Os setores produtivos e competitivos da agropecuária brasileira atuam com base em relações capitalistas, que em algumas áreas se encontram altamente avançadas. O atual volume de produção – cerca de 75 milhões de toneladas/ano de grão – demonstra que já existe no campo uma infra-estrutura capaz de abastecer o mercado de alimentos.

A existência de milhões de brasileiros que passam fome e não possuem condições mínimas de sobrevivência não se deve, portanto, à incapacidade de produção do setor agropecuário. Trata-se de um problema decorrente de um conjunto de fatores, entre os quais se destacam a má-distribuição da renda, o tipo de política salarial e um sistema capitalista dependente de capital estrangeiro. Em nosso país, 10% da população, os mais ricos, detêm 50% da renda nacional: e os 10% mais pobres, menos de 1%. Mais grave ainda é constatar que, entre os mais ricos, 5% detêm 31% da renda e 1% detém 12%. Quanto à política salarial, a orientação básica é a má-remuneração aos que têm a possibilidade de trabalhar, sendo o salário-mínimo de 65 dólares emblemático!

Na realidade, o problema da carestia e falta de alimentos decorre do sistema capitalista dependente predominante no país, que privilegia o mercado externo e é um dos maiores concentradores de renda do mundo. Como se diz nos círculos de estudiosos da nossa realidade agropecuária, o problema se situa “da porteira para fora” dos estabelecimentos (desde que se abstraia o tamanho da área que a porteira protege).

O campo brasileiro envolve uma atividade econômica expressiva e é um elemento importante na composição do PIB nacional. Desde 1947, quando se iniciou o cálculo das contas nacionais, até 1988, o aumento médio da produção agropecuária é da ordem de 3,5%, índice que superou o crescimento populacional, que correspondeu a 2,7% ao ano.

Apesar de continuar crescendo e ser um dos suportes básicos do processo de industrialização que ocorreu no país ao longo desse período, a agricultura passou a ter menos importância na formação da renda nacional, fenômeno indicador do surgimento de uma economia em que predomina o setor industrial, deixando o índice de 27%, relativo ao início da década de 1950, para atingir apenas 12%, em 1970, e em seguida 10%, nível em torno do qual se situa até hoje. Na última década (1983 a 1993), a agropecuária cresceu em média 4,5% ao ano, mais que nas anteriores, o que não deixa de ser um bom desempenho em meio à grave crise estrutural que a economia e outros setores do país vivem desde então e às inconstâncias climáticas.

A produção nacional de grãos ultrapassou 50 milhões de toneladas/ano em 1984 e se manteve crescente, com uma breve interrupção em 1990 e 1991, devido a problemas climáticos. A média anual de crescimento dá-se na ordem de 5%, em parte devido ao aumento da produtividade, cerca de 2,7% ao ano, e em parte devido à expansão da fronteira agrícola. A safra de 1993-94 bate novo recorde e permanece em torno de 75 milhões de toneladas/ano de grãos. Agregando-se a isso a produção de carnes, ovos e hortifrutícolas, tem-se uma situação em que cada brasileiro dispõe atualmente, para consumo, de mais de 1,5 kg de cereais/dia, o que representa um volume mais que suficiente.

“A agropecuária emprega 1,4 milhões de pessoas. Um terço é composto por mulheres e 3,7 milhões são crianças”.

O uso de modernos meios de produção, como máquinas, fertilizantes e defensivos agrícolas, é fundamental para a agropecuária. Em 1989 o setor agropecuário gastou com estes insumos básicos cerca de 10 bilhões de dólares americanos, destinados principalmente à compra de rações, fertilizantes e defensivos.

A atividade agropecuária emprega cerca de 14 milhões de pessoas, número correspondente a 25% da PEA, de acordo com dados de 1987. Nesse contingente as mulheres representam 1/3, e é de 3,7 milhões o número de crianças com menos de 15 anos.

A participação da produção agropecuária no comércio exterior é outro fator importante. Nosso país é tradicionalmente um exportador de grãos e carnes, e muito do nosso desenvolvimento agropecuário está subordinado ao mercado externo. De 1940 a 1970 a agroindústria foi responsável por aproximadamente 70% de nossa exportação, enviando para o exterior produtos in natura semi-elaborados e processados. Hoje esse índice é de apenas 30%.

A utilização de créditos, sobretudo na década de 1970, foi um dos elementos impulsionadores centrais da produção agropecuária. Devido aos fortes subsídios houve um verdadeiro boom na produção, o que resultou numa significativa expansão da fronteira agrícola.
A mão-de-obra predominante no campo é a do assalariado, e há mais de 10 milhões de empregados rurais submetidos a leoninas condições de trabalho.

Fertilizantes, defensivos, máquinas, créditos, exportação e salários são elementos centrais numa economia agrária capitalista. As relações de produção no campo brasileiro baseiam-se nesse sistema, e a economia é regulada pelas demandas do mercado nacional e estrangeiro e integrada no complexo nacional. O campo é um elemento fundamental nesse sistema, seja como produtor de alimentos a preços que contribuem para que a indústria mantenha baixos os seus salários, seja como libertador de contingentes expressivos de mão-de-obra do campo para a cidade, contribuindo decisivamente para a industrialização.

Como se processa o desenvolvimento capitalista no campo brasileiro?

No Brasil o desenvolvimento do campo dá-se de acordo com as leis mais gerais do capitalismo, e por isso é um processo concentrador de riquezas e socialmente excludente da mão-de-obra. O perfil fundiário do país é um dos mais injustos, pois um pequeno número de latifundiários concentra a absoluta maioria das terras, produtivas ou não.

“Apenas os grande produtores podem influir nas políticas agrícolas industriais”.

De acordo com os dados do INCRA de 1987, as propriedades de até 100 hectares representam 77,7% do total de propriedades existentes no país e ocupam apenas 14,27% de todo o território nacional. Já as propriedades de mais de 1.000 hectares representam apenas 1,83% do total e ocupam 56,9% do território.

Em decorrência dessa distribuição de terras, o uso de modernas tecnologias na produção e no gerenciamento de fazendas, o acesso ao crédito e a capacidade de influir na elaboração de políticas agrícolas do governo restringem-se aos grandes e, perifericamente, aos médios produtores rurais, condição que marginaliza os pequenos produtores e os leva à extinção.

A situação do campo brasileiro é de crise; a produção, embora expressiva, não é suficiente para abastecer o mercado; e os preços praticados, em relação ao poder aquisitivo das grandes camadas da população, são proibitivos.

O fim da política de créditos subsidiados; o processo de sucateamento de centros de pesquisa estatal, como a Embrapa; o ajuste do setor agropecuário às exigências do capital financeiro internacional por meio da implantação do chamado projeto neoliberal; e a profunda crise estrutural por que passa a nossa economia – todos esses fatores traçam um horizonte cinza para o progresso e o desenvolvimento da agropecuária brasileira.

Por outro lado, há nos setores de ponta uma produção agropecuária de primeiro mundo (como o mimetismo em voga considera de bom-tom dizer). A soja tem uma produtividade média de 2t/ha, o que é um bom índice de desempenho; o trigo está na faixa de 1,5 t/ha, já tendo atingido 2 t/ha; e a cana-de-açúcar atinge a marca de 64 t/ha. A produção de carnes, particularmente a bovina e a de frango, é moderna, competitiva no mercado externo e atinge um bom nível. Entre 1970 e 1989 a produção de carnes no país quase duplicou, sendo a avicultura a principal responsável por este desempenho. Em 1970 a produção de carnes era distribuída da seguinte maneira: carne bovina, 67%; suína, 25%; e aves, 8%. Em 1990 houve uma profunda mudança no perfil da produção de carnes e, consequentemente, no seu consumo: bovina, 44%; suína, 18%; e aves, 38% (a produção de carne bovina e de aves praticamente se igualaram).

Para o gerenciamento utiliza-se largamente a informática, especialmente no controle da produção, e não são poucas as unidades produtivas – privadas e cooperativadas – integradas diretamente às bolsas de cereais e commodities dos principais centros comerciais do mundo, como Chicago.

Todos esses fatores configuram o quadro contraditório de desenvolvimento capitalista agropecuário brasileiro: de um lado, um setor produtivo razoavelmente moderno, capitalizado e competitivo; de outro, imensas áreas improdutivas ou pequenas áreas cuja produção serve apenas à subsistência do trabalhador do campo, não sendo portanto representativa no setor.

A reforma agrária e a realidade atual

Historicamente, o quadro de injustiça e de desenvolvimento contraditório do campo brasileiro tem apresentado, em contraposição, a decidida, constante e heróica luta dos trabalhadores rurais, camponeses ou não, e dos setores urbanos progressistas – na qual se destaca o proletariado consciente e organizado – por uma reforma agrária que acabe com as injustiças sociais no campo, permita a democratização do acesso à terra, aumente a produção de alimentos e, acima de tudo, acabe com o latifúndio como forma central de propriedade fundiária no Brasil. Creio que é hora de os setores envolvidos fazerem um balanço dessa luta de décadas e elaborarem estratégias políticas e táticas que coloquem a necessária continuidade da luta pela reforma agrária em sintonia com a atual realidade do campo.

“A concentração de terras começou com as capitanias hereditárias e até hoje permanece no Brasil”.

Com a criação das capitanias hereditárias, no início da colonização portuguesa, foram lançadas as bases de uma distribuição fundiária altamente concentrada e monopolista. A seguir implantou-se um modelo que, combinando o monopólio da terra, o escravismo e a produção voltada aos interesses da metrópole, nos dominou durante séculos. Tal modelo propiciou as economias com predomínio de um produto básico, e seguiram-se os ciclos da cana-de-açúcar, do algodão, do café, do cacau etc. Nesse período gestou-se uma retrógrada aristocracia latifundiária, matriz das UDRs de hoje, que dominaram politicamente o país e o moldaram de acordo com os seus interesses até as primeiras décadas do século.

Em 1930 teve início a ruptura com o domínio das oligarquias político-latifundiárias por parte dos setores nascentes do capitalismo industrial nacional, já aliados ao capital estrangeiro, principalmente ao norte-americano. Embora a ruptura não tenha sido radical, ela marca o enfraquecimento do poder absoluto da oligarquia latifundiária e o início da ascensão da burguesia industrial como pólo dinâmico da economia e da política nacional. Entretanto, por não ter sido totalmente derrotado, o setor latifundiário recompôs-se habilmente e, em aliança com a burguesia industrial, implementou um processo de modernização a serviço das indústrias que acabavam de surgir.

Com a aceleração do processo de industrialização a partir de 1930 e, sobretudo, após a eclosão da Segunda Guerra Mundial, as contradições decorrentes da evolução do capitalismo puseram a nu, com grande força, a necessidade de o país urgentemente se “modernizar” (eta palavrinha!). Por esse motivo o setor agropecuário cumpriu um importante papel: fornecer alimentos, a baixos preços, às populações cada vez mais urbanizadas, gerando assim um proletariado urbano mal pago e, ao mesmo tempo, liberando força de trabalho do campo para a cidade, com o mesmo objetivo – ou seja, garantir um excedente de mão-de-obra à nascente indústria, para servir de freio às pressões por melhores salários por parte do operariado urbano.

“O golpe de 1964 encerrou uma etapa de luta pela reforma agrária, que havia tomado forma política nos anos 1940 e 1950”.

A questão da reforma agrária evoluiu e tomou forma política nos anos 1940 e 1950 e teve um desfecho parcial com o golpe de 1964. Na realidade, a polêmica que se travou na sociedade brasileira nesse período deu-se entre duas macrovisões (com inúmeras variantes). De um lado estavam os setores conservadores, representativos da oligarquia rural e do capital estrangeiro, que argumentavam que o campo brasileiro não necessitava de reforma, mas sim de modernização, que a solução consistia em modernizar e aumentar a produção e que era preciso criar políticas governamentais adequadas para esse fim, especialmente crédito e pesquisa. De outro, os setores nacionalistas e populares, que atribuíam a causa básica do atraso no campo à concentração fundiária e ao latifúndio e viam numa reforma agrária distributivista (parcelamento de terras e desmembramentos dos latifúndios) o ponto central do início da modernização do campo – que aumentaria assim a sua produção, democratizaria o acesso do camponês à terra, transformando-o de agregado em proprietário, e constituiria um forte mercado interno, capaz de absorver a crescente produção industrial.

Estas duas visões excludentes entrechocaram-se por mais de uma década e atingiram o acirramento máximo no governo João Goulart (1962-1964), quando este lançou, em famoso comício da Central do brasil, no Rio de Janeiro, o primeiro decreto da reforma agrária, um dos estopins do golpe de 1964.

Em certo sentido, o golpe de 1964 veio encerrar uma etapa da luta pela reforma agrária no Brasil, com a vitória do grupo conservador que, logo em seguida, no governo Castelo Branco, desencadeou, com o Estatuto da Terra, o processo de modernização da agricultura brasileira, sem atingir a estrutura fundiária. A partir de então o campo passou por um acelerado processo de transformação, que moldou a realidade dos dias de hoje, na qual os problemas da produção e, em certo grau, da produtividade agrícola têm sido resolvidos, com base no monopólio da terra, por uma escassa elite latifundiária fortemente subsidiada (e com um brutal custo social). A ponta deste iceberg é o assassinato de camponeses e de outros que lutam pelo direito à terra, e se estende para a expulsão do homem do campo, provocando a formação de conglomerados urbanos gigantes e de enormes contingentes de marginais, de todas as faixas etárias, na periferia das grandes cidades. Trata-se de uma “modernização” a serviço do mercado externo, em detrimento do nacional, que cristaliza uma situação secular de injustiça no meio rural.

Mesmo com todas as sequelas desse tipo de modernização, hoje a realidade do campo brasileiro é outra. A ascensão da burguesia industrial trouxe modificações profundas, o Brasil já não é um país onde no campo predominam relações pré-capitalistas, que entravam o desenvolvimento das forças produtivas. Na realidade, e de acordo com o momento histórico e as peculiaridades nacionais, ocorre no Brasil o que Lênin constatou na Alemanha quando se referiu ao modelo prussiano de desenvolvimento do campo. Esse fato provoca, inevitavelmente, mudanças no conteúdo e na forma de luta pela reforma agrária no país.

A continuidade da luta pela reforma agrária no Brasil é imperiosa, principalmente por causa do brutal monopólio da terra exercido pelo latifúndio. A concentração de renda agrícola, as péssimas condições de trabalho existentes no campo e os bolsões de produção retrógrada voltada para a subsistência são fatores que devem ser combatidos e que só serão vencidos com uma profunda reestruturação do setor.

A existência de um forte monopólio privado da terra encarece a produção agropecuária do país, e a renda absoluta da terra criada pela posse monopolista é um elemento inibidor do desenvolvimento agropecuário.

Décadas de pregação e agitação em torno dessa bandeira colocaram a luta pela posse da terra como um elemento mobilizador e aglutinador de largos contingentes de camponeses sem terra ou com pouca terra. É necessário apoiar esses pleitos. A realidade indica, cada vez mais, que a luta por uma reforma agrária que tenha como centro o distributivismo de terras não encontra respaldo na situação atual do campo. O capitalismo que se desenvolveu no campo brasileiro baseia-se em unidades produtivas avançadas e integradas, verdadeiras fábricas de grãos, carnes e fibras. Desmembrá-las em pequenas unidades produtivas seria um atraso e desorganizaria significativamente a produção de alimentos do país. É o momento de colocar a luta pela reforma agrária em outro nível.

“A luta pela reforma agrária está em outro nível devido ao avanço capitalista no campo”.

A realidade contraditória do campo, onde coexistem um setor capitalista avançado e um setor latifundiário pré-capitalista, além das áreas florestais pouco povoadas no norte do país, não nos autoriza a conduzir uma luta que tem como objetivo central superar o setor latifundiário pré-capitalista.
Este setor, economicamente pouco significativo, não é o pólo dinâmico do campo e se encontra em decadência. A permanência da luta pela reforma agrária distributivista só se justificaria se o problema da produção de alimentos e o da liberação de mão-de-obra para a indústria representassem um entrave para o desenvolvimento do país – mas esse é um assunto resolvido, lamentavelmente, pelo caminho social e nacionalmente mais penoso: o modelo prussiano. As regiões onde predominam latifúndios pré-capitalistas e áreas florestais de expansão da fronteira agrícola continuam demandando tratamento específico e, por consequência, soluções específicas. Mas não são essas áreas que devem determinar a orientação geral da luta pela reforma agrária no país.

Hoje, na questão da reforma agrária devem ter prioridade a luta contra a mais-valia no campo, a quebra do poder monopolista do latifúndio e o direcionamento da produção agropecuária para o mercado interno. Simultaneamente, deve continuar a luta pela posse da terra e pelo assentamento dos camponeses, de acordo com as características da região onde atuam, e por condições de trabalho dignas, com salários e direitos trabalhistas, como os operários industriais.

No capitalismo dependente em que vivemos, mesmo um governo progressista e com características populares não terá condições de avançar em direção a uma reforma agrária distributivista clássica. Isso desencadearia forças poderosíssimas do establishment, que um governo desse tipo não conseguiria deter (lembram-se do primeiro PNRA?).

Para o desenvolvimento do campo, que tem como condição o fim do latifúndio, o ponto central está na luta pelo poder político e na constituição de um regime social mais avançado, o socialismo. É uma luta que só terá êxito se se tratar a questão com sensibilidade, considerando o desenvolvimento agrário do país e a correlação de forças existentes na sociedade.

* Secretário-geral do PCdoB.

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