Há muitas décadas existe tendência generalizada de se pensar que o problema fundamental da filosofia – a dialética do ser e do pensamento, da matéria e da idéia – já foi totalmente resolvido. Chega-se mesmo à situação em que muitos pensadores marxistas e cientistas progressistas dedicam-se simplesmente a aplicar mecanicamente as soluções (geniais) dos grandes mestres do marxismo. Tudo leva a supor que atravessamos uma época de aplicações e não de feroz luta ideológica.

Em minha opinião, cada campo de estudo concreto, se quer ser verdadeiramente científico, deveria se colocar novamente o problema da dialética do ser e do pensamento de acordo com as peculiaridades específicas de seu objeto de estudo. E, segundo os resultados da solução deste problema fundamental, e em concordância com as linhas gerais e doutrinárias do marxismo, se poderá comprovar quem está do lado materialista e quem está do lado idealista.

Por outro lado, hoje é muito difícil encontrar algum trabalho científico onde o materialismo (ou o idealismo) tenha sido aplicado consequentemente de cabo a rabo. Assim como o idealismo é constantemente reproduzido pelas atuais condições de existência e pela feroz agressão ideológica do capitalismo, também o materialismo, por ser uma doutrina que se encontra estreitamente ligada ao processo da ciência, constantemente persuade a muitos pesquisadores, de tendências idealistas, a absorver numerosos axiomas materialistas que são, em última instância, os únicos pontos resgatáveis de seus alfarrábios teóricos. Numa palavra, na atualidade os trabalhos científicos estão denominados pelo ecletismo.

É muito importante compreender, então, que a pureza doutrinária de uma investigação e sua respectiva exposição é pouco frequente na história do pensamento científico e muito menos ainda na história do pensamento estético. E na atualidade, quando a agudização da luta de classes penetra na vida diária de milhões de homens (envolvendo, assim, em uma batalha planetária toda a humanidade), a situação é mais dramática.

Não é por outra razão que os grandes materialistas da história são grandes: precisamente porque levaram até as últimas consequências seu ponto de vista materialista e não se deixaram iludir pela teia de aranha do idealismo. Uma teia de aranha que penetra sutilmente nos inocentes cérebros desguarnecidos de muitos pesquisadores honestos, mas sem consciência da milenar e multilateral luta entre o idealismo e o materialismo. As contradições continuam em todas as frentes e se tornaram mais agudas ainda, penetraram na vida cotidiana de toda a humanidade já que os meios de comunicação de massa substituíram os conceitos por clichês e rótulos. Deste modo, o conteúdo da palavra tem sido desvalorizado drasticamente e ao homem comum e corrente, ao qual se somam os cientistas e pesquisadores que se acreditam “apolíticos”, não resta outro remédio senão encarar a realidade através do ponto de vista constantemente imposto pelos meios de comunicação de massa e pelos ideólogos burgueses por eles patrocinados. Ante tal agressão ideológica, acreditamos ser uma necessidade impostergável encontrar uma solução radical para esta histórica luta, começando pelo levantamento das contradições internas que trazemos em nós mesmos, questionando os possíveis resíduos idealistas que foram se incutindo em nós devido à constante agressão ideológica da qual dificilmente alguém consegue escapar.

Este trabalho trata de trazer à luz alguns problemas com que me defrontei no transcurso de uma demorada pesquisa sobre a linguagem cinematográfica e os problemas estéticos que derivam deste meio de expressão:

1- A necessidade de resolver, doutrinariamente, o problema da dialética do ser e do pensamento no campo específico da teoria cinematográfica.
2- A necessidade de explorar, dentro da consciência individual, a luta interna que se dá entre a tendência idealista e a tendência materialista, no seio da consciência de um sujeito concreto.

“Conjunto de indivíduos concretos e reais são os atores verdadeiros do drama revolucionário”.

Ao revisar toda a bibliografia que estava a meu alcance, surpreendi-me ao constatar que teóricos ideologicamente tão opostos como o idealista Jean Miltry e o materialista Umberto Barcaro, embora divergindo em certos tópicos da estética cinematográfica, concordavam em muitos aspectos capitais da natureza da linguagem cinematográfica. Esta concordância chamou a minha atenção, e iniciei um processo de indagação sobre o porquê da existência de tantos lugares comuns entre teóricos tão opostos. Pensei inicialmente que estas idéias provinham de uma fonte comum, porém minha procura foi vã.

Após este processo de revisão, bastante prolixo, cheguei à conclusão de que em nenhum caso os teóricos do cinema haviam enfrentado diretamente o espinhoso problema da relação entre a matéria cinematográfica e a reflexão (ou idéia) cinematográfica. Todos partiram do pressuposto de que a imagem cinematográfica tinha uma estrutura dada, mas ninguém tentou esquadrinhar sua estrutura material intrínseca, e as formas primárias de como esta estrutura material comunicava um movimento visual; simplesmente se limitaram a repetir manuais escolares de física básica e sobre esta ridícula base iniciavam suas “grandes” especulações em torno da estética da imagem cinematográfica.

Por outro lado, o problema da criação e criatividade artística me levou a indagar sobre as peculiaridades da consciência individual, uma vez que o fator ativo de uma criação artística é o indivíduo concreto e real que se defronta com a resistência que lhe opõe o material a ser modelado. Mas o problema da consciência individual se colocou, inicialmente, em contradição com o modo generalizado e unilateral de concepção da consciência individual como um produto passivo da sociedade.

Este modo de conceber a consciência individual induziu várias gerações de estetas e teóricos da arte a considerar o artista como um ente passivo, como um mero instrumento que a sociedade, como um todo abstrato, maneja de forma caprichosa lhe concedendo benevolamente o direito de chamar-se de artista, pelo simples fato de ter sido treinado em certos ofícios, que lhe dão o privilégio de criar certos objetos artísticos. Assim, foram deixados de lado inumeráveis problemas inerentes à individualidade (não individualismo) do homem cotidiano, tirando o solo à sociedade concreta e real; porque uma sociedade é, queiramos ou não, um conjunto de indivíduos concretos e reais que, em última instância, são os atores verdadeiros (protagonistas e antagonistas) do drama das mudanças revolucionárias.

“Considerar a matéria como ponto de partida da estética e da teoria da arte”.

Em um breve ensaio, publicado na Revista Peruana de Cultura, David Sobrevilla caracteriza nosso tempo como uma época de ruptura “entre a imagem do mundo que nos oferecem a ciência e a filosofia e a realidade em que vivemos”, um mundo onde o fantasmagórico prevalece, afastando-nos da compreensão cabal de nossa realidade. Esta verdade, que podemos constatar no continuum de nossa vida cotidiana, não é mais que a manifestação de uma sociedade que agoniza e arrasta consigo um universo de uma “pseudo-concreção” (Kosik, K.) que encobre a natureza absurda e irracional de um sistema sócio-econômico totalmente esgotado e a-histórico.

Nesse contexto social – excelente caldo de cultura para o ressurgimento de todo tipo de concepções idealistas – é muito fácil compreender a alarmante profusão de pesudo-teorias que invadem todos os campos do saber humano; concepções que desconsideram a básica e fundamental relação do homem com a natureza e sua realidade social através da práxis; ou seja, a unidade da observação, interpretação e a transformação da natureza, da sociedade e do próprio homem mediado pelo trabalho humano.

Este fato acontece com particular força no campo da estética e da teoria da arte. Nesse sentido é importante que nos aproximemos do problema estético com uma atitude profundamente científica, com uma atitude que não tema desprezar os prejulgamentos criados por uma estética que tem desconsiderado a certeza de nossa sensitividade e da materialidade do objeto artístico.

Com toda razão afirma R. Arnheim que na atualidade “(…) temos desentendido o dom de ver as coisas através de nossos sentidos. O conceito aparece divorciado da percepção, e o pensamento se move entre abstrações. Nossos olhos ficaram reduzidos a instrumentos de identificação e mediação, por isso padecemos de uma escassez de idéias susceptíveis de serem expressas em imagens e uma incapacidade de descobrir significações no que vemos” (Arnheim, 1979, p. 13). Mas se nos atermos a apenas esta questão, corremos o risco de cair no velho sensorialismo da ilustração burguesa, posto que a essência da questão está na relação entre o real e sua conceptualização.

Enquanto para os empirocriticistas a percepção sensorial é um muro que nos impede de tomar contato com o real; para os materialistas é uma via segura que permite que nos relacionemos adequadamente com essa realidade objetiva dentro da qual nos movemos. Esta última atitude é um dos aspectos fundamentais da concepção materialista, em oposição à qual tem renascido uma série de correntes idealistas. Um idealismo que toma como pretexto um fato bastante simples, ou seja: se nós, como sujeitos, percebemos os objetos como se fossem uma espécie de tecido discreto do continuum real, significa que o real (inexoravelmente contínuo do ponto de vista macroscópico) não pode ser apreendido pelo sujeito tal como é realmente, a não ser que nós reconstruamos, a partir do tecido discreto que nos oferecem nossos sentidos, o continuum real por intermédio de uma atividade subjetiva que preencha os vazios deixados por nossa “imperfeita” percepção das coisas. E concluem: se nossos sentidos não podem captar o real em sua verdadeira dimensão, somos nós (como sujeitos que pretendemos apreender o real) os que criamos a realidade a partir de nossa subjetividade.

Esta é, por exemplo, a posição de Jean Mitry ao afirmar: “(…) o objeto está constituído pela soma se sensações múltiplas referidas a uma mesma estrutura, a um mesmo ‘conjunto’. É um grupo de sensações ‘objetivadas’ sobre um ser idêntico considerado como sujeito ou causa”. Para retomar a expressão de Bradley continua Mitry, “o objeto é conteúdo ideal de um conjunto de percepções” (Mitry, 1978, vol. I, p. 121). Adiante, mais explicitamente nos diz: “O real percebido é a forma de nossa percepção, que está determinada, ou seja, ‘demarcada e limitada’ por nosso nível sensorial. Perceber é construir um mundo, ter consciência dele, é constituir esse mundo como objeto”. Portanto, segue afirmando Mitry, “o objeto não engendra nenhum dado sensível, são os dados sensíveis que engendram o objeto” (Op. Cit. p. 228).

“Doutrina de Mach das coisas como complexo de sensações é puro idealismo subjetivo”.

Já sabemos até onde nos leva esta concepção. Ela trata de insinuar que nossos sentidos não são confiáveis, portanto, força-nos a bloquear radicalmente a única via primária e básica de nos relacionarmos com a natureza e a realidade social em que vivemos. Dessa maneira, trata de nos “desconectar” do real para dar lugar a um mundo ideal cujo único ponto de contato com a realidade é um mundo estruturado pelo EU elaborador de todas as coisas. Este princípio radicalmente idealista nos induz a uma aproximação da materialidade do objeto artístico com inumeráveis prejulgamentos, sobretudo quanto à sua existência objetiva.

Sem negá-la explicitamente, escamoteia-a, acrescentando que a esteticidade do objeto artístico transcende a sua materialidade. Logo, uma aproximação válida ao estético deve prescindir de todo substrato material e concentrar-se somente na “artisticidade” do objeto de arte.
Para verificar esta contraposição, analisemos sumariamente a categoria fundamental da semiótica: o signo, e como ele é caracterizado diferentemente por essas duas tendências.

Para Pierre Guiraud, “um signo é um estímulo – ou seja, uma substância sensível –, cuja imagem mental está associada em nosso espírito à imagem de outro estímulo que esse signo tem por função evocar com o objetivo de estabelecer uma comunicação” (La Semiologia, p. 33). Por outro lado, Roland Barthes afirma: “o signo é pois composto de um significante e de um significado. O plano dos significantes constitui o plano da expressão e dos significados, o plano do conteúdo” (La Semiologia, Comunicações, p. 32). Os dois autores, e em geral toda a escola semiótica da Europa Continental do Ocidente, remetem explicitamente a Saussure, para quem o signo é “(…) a combinação do conceito e da imagem acústica” (Curso de Linguística Geral, p. 139) ***. Imediatamente vimos que a grande ausente de todas estas definições é… a matéria!

Alguém poderá dizer que Pierre Guiraud fala de um estímulo, de uma substância sensível etc. E que Saussure estabelece uma relação entre o conceito e a imagem acústica, que seria o mesmo que dizer entre o conceito e a matéria. Não obstante, estes princípios não são mais que novos modos de expressar a velha máxima de Berkeley “Esse est percipi aut percipere” ****.

Vale a pena pois lembrar, ainda que rapidamente, como Lênin refutou todos os argumentos da “única filosofia científica” que apregoavam Mach, Avenarius, Lunacharsky & cia. No capítulo I de seu Materialismo e Empiriocriticismo, relativo às sensações e complexos de sensações, Lênin afirma: “O que temos que assinalar é que Mach reconhece aqui explicitamente que as coisas ou corpos são complexos de sensações” (p. 24); e mais adiante continua: “(…) nenhum subterfúgio, nenhum sofisma (…) poderá ocultar o fato claro e indiscutível de que a doutrina de E. Mach sobre as coisas como complexo de sensações é idealismo subjetivo, é simplesmente ruminar o berkeleísmo. Se os corpos são “complexos de sensações”, como disse Mach ou “combinações de sensações”, como afirma Berkeley, disto se reduz necessariamente que todo mundo não é senão munha representação. Partindo de tal premissa, não se pode deduzir a existência de mais que um só homem; isto é solipsismo puro” (p. 25).

Por isto, para o materialista Resnikov, “o signo é um objeto (fenômeno ou ação) material, percebido sensorialmente, que intervém no processos cognitivos e comunicativos, representando ou substituindo um outro objeto (ou objetos)”. E Yure Lotman afirma por sua vez: “o signo é uma substituição material dos objetos, fenômenos e conceitos, com a qual facilita o intercâmbio de informação na sociedade” (Lotman, 1979, p. 8) ( Os grifos são nossos).

A diferença é evidente: para os idealistas, o signo é uma referência que vai além de sua própria natureza física. Por isso, negam-no como ente material; ao ser transcendido por sua função puramente sígnica, a existência do signo como tal já não lhes interessa mais que por sua função comunicativa e/ou gnosiológica, marginalizando a existência do real e objetiva do signo como objeto material. Para os materialistas, ao contrário, o signo é a encarnação objetiva e material de um valor sígnico diferente de sua própria materialidade. “Por conseguinte – afirma Resnikov –, o signo é um objeto material, mas um objetivo material que se reflete no cérebro sobre a forma sensível do signo. O signo material (1) é um elemento primário, enquanto sua imagem é um elemento secundário” (Resnikov, 1970, p.16).

Isso nos remete então a uma dialética entre a materialidade do signo – elemento primário – e sua forma expressiva – elemento secundário. A dialética entre fisicalidade do signo e o signo propriamente dito não foi ainda explanada, apesar de que essa vertente configura um campo fecundo para o estudo das artes. A partir dela, a especificidade de qualquer arte já não se manisfesta tão somente como um conglomerado de formas expressivas delimitadas em função de outros meios artísticos e demarcadas exteriormente. Com ela, o gênero artístico específico é colocado como uma unidade dialética entre a fisicalidade do signo e sua expressão, e as formas próprias do meio se desenvolvem segundo a dinâmica interna que manifesta essa contradição.

“Entre linguística e semiótica existem certas diferenças não identificadas”.

O pesquisador peruano Juan Acha nos oferece um brilhante exemplo de fecundidade dessa questão quando aplica especificamente na análise estética latino-americana e, particularmente, quando se volta para as estruturas visuais da arte latino-americana; “(…)Devem servir de ponto de partida – diz Acha – a materialidade dos objetos e as noções tradicionais de cada gênero destas artes. Por conseguinte, nos cabe situar os produtos artísticos num mundo de objetos e comprá-los com os científicos e tecnológicos à luz de suas respectivas materialidades. Nessa comparação verificaremos que nem todos os produtos são tangíveis e que não existem objetos puramente artísticos, científicos e tecnológicos. Em todo o ato e obra humana coexistem estruturas ou relações artísticas, científicas e tecnológicas. Isto quer dizer que todo o ato ou obra humana reflete o homem” (Acha, 1979, p. 15).

Esta maneira de propor o problema tem a vantagem de devolver à estética e à teoria da arte essa multiplicidade perdida através de inumeráveis sedimentações teóricas que têm buscado em vão manejar a pureza de um “belo” absolutamente abstrato e infinitamente distanciado do real concreto. Assim, o “belo”, como substância do estético, aparece totalmente desligado de suas mediações básicas (ética, gnosiológica, valorativa e política) e de suas formas concretas e específicas de existência objetiva, determinadas pelas qualidades de seu suporte físico correspondente.

Quando falamos da materialidade do signo, o que na verdade fazemos é deslocar o problema fundamental gnosiológico (a dialética do ser e do pensar) para o plano específico dos signos, como uma forma de dar o primeiro passo para um modo materialista de enfrentar os problemas fundamentais da teoria da arte (2).

Se perguntarmos, por exemplo, qual o centro de atenção de Lênin quando desenvolve a polêmica contra os machistas em seu Materialismo e Empiriocriticismo, com certeza a resposta seria: contrapor à interpretação idealista de Mach e seus seguidores a concepção materialista do mundo. Mas para conseguir tornar efetiva essa luta e vencer a estes berkelianos, Lênin teve que responder multilateralmente a todas as armadilhas idealistas que seus adversários colocavam em torno do problema gnosiológico fundamental: a primazia da matéria sobre a idéia do papel das sensações na relação entre o ser e o pensar. E embora Lênin dedique boa parte de seu célebre trabalho ao papel que representam os signos na relação gnosiológica entre o ser e o pensar (veja-se por exemplo A teoria dos símbolos – ou hieróglifos – e a crítica de Helmhotz), quando transferimos o centro de nossas preocupações para a esfera dos signos, o problema filosófico fundamental toma uma matiz diferente.

Assim se o plano gnosiológico a polêmica relativa ao signo se centra na Função Mediadora do signo entre O Real e o Ideal, na dialética do signo propriamente dito, o núcleo problemático se transfere: por um lado, dada a natureza social do signo (Campo da semiótica atual) e, por outro, devido às relações que existem entre materialidade e signo e suas formas sígnicas de manifestação. Vale dizer: se bem que do ponto de vista gnosiológico a importância do signo se centraliza em sua função mediadora entre a realidade e o conhecimento desta realidade, do ponto de vista semiótico e da teoria da arte a análise do signo se concentra em sua natureza e nas diversas formas sensíveis de manifestação. Destas duas grandes conotações que o signo possui, interessa à teoria da arte, em primeiro lugar, a natureza do signo e as formas sensíveis que este apresenta, posto que a arte é por antonomásia, criadora de novos significados e não um mero recriador ou atualizador de um conjunto sistemático de signos.

“Signo como totalidade material deve ser considerado como ponto de partida da semiótica”.

Assim, entre a linguística (disciplina que serviu de fonte metodológica e conceptual para a semiótica da Europa Continental do Ocidente) e a semiótica existem certas diferenças metodológicas de princípios que não foram suficientemente identificadas e, por isso, esta última disciplina carrega sobre seus ombros, como pecado original, muitas deficiências metodológicas e conceptuais pertinentes de assinalar aqui.

Se comparamos, por exemplo, a linguagem e sua clássica divisão saussuriana (langue/parole) com qualquer meio artístico, veremos que todo o fato artístico se distancia totalmente do que Saussure qualificou uma vez como “linguística da língua” (em contraposição a uma linguística da fala”), porque o fato artístico é sobretudo criação que se encontra em permanente contradição frente a tudo aquilo que signifique sistema ou totalidade fechada. E se a língua é, como disse R. Barthes: “(…) ao mesmo tempo uma instituição social e um sistema de valores, como instituição social não é em absoluto um ato, escapa a toda premeditação; e a parte social da linguagem, o indivíduo não pode por si só, nem criá-la, nem modificá-la (…)”. Por outro lado, “a fala é um ato individual de seleção e atualização, está constituída em primeiro lugar pelas combinações mediante as quais o sujeito falante pode utilizar o código da língua com o fim de expressar seu pensamento pessoal” ( Barthes, 1972, p. 18-19). Nota-se claramente que a arte se aproxima mais ao que Saussure classificou como “linguística da fala”, do que da linguística da língua”.

O mais grave é que a semiótica ou, para ser mais justo, a semiologia (3) ***** tomou como uma fonte fundamental a linguística saussuriana sem criticar a fundo seu sistema dualista, baseado na dicotomia língua/fala e, ao passar ao largo desta desagregação abstrata da linguagem, não se acautelou ou não quis acautelar-se, de que esta era uma separação, de fato, entre a matéria e a idéia, entre a massa heteróclita e concreta que representa a fala (la parole) em oposição à língua (la langue), que é uma abstração deste fato cotidiano e multilateral (4).

Por isso os próprios colegas de Saussure foram suficientemente cautelosos para não tomar como princípio universal a divisão proposta pelo célebre genebrino (5) e essa cautela se deve fundamentalmente a que uma ciência – linguística – deixaria de ser uma disciplina científica se perdesse contato com o objetivo – a linguagem e suas manifestações concretas (la parole) – à qual deve sua própria existência. E é aqui que reside o verdadeiro drama existencial da semiótica: com essa demonstrada incapacidade metodológica de reconhecer seu objeto concreto de estudo, jamais dará um passo positivo para uma interpretação séria e científica sobre a natureza dos signos precisamente porque se nega obstinadamente a reconhecer que seu objeto – o signo – é, em primeiro lugar, um objeto concreto e material que existe fora de nossa consciência e, em segundo lugar, que um objeto material significa algo diferente de seu próprio conteúdo material, o qual, apesar disso, se configura nele, apelando às características sensíveis dessa materialidade. Neste sentido, o signo – reconhecido como uma totalidade material – deve ser considerado como verdadeiro ponto de partida da disciplina semiótica. Estas objeções que fazemos ao ponto de partida da semiótica e que expusemos sucintamente não obedecem a motivos puramente doutrinário, mas sim a exigência científica, a uma necessidade imperativa de dotar a semiótica dos instrumentos indispensáveis para que essa disciplina supere de uma vez e para sempre a marca escolástica que carrega.

Exigência científica que alcança também os semióticos que, sem negar a existência material do signo, deslizam e flertam constantemente com o idealismo. É o caso concreto de Resnikov cuja posição – como vimos – é bastante clara com relação ao caráter material do signo; não obstante, ao avançar sua exposição, comete um grave erro de princípio, porque desdenha a indiscutível fronteira que existe entre a materialidade do signo e o significado que este comporta. Assim: “No processo comunicativo” – afirma Resnikov – “o signo intervém ora como objeto material ora como imagem psíquica (nota-se a colocação dualista que, por outro lado, já havíamos assinalado com seu impróprio termo ‘signo material’), porque é certo que, por um lado, a comunicabilidade exige o objeto material como meio de comunicação, por outro, aquela seria impossível sem o reflexo de tal meio na consciência de quem participa do processo comunicativo (…) Estes processos estão intimamente relacionados entre si, já que a imagem sensível do signo se forma na base do funcionamento do (sic) signo material no processo comunicativo. Isto põe em evidência que nos processos cognitivos e comunicativos (atenção!) é errado contrapor signo material e imagem sensível do signo. (Resnokov, opus cit., p. 16) (o grifo é nosso).

Se nosso objeto específico de análise é o signo e partirmos da premissa materialista de que o signo é um objeto que existe fora da nossa consciência e tomamos a imagem sensível deste como um reflexo ideal desse objeto, então identificar as possibilidades reais do veículo material com suas manifestações sensíveis é cair no que Engels denominou bazófia eclética.

Este tem sido, e é ainda, o equívoco mais grave de toda a semiótica contemporânea, erro crasso do qual não puderam subtrair-se nem sequer aqueles cientistas que, como Resnikov, manifestam tendências materialistas e que avaliam corretamente o papel gnosiológico dos signos em sua condição de mediadores entre a realidade e o pensamento. Também eles resvalam no limo idealista quando tentam caracterizar a natureza específica do signo.

Se bem que a semiótica (em seu estágio atual) pode facilmente diluir nossas objeções apenas aduzindo que a função do signo é fundamentalmente comunicar idéias por meio de mensagens (Guiraud) – coisa que nunca pusemos em discussão – e, portanto, seu objeto de estudo pode esgotar-se na análise do comportamento dos sistemas de signos no seio da sociedade (Saussure); quando nos deslocamos para o campo da criação artística, aquelas exigências expostas anteriormente se convertem agora em pré-requisitos básicos para compreender a partir da filosofia materialista o processo da criação e criatividade estéticas.

* Peruano, cineasta, já publicou “Cineramas”, Lima, 1992.

** Devido ao seu tamanho este artigo será publicado em três partes. O original em espanhol foi traduzido por Maria Lourdes Motter, professora da ECA-USP e por Roseli Fígaro, jornalista e mestranda na ECA-USP.

*** Ferdinand Saussure (Genebra, 1857-1913). A obra Curso de Linguística Geral foi publicada em 1916, por seus alunos Charles Bally e Albert Sechehaye, a partir de compilações de anotações de suas aulas. A contribuição de Saussure foi retirar a linguística do “círculo relativamente estreito do estudo das línguas naturais” (COELHO NETO, J. T., 1980, p. 17). Sua assertiva língua/fala será o pé do estruturalismo, que influenciou a linguística de Hjelmslev, a antropologia de Claude Levi-Strauss e a psicanálise de Lacan. No entanto, com a visão puramente sincrônica da linguagem, Saussure reduziu o linguista a um filólogo, pois não estudou a língua no discurso (viva), mas como corpus cristalizado, morto. (MARCELLESI & GARDIN, 1976, p. 107-8). Ou seja, a língua é um corpo vivo, expressão das relações sociais; é um sistema sincrônico e diacrônico, suas relações devem ser estudadas no decorrer do tempo histórico, também como manifestação concreta da consciência social, como produto ideológico das relações sociais. Mas, sem dúvida, a grande e inovadora contribuição de Saussure foi a de elevar o estudo da linguagem aos mais diferentes campos e domínios da comunicação (Nota dos tradutores).

**** “(…) a realidade, o ser, se reduz à percepção que dele temos (esse et percipi)”. CORBISIER, R. 1987, p. 138 (Nota dos tradutores).
***** Charles Sanders Peirce (Massachusetts, 1839-1914), fundador do movimento pragmático norte-americano, baseou os fundamentos de sua obra nas concepções filosóficas de Kant. Em vida publicou apenas alguns artigos. Sua obra foi divulgada postumamente pela Harvard University Press, entre 1931 e 1935. Suas idéias vão dar origem a uma filosofia das significações, chamada de semiótica, ou doutrina formal dos signos. Para Peirce, “um signo, ou um representamento é algo que sob certo aspecto ou de algum modo representa alguma coisa para alguém, dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um signo melhor desenvolvido”. (SCHAFF, A. Semiótica e Filosofia, p. 93) (Nota dos Tradutores).

Bibliografia
ACHA, Juan. Arte y sociedad, Latinoamerica (El producto artístico y su Estructura), México, Fondo de Cultura Económica, 1981.
ARNHEIM, Rudolf. Arte y percepción visual (Psicologia del ojo reador), nueva versión, Madrid, Alianza Editorial, 1979.
BARTHES, R. La semiologia, Buenos Aires, Tiempo Contemporáneo (Coleción Comunicaciones), 1972.
GUIRAUD, P. La semiologia, Buenos Aires, Siglo XXI S/A, 1974.
LÊNIN, V. I. Materialismo y empiriocriticismo, Obras Escogidas, Vol. IV, Moscou, Editorial Progresso, 1976.
LOTMAN, Yuri. Estética y Semiótica del Cine, Barcelona, Gustavo Gilli, 1979.
MALMBERG, Bertil. Los nuevos caminos de la Linguística, México, Siglo Veintiuno Editores S/A, 1974.
MARTINET, André. Elementos de Linguística General, Madrid, Gredos, 1974.
MITRY, Jean. Estética y psicologia del cine: las estructuras, Madrid, Siglo Veintiuno S/A, 1978.
RESNIKOV. Semiótica y teoria del conocimiento, Madrid, Alberto Corazón, 1970.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística General, Buenos Aires, Losada S/A, 1974.
SOBREVILLA, David. “Sobre el carácter irreal de la época contemporánea”, in Revista Peruana de Cultura, segunda época, n. 1, Lima, Instituto Nacional de Cultura, 1982.
ZIS, A. Fundamentos de la estética marxista, Moscou, Editorial Progresso, 1976.

Notas

(1) Falar de signo material não é apropriado neste caso, porque nos induz a interpretar o fato sígnico como um processo dual; trata-se, agora, de estabelecer a unidade material e ideal contida no signo. Para ele é possível dizer “materialidade ou fisicalidade do signo” ao invés de “signo material”.
(2) Há que se ter presente que a estética e a teoria da arte não se superpõem totalmente, “(…) a interpretação artística do mundo é mais ampla que a arte, posto que compreende não só a criação artística, mas também a atitude estética do homem frente à realidade” (A. ZIS, 1976, p. 6).
(3) O termo semiótica provém da escola anglo-saxônica de base lógico-filosófica ou, mais precisamente, de uma raiz conductista; por outro lado, a semiologia se liga diretamente à escola da Europa continental de base linguística.
(4) O próprio Saussure estava perfeitamente consciente de que esta diferenciação provinha de uma urgente necessidade de focalizar a linguagem sob uma ótica distinta da que prevalecia na linguística comparativa, como uma necessidade de definir o objeto de estudo de uma linguística propriamente diacrônica e, portanto, como uma delimitação do concreto justificada somente na medida em que se poderia delimitar, através dessa separação abstrata de linguagem, com uma precisão maior, seu objeto de estudo e à margem de todas as implicações gnosiológicas que derivariam posteriormente da raiz da famosa dicotomia langue/parole pressuposta por Saussure; por isso Bertil Malmberg afirmou enfaticamente: “(…) Saussure não pretendeu abordar o problema das relações entre a linguagem e a realidade” (MALMBERG, 1974, p. 49).
(5) “Esta distinção, muito útil entre língua e fala – afirma André Martinet –, pode levar a crer que a fala possui uma organização independente da organização da língua de maneira que se poderia, por exemplo, considerar a existência de uma linguística da fala ao lado de uma linguística da língua. Assim, é necessário convencer-se de que a fala não faz mais que concretizar a organização da língua. Só com o exame da fala e do comportamento que determina nos ouvintes pode-se alcançar um conhecimento da língua. Para consegui-lo será necessário que façamos abstração do que na fala é não linguístico, como o timbre de voz próprio de um indivíduo, ou seja, que não forma parte dos hábitos coletivos adquiridos durante a aprendizagem da língua” (MARTINET, 1974, p. 35).

EDIÇÃO 28, FEV/MAR/ABR, 1993, PÁGINAS 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68