Com maior ou menor dose de retórica, o atual presidente da República, em seus diversos pronunciamentos, tem insistido na necessidade de “mudar” o Brasil ou em afirmar que o “Brasil já mudou”. Sem dúvida nosso país carece de novos rumos, o anseio de mudança é legítimo na grande maioria da sociedade. Mas mudar para quê? Para onde? Mudar tendo em vista um desenvolvimento independente, com avanço democrático e justiça social, ou um desenvolvimento subordinado, com crescente concentração de renda e exclusão social? Aí está o centro da questão.

“A novidade da fase globalizante: desmonte de estruturas estatais, econômicas e sociais”.

Afirma Fernando Henrique Cardoso que aqueles que o criticam deveriam perceber que ele “deseja reconstruir o Estado para permitir que se dê a guerra contra o apartheid social”. Como sabemos, o desenvolvimento histórico não pode se sustentar na boa intenção das pessoas, mesmo sendo estas mandatárias da República. Na realidade, FHC é expressão de um esquema de forças políticas com interesses bem definidos, plantados na atual evolução da marcha do capitalismo, conhecida como “globalização” da economia – um neologismo cujo conceito é pouco preciso. Do meu ponto de vista, estamos diante de uma nova fase do capitalismo, iniciada na passagem do século e caracterizada por Lênin como “etapa do capital financeiro, dos monopólios e da internacionalização da economia”. A globalização resulta, assim, dos vários períodos de desenvolvimento da internacionalização da economia, que alcançou elevado nível na escala mundial.

A concentração do capital financeiro atingiu proporções sem precedentes, e os monopólios tornaram-se gigantescos e transformaram-se em oligopólios. A reestruturação do Estado capitalista tem sido consequência de sua necessidade de adaptar-se à evolução de cada fase do sistema, em busca de um modelo adequado às exigências do momento histórico. O Estado nacional burguês desenvolveu-se a partir do momento em que o capitalismo superou o feudalismo, seguindo a lógica de vencer qualquer obstáculo à concentração da produção e à centralização do capital em escala planetária. Desse modo, a classe burguesa, que se tornou monopolista-imperialista, vem utilizando, conforme suas necessidades políticas e econômicas, as formas constitutivas que vão do Estado mercantilista e da I Revolução industrial até o estágio do Estado do capitalismo monopolista, em suas diversas manifestações. Poderíamos dizer que a novidade desta nova fase globalizante reside na exigência do desmonte de estruturas estatais econômicas e sociais e da dissolução das fronteiras nacionais, para livre manobra do capital financeiro e dos mega-consórcios econômicos, que têm como finalidade estabelecer vastos mercados únicos sob seu controle.

“FHC procura esconder sua adesão à total submissão ao projeto do neoliberalismo”.

É importante destacar que a globalização se apresenta agora em um novo quadro de forças pós-Guerra Fria, no qual a nova ordem das maiores potências imperialistas, com a hegemonia dos Estados Unidos, concentra as decisões dos temas mundiais, políticos e econômicos no chamado Grupo dos Sete. Desde o encontro das sete potências em Londres, em 1984, e em Paris, em 1989, foram iniciados e desenvolvidos os manejos e as diretrizes para a “coordenação e homogeneização das economias nacionais”, visando aos macro-interesses desse seleto grupo de potências. O receituário neoliberal planejado pelo G-7 foi unificado pelo esforço centralizado do FMI, do Banco Mundial etc. A partir de então vem sendo perpetrada intensa pressão política e ideológica, envolta pelo mote de “modernidade” e orquestrada por volumosa campanha propagandística. Por detrás disso tudo, estabelece-se enorme cerco econômico financeiro para forçar os países periféricos (dependentes) a abrirem e “desregulamentarem” suas economias, privatizarem suas empresas estatais, reduzirem suas despesas públicas, “flexibilizarem” as conquistas trabalhistas e estabilizarem suas moedas à custa de pesados ônus sociais.

Diante dessa realidade, Fernando Henrique Cardoso, tentando dar “coerência” à sua conversão neoliberal e procurando escamotear sua decisão de aderir à corrente globalizante dos potentados capitalistas, “teoriza”, todo faceiro, que ser de esquerda significa “estar na linha do progresso” e que este progresso “beneficia a maioria”.

Esta afirmativa nos conduz a duas questões que necessitam ser desvendadas. A primeira é distinguir que esse apelo ao progresso, como bem comentou o professor José Luiz Fiori, cumpre “função ideológica” ao reduzir a globalização a “um processo que derive apenas do desenvolvimento técnico e da evolução competitiva dos mercados”. Tal visão reduz este processo à mera consequência de uma forma tecnológica de produzir. Na vontade do sociólogo-presidente, esta marcha da mundialização da economia deve ser apolítica. Sorrateiramente, desconsidera que o centro de poder político mundial está sob o controle das grandes potências, para escamotear que está convencido de que é preciso se render ao diktat das forças da nova ordem internacional. Enfatiza a necessidade de ser “realista”. A mão do verdadeiro poder torna-se invisível e tudo aparece elegantemente, no seu feitio de intelectual, sob a forma de “mudanças contemporâneas” necessárias, das quais não podemos ficar de fora. Em suma, o “progresso” em que Fernando Henrique diz estar metido não é objetivo, nem técnico-produtivo, mas segue a atual divisão internacional do trabalho imposta pelos centros de globalização e obedece ao esquema de poder da nova ordem mundial, na qual o Brasil ocupa posição subordinada ou complementar.

Aqui aparece a segunda questão: esse processo globalizante, dirigido pelas grandes potências e os mega-consórcios capitalistas internacionais, beneficia a maioria dos povos e nações e, em particular, as grandes massas trabalhadoras e populares? Desde 1991, Fernando Henrique declara simpatia às fórmulas liberalizantes, afirma que Collor abriu uma “agenda nova” e passa a apoiar as medidas precursoras do plano neoliberal daquele governo. Aproximou-se, assim, das correntes conservadoras, que encontraram nele o instrumento político ideal para viabilizar a vitória eleitoral de uma coalizão comprometida com o projeto “modernizante”. Foi possível então aglutinar a maior e mais poderosa parcela das classes dominantes e contar com o apoio das matrizes do poder capitalista mundial. Essa frente conseguiu êxito e possibilitou a recomposição das tendências conservadoras, principalmente com o reforçamento dos setores comprometidos e associados ao sistema de globalização, em aliança com as forças centristas e com uma esquerda light, cooptadas pelo projeto liberalizante. Pois bem, Fernando Henrique tornou-se o representante maior de uma composição política com essas características e tendências.

“Mete-se um invólucro de “social” no liberalismo e tem-se outra coisa. Roberto Campos nega”.

Mesmo se o governo priorizasse as aspirações da maioria em detrimento do próprio interesse, o modelo neoliberal implementado no Brasil não fugiria à lógica da concentração de renda e da exclusão social. Seria como imaginar cobra voando, ave rastejando ou urubu comendo compota. O primeiro mês desse governo já apresenta claros indicativos de sua natureza e para onde se orienta. As medidas iniciais – como o veto ao salário-mínimo, de apenas R$ 100,00, a proposição de eliminação das conquistas trabalhistas (flexibilização), a exigência de mais tempo para o trabalhador se aposentar, a liberação das mensalidades escolares – demonstram sua inclinação para a minoria de sempre. A defesa de “reformas” (tributária, do capítulo da Ordem Econômica da Constituição e da previdência) encarna uma tendência social-elitista, privilegiadora dos beneficiários perpétuos, onerando assim o trabalho, provocando maior concentração de renda e aprofundando a subordinação aos ditames da nova ordem imperialista.

Fernando Henrique, seus ideólogos e technopols, forjados nas usinas universitárias norte-americanas, revezam-se nas acrobacias verbais. Alguns, procurando tornar mais “consistente” seu produto, arrolam justificativas “teóricas” para convencer que seu modelo tem bases próprias, não é assentado no neoliberalismo nem no socialismo da esquerda tradicional e que se trata de um “terceiro” caminho. Outros, os ases do time econômico, principalmente depois do desastre do México – que até o dia 20 de dezembro era o maior exemplo de modernidade para o Brasil seguir –, repetem mecanicamente que os “fundamentos econômicos” do modelo adotado no Brasil é diferente dos demais.

Porém, todo esse esforço de múltiplos argumentos alinhados comprovam os impasses, dilemas e dificuldades que a imposição da estratégia dos potentados mundiais tem provocado, sobretudo na América Latina e no Leste europeu. As idéias de um terceiro caminho tecidas por Bresser Pereira, Alain Touraine e outros, originadas de tendências políticas intermediárias, surgem com a intenção de responder ao insolúvel estrago social que os projetos da modernidade liberalizante têm gerado em todo lugar, mesmo no chamado Primeiro Mundo. Diz Bresser Pereira que o “neoliberalismo é um liberalismo radical e anti-social”. Por isso, “é possível pensar em um liberalismo social, que se aproxime da social-democracia”. Tudo se torna muito simples. Mete-se um invólucro de “social” ao liberalismo e tem-se outra coisa. Mas, ninguém melhor do que o próprio guru do liberalismo brasileiro, Roberto Campos, para repor o mérito do assunto. Ele diz que “a linguagem desse pessoal do Fernando Henrique, a sintaxe e mesmo a morfologia, são hoje a mesma dos liberais; a tônica é diferente”. E prossegue: “Eles se dizem social-democratas. Aí é o sotaque”. Bob Fields distingue, assim, que a diferença entre eles é apenas de “sotaque”. Como na botânica, não se pode confundir duas espécies que têm a mesma morfologia; a diferença entre elas está no hibridismo de uma, que assim pode assumir algumas formas distintas. Trazendo para o âmbito do pensamento político, as duas tendências de baseiam no liberalismo para montar seus modelos. Mais precisamente, a distinção entre elas está no entendimento que conferem ao “tamanho” do Estado e aos seus critérios de intervenção, reflexo da impotência sistemática que os projetos neoliberais demonstram diante da evolução da crise social e da exigência de dependência econômica crescente. Além disso, tais fenômenos são expressões de uma causa mais profunda – a crise estrutural contemporânea do capitalismo –, que se manifesta, ao nível da superestrutura, nas contradições de como compreender e compor o Estado nas atuais condições de globalização.

“A realidade comprova que o Plano Real tem os fundamentos de outros já adotados”.

Em relação ao argumento de que o Plano Real tem fundamentos distintos dos planos adotados na América Latina, a realidade comprova o contrário. Os projetos globalizantes possuem razões e referenciais idênticos, atingindo elevado grau de homogeneização no continente latino-americano. Têm como perfil básico: a reforma monetária e o ajuste fiscal; a liberalização financeira e comercial; a desregulamentação dos mercados e a privatização das estatais; e a abertura da economia visando à “retomada” do crescimento. E, como consequência dos resultados adversos provocados pelas políticas de combate à inflação, a partir de meados dos anos 1980 procurou-se uma fórmula credível para a estabilidade monetária, concretizada pela “dolarização” da economia, processo glorificado e amplamente empregado. As diferenças entre os planos econômicos em andamento situam-se no terreno dos mecanismos de câmbio, no grau de complexidade das economias, na “criatividade operacional” ou na “pilotagem” de cada situação. Os fundamentos são iguais. Também é preciso considerar que o naufrágio da experiência mexicana acarretou desconfiança e maior incerteza ao investidor internacional, agente-chave, nos moldes neoliberais, para a estabilidade e o desenvolvimento da economia. Demonstrou de maneira prática que, no quadro da “mundialização”, a crise de um e seus efeitos provocam maior impacto e desdobramento sobre os demais; e que as decisões do governo estadunidense, por este ser o centro da globalização no continente, pesam mais nos destinos das economias dos países latino-americanos do que as decisões dos seus próprios governos.

Entretanto, a conclusão mais chocante do episódio mexicano é que a lógica do desenvolvimento dos planos “modernizantes” leva, inexoravelmente, ao aprofundamento da dependência do país periférico ao país central, atingindo o nível de anexação econômica. Isso é comprovado pelo peso das “garantias” que a superpotência do Norte exige do México, depois da promessa de ajuda de US$ 50 bilhões que, na verdade, teve como objetivo atender aos interesses dos grandes investidores e livrar da bancarrota as “economias emergentes”, qualificação pomposa para esconder o verdadeiro caráter subordinado e complementar dessas experiências.

“A mudança almejada pelas forças do progresso não se confunde com a tal “modernização”.

Desse modo, o mérito e a extensão da derrocada mexicana atestam não só que as razões dos projetos em aplicação na América Latina são as mesmas, produtos da onda neoliberal, como também – e o que é mais importante – que a interligação entre tais projetos e a sua sujeição ao centro de poder globalizante vêm sendo cada mais velozes e avassaladoras do que é previsível. Em recente entrevista a Les Échos, Michel Camdessus, diretor-gerente do FMI, afirma: “a crise mexicana é mundial e prenuncia outras que poderão acontecer em todos os continentes”.

A mudança almejada pelas verdadeiras forças do progresso não se confunde com a pretendida “modernização” que, na verdade, representa: a submissão às intenções globalizantes da nova ordem dos países centrais imperialistas, que impõem sua divisão internacional do trabalho ao conjunto do mundo; a “integração” desigual e subordinada, mediante a liberação de uma economia que permite o livre acesso do capital financeiro e destrói os instrumentos de soberania nacional; a dependência do capital “volátil” e a estabilidade monetária ancorada ao dólar, à custa de enormes e onerosas reservas, concentração de renda, exclusão social e desigualdade regional; a regulamentação do Estado e da sociedade pelo mercado. O caminho da mudança tem outro sentido. A vida vai comprovando que o charco neoliberal afundou a economia mexicana, tornando-a subalterna ao império do norte e agravando dramaticamente a realidade política dessa nação. As reformas de cunho liberalizante no Leste europeu liquidaram as conquistas sociais, pioraram a realidade econômica, levando à derrota as forças capitalistas-modernistas nas recentes eleições. A previsão para a Rússia e países da ex-União Soviética não é diferente. Nada melhor para a definição de novos rumos do que a própria experiência percorrida pelos povos.

“A resistência política, ideológica e teórica a essa onda de pensamento único produz seus frutos”.

Em contrapartida, afirma-se que a esquerda não tem alternativa. Porém, essa assertiva faz parte da luta ideológica atual, em que os setores capitalistas dominantes tudo fazem para convencer que hoje existe um único caminho – o neoliberal – fora do qual não existiria solução verdadeira. Os comunistas, os socialistas e as forças efetivamente progressistas estão compreendendo que a resistência política ideológica e teórica a essa onda de “pensamento único” produz seus frutos. É no decorrer desse enfrentamento que a alternativa dos povos, dos trabalhadores, da crescente massa de excluídos vai sendo plasmada, em busca de outro caminho na encruzilhada histórica do presente. Assim, a necessidade de construir ampla aliança mundial das forças do progresso social e político contra a ofensiva imperialista, globalizante e excludente, aos poucos vai se impondo. Aliança que se traduz, em âmbito nacional, numa extensa coalizão defensora das bandeiras de justiça social, desenvolvimento econômico soberano e ampla participação democrática. Somente o êxito dessa tendência poderia criar condições para a conquista de governos baseados numa nova correlação político-social, distinta da imperante em nossa sociedade, e possibilitar a transição para uma formação econômica-social diferente, que integre de fato a maioria da população aos frutos do desenvolvimento, gerados pelo extraordinário incremento tecnológico e científico.

* Vice-presidente nacional do PCdoB.

EDIÇÃO 36, FEV/MAR/ABR, 1995, PÁGINAS 17, 18, 19, 20