O projeto do Genoma Humano (HGP), desenvolvido no Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, é uma tentativa de mapear o conjunto de genes do Homo sapiens. O termo gen, introduzido por Joannsen em 1909, corresponde às unidades de hereditariedade propostas por Mendel como necessárias para uma explicação das leis da herança biológica, descobertas por esse cientista em 1865. Modernamente, sabe-se que um gene é uma sequência (mais raramente, uma combinação de sequências) dos quatro nucleotídeos que formam o DNA, o material genético contido nos cromossomos dos eucariotes (células com núcleo) ou em solução no citoplasma dos procariotes (células desprovidas de núcleos, como as bactérias). Os genes, por sua vez, condicionam a maioria das características de cada ser vivo, que constituem o fenotipo desses organismos.

Cada nucleotídeo é formado por um fosfato de deoxiribose (um açúcar) ligado quimicamente a uma base nitrogenada: adenina (A), guanina (G), citosina (C) e timina (T). A sequência com que esses nucleotídeos se dispõem nas macromoléculas de DNA, por exemplo, ACGTACCTG, pode ser determinada por métodos químicos, hoje automatizados, e assim também o conjunto de genes, que forma o chamado genoma. Em nossa espécie, o Homo sapiens, há cerca de 100 mil genes, cada um formado por sequências que contêm milhares de nucleotídeos, num total que pode chegar a 10 bilhões de unidades. O controle que os genes exercem sobre o fenótipo dos organismos decorre do fato de que são eles que codificam a síntese das proteínas, que formam o material mais importante das células.

O Projeto do Genoma Humano, bancado em grande parte, mas não exclusivamente, por agências do governo norte-americano, foi avaliado inicialmente em US$ 2 bilhões, mas sabe-se que dificilmente será completado sem que se gaste o dobro dessa quantia. Assim a biologia transformou-se, em termos econômicos, no que chamamos de big science, rivalizando com a física das partículas elementares e com as ciências espaciais. Para se ter uma idéia do custo podemos compará-lo com o Projeto Manhattan, que produziu as bombas nucleares que devastaram Hiroxima e Nagasáqui e custou aproximadamente a mesma quantia, cerca de US$ 2 bilhões.

Nos últimos 15 a 20 anos conseguiu-se determinar as sequências de nucleotídeos de muitos genes, tanto no homem como em outros organismos. Um exemplo clássico é o gene que regula a síntese da insulina nas células do pâncreas dos mamíferos. Uma vez o gene identificado quimicamente, é possível extraí-lo das células das quais faz parte e depois injetá-lo, por exemplo, em bactérias. Essas bactérias modificadas passam então a produzir insulina, uma proteína que em nada serve à bactéria hospedeira. Essa é uma das vitórias mais conhecidas na engenharia genética. Atualmente esse processo já serve de base à produção industrial da insulina necessária para a sobrevivência de milhões de diabéticos e, gradativamente, está substituindo o método antigo de obtenção de insulina a partir do pâncreas de boi ou de porco, comprados dos grandes matadouros-frigoríficos.

“Insulina produzida geneticamente é fonte de lucro da indústria farmacêutica”.

É possível constatar que o Projeto do Genoma Humano pode fornecer um conhecimento detalhado do nosso padrão genético, com repercussões médicas imediatas. Por outro lado, não se espera que o projeto possa acrescentar novos conhecimentos fundamentais sobre o funcionamento dos seres vivos.
Trata-se de uma proposta eminentemente tecnológica, embora não seja possível diferenciar de maneira absoluta a tecnologia da ciência propriamente dita.

Para os socialistas, dois aspectos apresentam-se inquietantes com relação a essa proposta tecnocientífica, que recruta recursos e conhecimentos científicos especializados não apenas nos Estados Unidos, mas em quase todos os países imperialistas: Inglaterra, Japão, França, Holanda, Alemanha etc. Uma das facetas inquietantes é um cunho econômico imediato; a outra, de fundo ideológico.

Já vimos como a grande indústria farmacêutica aproveita-se dos conhecimentos genéticos para produzir – e vender com grandes lucros – a insulina. Muitas doenças, chamadas hereditárias (síndrome de Alzenheimer, anemia falciforme, talassemia, hemofilia e, naturalmente, a diabetes) são devidas a genes defeituosos (sequências erradas) ou ausentes de genoma. Todos os hormônios, inclusive os que atuam ao nível das funções cerebrais, têm sua síntese controlada por genes específicos. Pode-se imaginar o tremendo interesse com que a grande indústria farmacêutica acompanha o desenvolvimento do HGP, especialmente se lembrarmos que hoje nos Estados Unidos e nos outros países que a potência única admite como parceiros, fármacos, hormônios, genes e mesmo espécies biológicas podem ser patenteados. Por essas razões os grandes produtores de fármacos procuram infiltrar-se no HGP e garantir, por medidas legislativas e formas mais diretas de controle, grandes vantagens futuras. Foi por discordar dessas práticas que o diretor-geral do projeto, o biólogo James Watson, pôs de lado o maior salário já pago a um cientista (US$ 500 mil por ano) e exonerou-se do cargo em 1992. Foi Watson quem, justamente com Francis Crick, descobriu, em 1953, a estrutura helicoidal dupla do DNA, um feito somente comparável, na biologia, à descoberta das leis de Mendel ou à formulação da teoria da evolução por Darwin e Wallace.

Watson, na tentativa de evitar o “fatiamento” dos resultados parciais (que seriam “pinçados” pelas companhias farmacêuticas) e para enfatizar a unidade essencial dos seres humanos, havia proposto que o projeto começaria tentando elucidar quais as sequências correspondentes aos genes mais gerais de nossa espécie, comuns a toda grande diversidade com que o Homo sapiens se nos apresenta, tais como os genes que nos garantem a postura ereta, a visão frontal, a anatomia das mãos etc. Percebeu que estava perdendo a parada dentro do próprio Instituto Nacional de Saúde e afastou-se do projeto.

“Genoma humano retira recursos que poderiam ser alocados para tratar “doenças de pobres”.

Os jornais de 28 de fevereiro de 1994 informaram que o novo diretor-geral do Instituto Nacional de Saúde, Harold Varmus (outro vencedor do Prêmio Nobel), conseguiu obter uma proibição de patentes de genes parciais do genoma humano. Varmus, segundo o Jornal do Comércio, de Recife, declarou: “Não acredito que o patenteamento (dos fragmentos de DNA) nesse estágio fomente o desenvolvimento tecnológico”. Sabe-se que o “fomento do desenvolvimento tecnológico” é a razão, isto é, a desculpa, para os que apóiam o sistema de patentes.

O HGP representa bem um processo em curso nesta fase da história, o das “parcerias” entre empresas capitalistas de grande porte e centros de pesquisas que, afinal, são mantidos com recursos de todo o povo, na sua maioria pobre, dos países ditos avançados. Para dar um exemplo, no começo do ano passado (1993) alguns senadores estaduais da Califórnia entraram com um recurso na Justiça Federal dos Estados Unidos para sustar uma parceria entre a Roche (companhia farmacêutica suíça) e o instituto Scripps de La Jolla, da Califórnia. A parceria consistia em a Roche doar US$ 5 milhões ao longo de três anos ao instituto, para que este permitisse que certo número de “olheiros científicos” da Roche ficasse analisando os resultados obtidos por seus pesquisadores; em 1992 o Scripps havia recebido US$ 350 mil de agências nacionais norte-americanas para apoio à pesquisa. A função dos “olheiros” era, evidentemente, repassar para seus patrões os resultados que julgassem promissores economicamente.

Os resultados que serão obtidos pelo HGP terão importância médica primeiramente com relação às doenças genéticas, ou doenças moleculares, como as chama o grande pioneiro Linus Pauling. É verdade que até hoje não se descobriu uma técnica que permitisse tratar essas doenças, mas o seu diagnóstico precoce seria beneficiado pelas informações genéticas detalhadas geradas pelo projeto. É também provável que as técnicas que permitem o tratamento de doenças moleculares venham a ser desenvolvidas. Tais informações seriam ainda de grande importância para as doenças degenerativas, como o câncer, doenças cardiovasculares e envelhecimento. Seriam menos importantes no caso das doenças infecciosas, mas o conhecimento dos genes do nosso sistema imunitário será certamente de grande utilidade, bem como o conhecimento dos genomas dos agentes causadores. Essas doenças infecciosas (tuberculose, malária, cólera, doença de Chagas etc.) são particularmente importantes para os países pobres e as camadas mais pobres dos países capitalistas desenvolvidos. Parece certo que o esforço em torno do genoma humano retira recursos que poderiam ser alocados aos problemas em aberto com relação a essas “doenças de pobres”, como o desenvolvimento de uma vacina para a malária.

Se persistir o balanço de poder mundial de hoje, teremos um cenário em que os padrões gerais de saúde pública começarão a decair para a grande maioria da população da Terra – com o aparecimento de epidemias novas, como a AIDS; e o aumento da incidência de moléstias que haviam sido consideradas sob controle como a tuberculose, a malária e a febre amarela –, situação agravada pela crescente falta de água em grande parte da África, Ásia e América Latina, o que tem como consequência a diminuição da higiene. Ao mesmo tempo, milhões de pessoas ricas, no ápice da pirâmide econômica, poderão recorrer a uma medicina caríssima e, provavelmente, a um exclusivismo territorial, e ter uma expectativa de vida de 150 a 200 anos (com boa saúde, claro, que ninguém quer perder seu jogo de tênis e suas transas sexuais). Talvez mais grave que a pirataria dos resultados de interesse médico é o fato de que o Projeto do Genoma Humano pode fornecer apoio às tentativas, digamos, “pós-modernas” de interpretações biológicas do desenvolvimento das sociedades humanas, que causaram no passado terríveis sofrimentos. A essência desta questão talvez possa ser posta, sem grandes distorções simplificadoras, nos seguintes termos: no início deste artigo escrevi que “os genes condicionam a maioria das características de cada ser vivo”. Os ideólogos racistas insistem em dizer que essa assertiva está errada, e que o correto seria afirmar que “os genes determinam todas as características de cada ser vivo”. Qual das duas afirmações é correta, e qual a importância da questão?

“O homem é a primeira espécie a receber herança cultural além de herança genética”.

Sem dúvida é verdadeiro que os genes do Homo sapiens são muito diferentes dos genes, digamos, da mosca comum, Musca domestica. São também diferentes, em bem menor grau, dos genes do chimpanzé (95% dos nossos genes estruturais são idênticos aos do chimpanzé, mas deferimos bastante quanto aos genes ditos de controle). E mais: o conjunto dos meus genes difere em alguns detalhes do genoma de qualquer outro representante do Homo Sapiens, inclusive meu irmão (mas seriam idênticos aos de um gêmeo monozigoto, um clone). Um projeto como o HGP poderá servir considerando o estado atual do mundo, para acentuar essas diferenças, na tentativa clássica de descobrir “raças” supostamente inferiores e superiores.

A grande verdade, porém, é que todas as características básicas do Homo sapiens, físicas e mentais, formam um patrimônio comum a toda a humanidade.

Para exemplificar, meu pâncreas sintetiza exatamente a mesma insulina, com os mesmos detalhes moleculares, que os pâncreas de todos os seres humanos, exceto os que sofrem de uma anomalia genética. Os indivíduos diabéticos, como aqueles que sofrem de certas doenças, genéticas ou não, podem não ser tão capazes como os indivíduos sãos de uma produção socialmente útil. Mas somente um regime brutal como o nazista e os sistemas caracterizados por uma competição desenfreada e que valorizam unicamente a produção de mais-valia – o sistema capitalista – justificariam uma discriminação contra os diabéticos e outras pessoas com limitações à saúde plena (isto inclui os idosos). Apenas os sistemas sociais com base no aforisma de Marx “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo sua necessidade” podem fazer plena justiça com as diferenças inerentes ao conjunto dos seres humanos.

As diferenças já conhecidas dos genomas individuais – quanto aos grupos sanguíneos, a cor dos olhos, o sistema imunitário, a textura dos cabelos etc –, que tendem a se multiplicar com os resultados de um projeto como o HGP, são desprezíveis em comparação com a unidade essencial da nossa espécie. Somente em casos raros a incompatibilidade inata (genética, portanto) pode causar complicações ao direito natural de busca de felicidade. É o caso de homem e mulher que desejam ter filhos e possuem fatores Rh opostos no sangue. Esse tipo de informação será certamente ampliado com o Projeto do Genoma Humano, mas deveria estar livremente – gratuitamente na prática – à disposição dos futuros casais.

Finalmente, alguns entusiastas do HGP tentam propagar a idéia de que o homem está todo em seus genes. Por conseguinte, os resultados finais do HGP esgotariam nossa necessidade de conhecimento sobre o homem. Tal concepção nega frontalmente o significado à educação, no sentido mais amplo do termo. Os próprios geneticistas sabem que o fenótipo resulta da interação do genótipo com o meio ambiente, o que é entendido na sua generalidade: meio físico, social e intelectual. Nenhum aprendizado, é preciso ficar claro, é transmitido geneticamente à nossa progênie. Por isso mesmo a educação é um trabalho de Sísifo, e cada ser humano, cada geração, tem de passar por um processo de aprendizado. Mas, além da herança genética, o homem é a primeira espécie capaz de usufruir uma herança cultural. Embora tenham que ser aprendidos por cada geração, o conjunto dos conhecimentos passados, as expressões passadas de beleza na arte etc. não desaparecem, pois estão agravadas na várias formas de registro que o desenvolvimento da espécie humana foi capaz de criar, a começar pela descoberta da fala, portanto da tradição oral. O processo de educação, por sua vez, difere nos diferentes sistemas sociais. No sistema socialista, a educação tem de estar voltada para a idéia de cooperação. É inegável, e útil reconhecer, que a agressividade do homem não pode ser reduzida a zero, pois foi um fator importante nos condicionamentos que levaram à sobrevivência da espécie no passado. O papel do aprendizado, em uma sociedade socialista, deve ser educar todos, não apenas no que se refere a nossa herança cultural, mas igualmente no sentido de minimizar a agressividade.

Esta, além de minimizada, deve ser canalizada para um fim maior. Os jovens reconhecerão na escola, como no meio de uma sociedade genuinamente igualitária, que a cooperação é mais importante que a competição.

Não sei como responder à pergunta : “O que fazer com a agressividade dos países que não adotarem o socialismo?” Talvez a resposta venha do bojo da crise mundial do capitalismo. Assim como Lênin aproveitou os ensinamentos da Comuna de Paris (1871), os socialistas do futuro poderão resolver o problema da agressividade dos países capitalistas.

Continuamos a acreditar que o homem livre do futuro, apesar de limitado pelo seu genoma, estará plenamente realizado em uma sociedade baseada na ajuda mútua.

* Professor do Departamento de Química Fundamental da UFPE e autor do livro Bates, Darwin, Wallace e a teoria da evolução, Editora UnB e Edusp.

EDIÇÃO 33, MAI/JUN/JUL, 1994, PÁGINAS 44, 45, 46