De novo o Leste europeu
A derrocada da União Soviética e do Leste europeu vem induzindo todo um processo de crise e realinhamento no movimento socialista. Por trás das vacilações e mesmo conversões que se produzem nesse campo, e ao lado da escala de valores ideológicos, morais e éticos, de compromisso militante com a luta pela transformação social, encontra-se um denominador comum: o da insuficiência do desenvolvimento da teoria, capaz de dar conta não só dos fenômenos passados em seu desenvolvimento como das perspectivas renovadas dessa luta presente. Isso se reflete em todo o ambiente de produção teórica, dentro e fora dos meios acadêmicos, através de um duro processo de quebra e busca de referenciais. Nesses marcos, a teoria do Estado e a questão do socialismo e da democracia vêm ocupando um papel muito destacado.
É nesse terreno que se situa o trabalho de Luis Fernandes. Ele parte de “uma resenha crítica das principais interpretações dos Estados Socialistas do Leste pelas ciências sociais ocidentais”, enfocando mais estritamente a abordagem teórica gestada no âmbito da sociologia e da ciência política nos meios acadêmicos anglo-saxões (Grã-Bretanha, Estados Unidos, Canadá e Austrália).
O autor vai como que exumando, com perspicácia e profundidade, o arsenal teórico produzido para interpretar os Estados socialistas pelos principais paradigmas desenvolvidos no âmbito proposto pelo estudo: as teorias do totalitarismo, as teorias do pluralismo e de grupos de interesse e as teorias do corporativismo e neocorporativismo. Categorias como a de os Estados socialistas serem “Estados totalitários”, análises negando qualquer autonomia substancial ao Estado ou centradas na predominância de grupos burocráticos em seu interior; ou mesmo a negação de uma teoria do Estado e da interação objetiva entre este e os interesses constituídos na sociedade – todos esses fatores foram gerados no âmbito dessas teorias. O artigo argúi que todas essas “explicações” padeceram de limitações intrínsecas e de não abordarem os fenômenos sociais em sua integridade e inter-relação, em seu desenvolvimento histórico, como também de partir acriticamente de um referencial liberal de Estado e democracia, supostamente universal, com base na separação entre esfera “pública” e “privada”. Tais limitações e contradições das três teorias analisadas foram agravadas com a sua transplantação ao estudo dos Estados do Leste. O resultado foi a produção de um conhecimento distorcido e enganoso, incapaz de dar conta do desenvolvimento anterior dos países socialistas e, ainda mais, no presente, da crise multilateral que assola os seus atuais processos de transição. Ou seja, são conceitos que “não passam no teste crucial da validade” e de correspondência de um marco teórico com o desenvolvimento objetivo da realidade social que pretende examinar, explicar e/ou classificar.
Demonstração muito relevante, ainda hoje. Porque a assim chamada “sovietologia” foi uma verdadeira usina de idéias na guerra sem quartel que foi a Guerra Fria, que empenhou levas de acadêmicos e marcou mais de uma geração. Do âmbito das três teorias referidas (sobretudo das teorias do totalitarismo), conceitos e categorias foram gerados e nutridos pela ideologia e propaganda anticomunista, tendo se transformado tanto em instrumento quanto em visão de mundo dos setores mais belicosos e agressivos do establishment norte-americano.
Entretanto, o autor não faz concessões teóricas. Demarca com perspectiva positivista de pretender uma pesquisa neutra dos fenômenos sociais. Demarca com o “modismo intelectual pós-moderno” de conceber a teoria social como mera “narrativa com propósito moral”, que parte da identidade entre sujeito e objeto e revela apenas critérios subjetivos (éticos e estéticos) para julgar a sua validade, condenando a pesquisa a uma teorização dogmática e auto-referida. Ele vai firmar sua visão de que não basta explicitar valores e perspectivas subjacentes a uma explicação/classificação teórica para negar sua validade. Isto é apenas um lado da questão, não é sequer o mais importante. O aspecto crucial é o que confronta a capacidade de cada explicação e/ou classificação dar conta do desenvolvimento da realidade social que examina. Isso significa que, “se não podemos nos aferrar a qualquer princípio de neutralidade na explicação científica, a objetividade continua sendo o critério crucial de sua validade” (p.187).
O referencial teórico alternativo que Luis Fernandes propõe para a compreensão da dinâmica do Estado socialista é o marxismo. Não sem referir a sua própria crise teórica, “que está no fundo do próprio colapso do antigo campo socialista”. Destaca, notadamente, que o processo político nas experiências socialistas de nosso século evoluiu para conferir aos aparelhos de Estado (em fusão com o partido dominante) marcado grau de autonomia e de separação com as forças sociais que lhes deram origem, não corroborando a evolução prevista de definhamento do poder de Estado com a eliminação da propriedade privada.
Mas ele distingue a crise teórica do marxismo do impasse a que chegaram as outras perspectivas teóricas apontadas no artigo. “Fundamentalmente (…) o marxismo [contém] dentro de si os fundamentos teóricos e metodológicos necessários para sua superação”. Situa metodologicamente, para o estudo da questão, alguns pilares contrais na perspectiva marxista – reconhecer a objetividade dos processos sociais; abordá-los como um todo integrado, complexo e contraditório, em seu desenvolvimento histórico e em sua integração sistemática; identificar no dinamismo das formas de produção a chave fundamental (mas não exaustiva) e o reconhecimento das relações de classe como dimensão central (mas não exclusiva) da agregação de interesses da sociedade para entender o desenvolvimento do sistema.
Com seu trabalho, Luis Fernandes vai pavimentando o caminho de uma sólida elaboração teórica. Sua pesquisa foi efetuada na London School of Economics. Para nós, que o conhecemos de perto e que não partilhamos de seu convívio durante o ano em que passou na Inglaterra, fica necessário o registro de uma importância subjacente do trabalho. Luis Fernandes não é apenas intelectual que trata com consequência sua vida acadêmica, mas faz seu trabalho de pesquisador de uma arma de combate, de polêmica ligada concretamente às perspectivas da luta política da classe operária pela transformação social. Ou, ao reverso, como membro da direção nacional do PCdoB, encara a luta teórica como uma aguda exigência da atividade política, pois sabe ser necessário escalar as escarpadas montanhas do saber para conferir perspectivas concretas à luta socialista na atualidade. Como ele mesmo afirma: “Só podemos confrontar problemas teóricos fundamentais produzindo mais e melhor teoria, sem ilusões de que o recuo para o ecletismo ou a multiplicação de estudos empíricos guiados por um pensamento inconsciente irão resolver nossos desafios teóricos”.