas, pois pressupõem o desenvolvimento de pesquisas e estudos que se encontram ainda na sua fase inicial.
A seguir serão trabalhadas algumas idéias visando contribuir para tais esclarecimentos, com a ressalva de que se tratam apenas de notas de trabalho, resultado inicial de uma pesquisa sobre o tema, que ainda se encontra na sua fase preliminar.

A nova tecnologia da informação altera as próprias bases da produção socialReRe
As atuais transformações tecnológicas, principalmente as que se verificam a partir da década de quarenta deste século nos países desenvolvidos marcam a transição de uma sociedade industrializada para uma sociedade tecnizada. Este é também o momento da passagem da fase do imperialismo clássico para a da transnacionalização do capital.

A sociedade tecnizada não é a sociedade industrial mais desenvolvida. Trata-se de algo novo, que não modifica a essência do modo de produção capitalista, mas lhe traz novos contornos. Não se trata de um movimento evolucionista com meras alterações quantitativas. As inovações introduzem mudanças qualitativas que atingem os métodos de produção.

O processo de transição de um a outro tipo de sociedade é contínuo e descontínuo ao mesmo tempo, às mudanças qualitativas sucedem mudanças quantitativas, à emergência dos novos elementos sobrevém a continuidade das antigas formas, mostrando que se trata de um processo complexo, de interpenetração, onde contradições já existentes se repõem e se entrelaçam com outras novas. A sociedade tecnizada surge quando a sociedade industrial ainda não se esgotou e nos casos dos países subdesenvolvidos, ela se esboça em meio a graves distorções e acentua os descompassos de tempo e de ritmo que caracterizam o desenvolvimento do capitalismo periférico.

A sociedade industrial caracteriza-se pela importância da economia de escala, as máquinas compõem-se de estruturas grandes e pesadas e consomem muita energia. Já com a tecnificação, verifica-se a possibilidade de obtenção de produtos mais diversificados, a partir da utilização de equipamentos flexíveis e versáteis, com um gasto menor de energia.

Mesmo sendo a mecanização uma forma de racionalização do uso da força de trabalho o processo de industrialização representou a incorporação de grandes massas de trabalhadores. Já com as atuais transformações tecnológicas verifica-se uma redução não só relativa, mas absoluta de mão-de-obra. Verifica-se uma enorme economia de tempo de trabalho humano necessário, fazendo com que a produção do valor dependa menos de intervenção viva do homem.

O processo de industrialização é marcado por uma certa linearidade, no sentido de que parte do setor secundário da economia para o terciário e primário, tendo portanto um centro irradiador e no sentido de que sua evolução é relativamente previsível enquanto um engendramento de fases sucessivas. O processo de desenvolvimento que marca a sociedade tecnizada é policêntrico, pois manifesta-se em todos os níveis da vida social, pois suas técnicas são generalizáveis para diversas situações, sem que seja possível prever suas consequências, pois além de manifestar-se desta forma difusa, é marcado por um ritmo acelerado de inovações, e tem estreitado o intervalo entre suas descobertas e aplicações.
A radicalidade destas mudanças se apóia num dado fundamental: a alteração da base do tratamento, da conservação e da transformação das informações. Sua generalidade advém do fato de quase todos os processos sociais dependerem fundamentalmente das informações e de como elas são utilizadas. A nova tecnologia da informação muda as bases da produção social, pois incide sobre os processos de produção, desenvolvimento e aplicação do conhecimento, permitindo acelerar outras inovações, incide pois, no centro nervoso dos processos sociais. A possibilidade de integrar multilateralmente as informações contribui para reforçar a transformação que se manifesta no plano da organização das ciências, de diluição das fronteiras, de combinação de dados, de uma tendência sintética.

A microeletrônica altera o processo de automação e modifica o trabalho humano
As possibilidades de aplicação da microeletrônica criaram novas oportunidades para o processo de automação com consequências bastante significativas para a alteração do trabalho humano.
A automação baseada na eletromecânica opera com equipamentos rígidos, cujo comando vem embutido na máquina e não pode ser modificado. Este comando substitui e esvazia a capacidade de reflexão dos operadores, cujas funções se reduzem a abastecer a máquina, vigiá-la e a operações tão simples e repetitivas que exigem capacidades humanas elementares. Esta é a automação provocadora de grande rotatividade da força de trabalho, rígida, e adequada à produção em grande escala e desfuncional para as necessidades de flexibilidade e diversificação dos produtos que caracterizam o mercado da sociedade tecnizada.

Com a aplicação da microeletrônica, os equipamentos tornam-se flexíveis, e como o comando encontra-se externo à máquina, ou seja, no software, ela pode ser programada para diversas finalidades, o que oportuniza atender à crescente diversificação do mercado. Aquela parcela de trabalhadores que tem acesso à programação precisa se apresentar com maior qualificação e tem no trabalho opções para o desenvolvimento da percepção e do raciocínio. Encontram-se também, neste caso, trabalhadores reduzidos a funções elementares de preparação e vigilância do equipamento, o que não vem resolver plenamente o problema do trabalho repetitivo e fragmentado. Quanto à função de manutenção, esta se sofistica e os requerimentos educacionais para seu exercício se elevam.
A mudança na base técnica da automação é um dado importante para as alterações nos processos de trabalho com consequências importantes para o movimento de desqualificação e qualificação da força de trabalho. À automação flexível correspondem processos de trabalho flexíveis e flexibilização das funções. Estas mudanças na organização do trabalho podem, entretanto, ser adotadas ainda que não haja prévia adoção desta base técnica. Trata-se da adoção de novas estratégias de gestão da força de trabalho necessárias à preparação do campo para a chegada das novas tecnologias.

Num processo de trabalho rígido ocorre intensa divisão e fragmentação do trabalho com acentuado controle da supervisão (taylorismo e fordismo) adequadas ao funcionamento de linhas de produção, acarretando limitação dos trabalhadores a tarefas específicas, fixas, repetitivas e monótonas, que significam uma real desqualificação.

Já o processo de trabalho flexível traz a possibilidade de uma redução dos níveis de divisão e fragmentação do trabalho, pois oportuniza a intercambialidade de funções e a polivalência do trabalhador, ao ser alocado em diferentes tarefas. Esta flexibilização funcional pode ser de dois tipos: a) a agregação de funções para cada trabalhador como é o caso das ilhas de fabricação onde um único homem controla um conjunto articulado de várias máquinas e, b) a rotação por diferentes tarefas como registra a experiência de trabalho por equipes, que se responsabilizam pela sequência inteira de uma etapa produtiva arcando com todas as funções coletivamente.

Com a flexibilização funcional um novo perfil de qualificação da força de trabalho parece emergir e, em linhas gerais, pode-se dizer que estão sendo postas exigências como: posse de escolaridade básica, de capacidade de adaptação a novas situações, de compreensão global de um conjunto de tarefas e das funções conexas, o que demanda capacidade de abstração e de seleção, trato e interpretação de informações. Como os equipamentos são frágeis e caros e como se advoga a chamada administração participativa, são requeridas também a atenção e a responsabilidade. Haveria também um certo estímulo no favorecimento da atitude de abertura para novas aprendizagens e de criatividade para o enfrentamento de imprevistos. As formas de trabalho em equipe  exigiriam ainda a capacidade de comunicação grupal.

Pequeno grupo com perfil qualificado e enorme massa de homens descartáveis
Todavia, é conveniente assinalar que nem todos que manejam as novas tecnologias têm o conteúdo do trabalho flexibilizado. Os digitadores, por exemplo, desempenham uma mesma atividade, cansativa e mecânica, durante todo o tempo da jornada de trabalho. Além disso, nem todos têm conteúdo de trabalho complexo. É o caso dos trabalhadores diretos que executam funções simples como observar alarmes, as luzes de painéis e a execução de ações previamente estabelecidas segundo as prescrições dos técnicos. Alguns se qualificam e nesta categoria entram principalmente os trabalhadores indiretos dedicados a funções como: programação, planejamento, desenho, monitoração, testes, ajustes, controle, análise, avaliação e reprogramação. Em síntese, a adoção de novas tecnologias e das novas formas de trabalho levaria a uma elevação da qualificação média da força de trabalho, muito aquém, entretanto, se for considerado o patamar das conquistas obtidas pela humanidade do campo de conhecimento científico e tecnológico. Por outro lado, dado o caráter restritivo, capital-intensivo, heterogêneo e não coetâneo desde processo de inovações, apenas um pequeno grupo apresentaria o perfil de qualificado, restando num outro pólo, um enorme contingente de trabalhadores “descartáveis” e desqualificados.

No caso dos países subdesenvolvidos haveria ainda um fator complicador, pois com as ações de obsolescência tecnológica forçada e planejada desde o exterior pelo capital transnacional, vem junto a importação dos pacotes de software, restando para os autóctones espaços restritos em matéria de concepção.

Em médio e longo prazos espera-se uma modificação significativa na estrutura ocupacional. Algumas funções vão se extinguir e outras reduzir o volume de trabalhadores nelas empregados. O caso mais importante é assinalar é o da redução do número dos trabalhadores diretos. Particularmente as funções repetitivas, previsíveis, formalizadas e estruturadas de maneira fixa são mais adequadamente executadas por mecanismos automáticos. As funções de supervisão e controle da força de trabalho passam também por semelhante processo, pois como os novos equipamentos trazem em si mecanismos eficazes de controle da força de trabalho, os antigos capatazes deixam de ter tanta importância como tinham.

Outras funções estão passando por um processo inverso, pois tendem a se expandir ainda que num processo de crescimento relativo, sem grande peso absoluto no conjunto global da força de trabalho. São as funções dos trabalhadores indiretos, como a dos programadores, do pessoal de apoio, escritório e manutenção. Em geral, espera-se uma valorização das funções de concepção, de tratamento de símbolos, intelectuais, não previsíveis  e sujeitas à estruturação.

Em termos globais, entretanto, é necessário salientar a perspectiva de um grande crescimento de desemprego e de formas contratuais precárias, temporárias e fragmentadas. Cabe registrar que uma e outra tendência passam por processos heterogêneos e não-coetâneos, sujeitos a determinações de fatores sócio-políticos e culturais, pois não há processo autônomo de desenvolvimento tecnológico isento das marcas das relações sociais.

Além disso, é preciso questionar se, e em que medida, estaria ocorrendo uma real intelectualização destes setores avançados e qual é a natureza específica desse processo, indagando sobre as formas de produção, conservação, transmissão, distribuição, apropriação e avaliação crítica deste conhecimento.

Além do desperdício de capacidades que são levados à obsolescência e das expectativas profissionais de muitos que não se realizam, a tendência em curso tem imprimido uma certa mecanização do trabalho intelectual, que precisa ser melhor analisada em todos os seus desdobramentos.
Tal questão para os países periféricos revela-se bastante contraditória devido à dificuldade de acompanhar a mudança do padrão de acumulação, mais largamente referido como “padrão de competitividade”. Assim, dentro das relações internacionais, são os países capitalistas avançados que não só definem o patamar tecnológico internacional, como monopolizam a criação das novas tecnologias e administram o poder tecnológico, restringindo o acesso àquelas e impondo condições para o mesmo.

Os países dependentes acabam assimilando precariamente estas inovações, pois além de tudo faltam-lhes poder de compra e uma base consolidada de escolaridade e cultura básica e técnica, restando-lhes a posição de subordinação às decisões unilaterais e prévias do capitalismo central.

Brutalização até da aristocracia pela ignorância e alienação da lógica comunista
O impacto destas transformações sobre as classes sociais também é diferenciado no plano das suas especificidades internas e repercutem nas próprias relações entre elas.
As diferenciações internas ao proletariado se tornam mais complexas bem como as que se verificam em relação à burguesia e outras classes, trazendo repercussões não só para a questão do perfil das mesmas, mas para o seu papel o conjunto das forças sociais.

Numa formação social como a brasileira caracterizada por um processo de desenvolvimento capitalista desigual e combinado, onde o processo de industrialização ainda não se completou, verifica-se já o início da tecnização dos processos de trabalho em todos os setores da economia: na agricultura, na indústria e na produção dos serviços.

Do lado do trabalho, dois pólos marcam sua presença de forma elucidativa e ao mesmo tempo desconcertante pela significativa diferença de situação e perspectivas que, ao final, culminam, por vias diferentes, num processo de exploração e alienação.

No primeiro pólo encontra-se o proletariado tradicional fruto do processo de industrialização, caracterizado por salário e nível educacional baixos, instabilidade de emprego e desempenho de funções desqualificadas e taylorizadas. Trata-se de setores sociais que sofreram e vêm sofrendo vários processos de desenraizamento, seja através das frequentes migrações; das alternâncias de trabalho, a maior parte em caráter  precário, das instabilidade das moradias, ou de várias outras carências sociais que levam ao embrutecimento e à desestruturação familiar.

No outro pólo, percebe-se o surgimento de um novo tipo de proletariado, que desfruta de salários e nível educacional mais altos, goza de relativa estabilidade no trabalho, constituindo-se uma espécie de aristocracia técnica.

Essa situação de superioridade não é, entretanto, condição suficiente para uma consciência maior e disposição para o desempenho de um papel ativo nas disputas pelos interesses dos trabalhadores. Manifestam-se outras formas de desenraizamento próprias desse segmento decorrentes da forma como se dão a produção e a aplicação tecnológica, desvinculadas de uma política sócio-econômica e cultural de caráter global para a sociedade. Assim o acesso a informações técnicas por si, sem uma visão ampliada da realidade em suas várias dimensões, não garante uma efetiva compreensão do trabalho que se executa e do mundo no qual a atividade humana está inserida. A brutalização desse trabalhador não se dá pela fome, mas pela ignorância política e pelos horizontes estreitos e alienados oferecidos pela lógica consumista desta sociedade capitalista tecnizada. Sobrevém, assim, o sentimento de impotência e de incerteza quanto ao futuro, apesar dos enormes recursos tecnológicos produzidos pela humanidade.

Elementos iniciais visando à conceituação de qualidade do trabalho humano
Dentro da nova base técnica, especificamente a que traz a automação flexível, encontra-se elementos novos capazes de permitir a recuperação do controle do saber e da produção pelos trabalhadores, fator crucial para a ampliação da percepção mais ampla e de uma qualificação realmente de novo tipo.
De um lado, existem possibilidades de um maior controle do capital, pela própria simplificação da organização do trabalho, pelas formas de cooptação da administração participativa, pelo acesso às informações em tempo real, pela vigilância à distância através do próprio equipamento e pela concentração de dados pela gerência permitindo-se pronta e abrangente averiguação do que se queira saber.

Todavia, a nova organização e a nova tecnologia são também mais dependentes do trabalhador. Dependem do seu interesse, motivação, responsabilidade, atenção, capacitação, participação etc. Além disso, como a produção se torna integrada, basta um pequeno boicote num dos segmentos para inviabilizar o funcionamento do restante. A exigência de confiabilidade, vulnerabilidade dos equipamentos de alto custo face à possibilidade de uso inadequado, a intelectualização do trabalho, ainda que passível de questionamentos e as formas grupais de trabalho oferecem condições que podem relativizar o controle do capital e a emergência de uma nova qualificação de caráter politécnico.
Em Marx, o conceito de qualificação é tomado enquanto um conjunto de condições físicas e mentais, que compõe a capacidade de trabalho ou força de trabalho dispendida em atividades voltadas para a produção de valores de uso geral. Assim, a capacidade de trabalho é condição fundamental da produção, portanto, tem seu próprio valor de uso. Com o capitalismo, ela passa a ter um valor de uso crucial, pois representa a possibilidade de criação de uma valor adicional ao seu próprio valor, a mais-valia.

As condições físicas e mentais apresentadas pela força de trabalho  de uma sociedade variam historicamente, representando em linhas gerais, a síntese de uma série de elementos tais como: o grau médio de destreza dos indivíduos, a disponibilidade de recursos naturais, a forma de como é organizada socialmente a produção, a quantidade e a qualidade dos meios utilizados para produzir, incluindo evidentemente o desenvolvimento das ciências e a possibilidade de aplicação dos resultados.

A qualidade do trabalho humano diz respeito, em primeiro lugar, a uma qualificação coletiva dada pelas próprias condições da organização de produção social, da qual a qualificação individual não só é pressuposto, mas também resultado, que se expressa em maior ou menor grau de complexidade dependendo das possibilidades de potenciação dos vários tipos de trabalhos simples conhecidos pela sociedade.

Assim, segundo Rolle ( apud SILVA,s/d: 22): “Qualificação não é um modo de reconhecimento e codificação social das qualidades de trabalho, mas uma maneira de mobilizar, de reproduzir e de adicionar diversas formas de trabalho” (grifo meu).

Estas diversas formas de trabalho, por sua vez, trazem sua história particular, não são puros atos mecânicos, mas saberes sobre os quais foram impressas subjetividades e consciências, definições e escolhas, que resultaram em intervenções no processo social real. Uma vez mobilizadas, reproduzidas, adicionadas e multiplicadas estas formas de trabalho se modificam dando origem a novas formas de trabalho.

Freyssenet (1989: 105) aborda um outro ângulo na definição de qualificação: “Para ser qualificada, exige-se de uma atividade que os problemas a serem resolvidos sejam compreendidos de forma abrangente, que a solução para os mesmos seja elaborada, que estas soluções sejam realizadas e a responsabilidade por elas assumida. Ela pressupõe conhecimento, experiência, autoridade e possibilidades materiais” (grifo meu).

Aqui está presente a idéia de que o saber do homem é o saber de um ser ativo, consciente e objetivante, ou seja, não só concebe de forma abrangente (conhecendo as alternativas existentes) mas realiza as soluções escolhidas, reconhecendo-se responsável por elas. O autor destaca as pré-condições desta qualificação: conhecimento, experiência, autoridade e possibilidades materiais.
Abstraindo-se das relações sociais de produção, é possível dizer que os critérios de competência, tais como os referidos acima, não são definíveis pela lógica do mercado. Eles possuíram sua própria lógica.

Entretanto, segundo Marx (1971: 84): “No valor de troca, o vínculo social entre as pessoas se transforma na relação social entre as coisas; a capacidade pessoal em uma capacidade das coisas”.
Este estranhamento de si próprio, este não reconhecimento da auto-possibilidade e essa transferência de potência para as coisas, os objetos, as máquinas etc. Representam a estrutura básica do processo de alienação humana. A inversão da relação sujeito e objeto e a opacidade das relações sociais daí advindas são fatores adversos às possibilidade de qualificação humana.

Segundo Lukacs (1978: 8): “(…) o sujeito no processo global do trabalho não está em condições de ver todos os condicionamentos da própria atividade, nem de todas as suas consequências”.
Se assim é verdade, como fica a definição de Freyssenet? É o próprio Lukacs que lembra que tais limitações não impedem que os homens atuem e se aperfeiçoem, pois se, de um lado, não é possível dominar o conjunto das circunstâncias, é na busca da superação possível que o trabalho realiza sua dimensão ontológica.

Formação politécnica exige a compreensão teórica e prática das bases da ciência
O horizonte da polivalência dos trabalhadores está sendo colocado pela aplicação das tecnologias emergentes e tem sido interpretado como o novo em matéria de qualificação. Já a questão da politécnica se inscreve na perspectiva de continuidade e irruptura com relação a polivalência e se apresenta como novíssimo.

Polivalência significa simplesmente um trabalho mais variado com uma certa abertura quanto à possibilidade de administração do tempo pelo trabalhador e não importa necessariamente mudança qualitativa das tarefas. Representa nada mais que uma racionalidade formalista com fins instrumentais e pragmáticos calcada no princípio positivista de soma das partes. Não significa obrigatoriamente intelectualização do trabalho tratando-se de equipamentos complexos. É suficiente, para ser um trabalhador polivalente, o recurso aos conhecimentos empíricos disponíveis, permanecendo a ciência como algo que lhe é exterior e estranho.

Politecnia representa o domínio da técnica em nível intelectual e a possibilidade de um trabalho flexível com a recomposição de tarefas em nível criativo. Supõe a ultrapassagem de um conhecimento meramente empírico, ao requerer o recurso a formas de elementos mais abstratas. Vai além de uma formação simplesmente técnica ao pressupor um perfil amplo de trabalhador, consciente, e capaz de atuar criticamente em atividades de caráter criador e de buscar com a autonomia os conhecimento necessários ao seu progressivo aperfeiçoamento.

A polivalência se apóia no uso cientificista da ciência sujeitando o conhecimento à mera instrumentação utilitarista e o trabalhador a processos de adaptação definidos por regras prescritas com anterioridade. O saber vivo do trabalho é acampado pela lógica conceitual formalista, que o sintetiza, codifica e o congela ao transformá-lo em softwares, a mais novas expressão do trabalho morto.

Para uma formação politécnica é necessária a compreensão teórico-prática das bases da ciências contemporâneas, principalmente seus conceitos, princípios e leis fundamentais e relativamente estáveis; dos princípios tecnológicos que expressam o uso da ciência no emprego de materiais, métodos e meios de trabalho e dos princípios da organização do trabalho e da gestão social e suas formas nas diversas esferas da vida humana.

Quanto ao tipo de habilidades e hábitos requeridos numa atividade prática de caráter polivalente, estes se apresentam com certas características específicas, básicas para uma qualificação politécnica, ainda que insuficientes, tais como: saber transferir e usar, de forma versátil, conhecimentos e experiências em diferentes oportunidades e situações; saber manipular os instrumentos básicos úteis a um leque amplo de tarefas, cuja expressão cada vez mais banal é a familiaridade com as operações em computadores e saber trabalhar em equipes, o que pressupõe hábitos de organização pessoal e habilidades de comunicação diferenciadas. Condições como estas, quando se trata de um trabalho polivalente, tem muito mais um caráter criativo que reprodutivo, mais geral que específico, mais mental que físico, mais teórico que prático, se comparadas com as atividades taylorizadas e fordistas. Mas frente às necessidades de uma qualificação politécnica passam para o pólo oposto.

Os requisitos de habilidades e hábitos acima se politecnizam quando associados a outros requerimentos e práticas requalificadoras, que exigem a união da destreza e do fazer com a inteligência e o pensar, num nível superior. Isto pressupõe que os trabalhadores sejam capazes de identificar os problemas a solucionar e as condições existentes, analisando os dados disponíveis, tendo em vista a busca de soluções, com a sua efetiva objetivização, mesmo que para tal seja necessário saber re-aglutinar e reestruturar informações recorrendo-se à invenções. A transferibilidade de conhecimentos e experiências, neste caso, exige habilidades genéricas capazes de dar conta da relação entre as partes e o todo, com domínio de linguagem apropriadas e procedimentos técnico-científicos, de forma a capacitar para o discernimento crítico e a avaliação, bases fundamentais para o saber orientar-se no atual sistema de informações.

Reestruturação total do ensino e da formação básica nos cursos que profissionalizam
Este saber orientar-se envolve requisitos também comportamentais, não só de relação com o trabalho, a técnica, mas também com o mundo. Para um trabalhador polivalente já se colocam requerimentos como: abertura, adaptação às mudanças, possibilidade de lidar com regras e normas em situações diferentes, curiosidade, vontade de aprender, motivação, iniciativa, atenção, responsabilidade etc. No caso de uma qualificação politécnica, estas exigências se redefinem com a incorporação de ingredientes como: discernimento e julgamento crítico; compreensão dos determinantes sociais, econômicos e políticos das ações a serem empreendidas; independência na avaliação das implicações das intervenções humanas frente a outras alternativas e finalidades, e criatividade no enfrentamento das contradições.

A construção de um saber polivalente depende de educação básica, mas sem que seja necessária uma grande revolução na escola. Na verdade, o trabalhador polivalente se faz no trabalho, mas com algumas inovações na organização do processo do trabalho, de tal forma a representar uma certa atualização do treinamento em serviço. Com a diminuição dos níveis hierárquicos, a necessidade de intercambiabilidade dos trabalhadores e a simplificação de muitas tarefas, ocorre uma espécie de nivelação, restringindo-se o desafio do treinamento para certos aspectos considerados básicos.
O saber politécnico, entretanto, pressupõe uma total reestruturação do ensino geral básico e da formação básica nos cursos que profissionalizam, sem o que se inviabiliza a possibilidade de autonomia necessária à educação continuada e à qualificação de tipo novo como a definida por Freyssenet no início desta exposição.

Finalmente, é necessário esclarecer que embora a qualificação polivalente represente um avanço frente às formas taylorizadas e fordistas anteriores, ela representa apenas um avanço relativo. A ciência ainda permanece monopólio do capital e este cuida de reajustar – através de processos de flexibilização funcional, simplificação das etapas de produção, condensação da estrutura de tempo, gestão participativa etc. – sua estratégia de compatibilização do avanço das forças produtivas sem que sejam rompidos os limites estruturais impostos pelas suas relações sociais de produção.
A formação politécnica pressupõe a plena expansão do indivíduo humano e se insere dentro de um projeto de desenvolvimento social de ampliação dos processos de socialização, não se restringindo ao imediatismo do mercado de trabalho. Ela guarda relação com as potencialidades libertadoras do desenvolvimento de forças produtivas assim como com a negação da negação destas potencialidades pelo capitalismo. Se ela está no horizonte histórico, é o próprio capital enquanto uma contradição em processo é que dirá, bem como a capacidade de luta dos trabalhadores pela sua emancipação.
A politecnia só tem sentido se a incluímos dentro deste contexto, pois se o capital desperta para a vida todos os poderes da ciência, da natureza, da cooperação e do intercâmbio, ele o faz subordinando o trabalho, dispensando-o cada vez mais através da adoção cada vez maior de trabalho objetivado, sem que se crie simultaneamente uma sociedade superior e de libertação do homem em toda sua plenitude.

*  Professora da Faculdade de Educação/UFMG.

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EDIÇÃO 23, NOV/DEZ/JAN, 1991-1992, PÁGINAS 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48