O tema da violência no Rio de Janeiro adquiriu grande destaque nacional e internacional nos últimos anos. Por um lado, isto reflete a consolidação, neste período, de níveis inaceitavelmente elevados de insegurança para a população carioca e fluminense. Por outro, é fruto da exploração política inescrupulosa de forças reacionárias, que não hesitam em usar sua dominação dos meios de comunicação para desestabilizar governos progressistas que não se enquadram nos seus desígnios, mesmo que isto implique o agravamento das condições de vida (e de segurança) do povo.

O estudo que publicamos a seguir, fruto de um longo trabalho de pesquisa, coordenado pelo professor Luiz Eduardo Soares, no Instituto Superior de Estudos da Religião (ISER), procura justamente separar o que há de real e concreto na “escalada da violência no Rio” da sua exploração política, ideológica e psicológica pela mídia. Isto não quer dizer que o clima gerado por esta exploração seja irrelevante – muito pelo contrário, como o estudo indica, a difusão da “cultura do medo” acaba, precisamente, gerando mais violência e insegurança. Isto torna ainda mais premente a necessidade de estudos sérios e conscienciosos que, por fazerem ver além do clima criado, permitem o mapeamento e a evolução efetiva da violência no Rio.

O artigo que publicamos aqui é o relatório final de uma pesquisa de monitoramento da evolução da violência no Rio de Janeiro de 1981 a 1992, desenvolvida em cinco etapas. As primeiras quatro etapas da pesquisa acompanharam a evolução de diferentes índices de violência de 1981 a 1991. A quinta e última etapa concentrou-se no exame da incidência de mortes por homicídio doloso e/ou latrocínio no estado em 1992.

Ao contrário do quadro comumente traçado na cobertura dos meios de comunicação, o levantamento efetuado indica não ter havido um aumento desse tipo de vitimização no período da administração do governo Brizola, e sim um ligeiro recuo (com posterior consolidação, certamente em níveis inaceitáveis) em relação aos níveis alcançados no final do governo Moreira Franco. A pesquisa mostra também como a vitimização desta violência no Rio de Janeiro tem um claro viés de classe e de gênero – atingindo, fundamentalmente, jovens pobres do sexo masculino. O perfil das vítimas mostra que o foco principal da violência é o tráfico de drogas, entrelaçado com uma perigosa escalada no contrabando e tráfico de armas. O estudo revela, ainda, que a matança tem ficado impune – menos de um décimo dos inquéritos da polícia chega a se converter em processos para ser julgados pela Justiça.

Tudo isto lança luzes fundamentais para se compreender o contexto sócio-econômico e político que alimenta a violência no Rio. A pesquisa do ISER nos fornece subsídios fundamentais para enfrentar o tema com propostas democráticas, progressistas, viáveis e abrangentes, que não se limitem à mera denúncia da repressão. Em particular, ela indica como é ilusória a pretensão de atacar o problema com ações militares contra morros e favelas, deixando intactos os interesses econômicos que sustentam toda a rede de financiamento e organização do tráfico de armas e drogas (afinal, o Rio não produz nem um nem outro!). Pior, ela mostra como esse tipo de ação apenas agrava a violação de liberdades e direitos civis daqueles que já são as principais vítimas da violência – o povo pobre. Pela competência, inteligência e isenção do seu trabalho, o Núcleo de Estudos da Violência do ISER está prestando um serviço inestimável para a elaboração de uma agenda democrática alternativa para o tema da segurança e – merecidamente – se consolidando como o principal centro de investigação sobre violência no Rio.
Luis Fernandes Gráfico 1 (p. 67)

Por que vítimas e inquéritos

Nesta quinta etapa do projeto Monitoramento da Violência no Rio de Janeiro, propusemos-nos a desenhar o mapa da vitimização letal nesta cidade. Nossas principais perguntas incidiam sobre as características das vítimas de homicídios dolosos e de roubos seguidos de morte (ou latrocínios), cujos resultados práticos coincidem, apesar de as respectivas classificações legais serem distintas. Em outras palavras, queríamos saber quem está morrendo, no Rio de Janeiro, por meios violentos, intencionalmente acionados. E mais: seria decisivo, caso tivéssemos a pretensão de contribuir para a definição futura de políticas públicas e a ampliação do estoque de informações disponíveis para o debate público democrático, identificar as principais dinâmicas criminais envolvidas nestes casos fatais. Derivam-se daí as perguntas: onde ocorrem os crimes? Em que circunstâncias, de que modo, quais os perfis sociológicos das vítimas? Estas são as questões que constituíram nosso alvo prioritário.

Para enfrentá-las, as fontes primárias de informação poderiam e deveriam incluir os inquéritos policiais, não apenas os processos. Se nos detivéssemos exclusivamente nos processos, certamente contaríamos com dados de qualidade superior, sobretudo disporíamos de indicações sobre os suspeitos ou acusados. Todavia, nosso universo seria muito mais reduzido e, pior, sofreria os efeitos de um filtro poderoso, determinado pela complexidade das variáveis envolvidas. Se tomarmos o ano de 1992 como exemplo, apenas 8,1% dos inquéritos de homicídios dolosos e 8,9% daqueles referentes a roubos seguidos de morte converteram-se em processo – até julho de 1994, no prazo médio de dois anos, portanto (ver tabelas 10 e 11). As diferenças entre o sub-universo dos processos e o macrouniverso dos inquéritos são significativas, conforme teremos oportunidade de demonstrar.

Portanto, trabalhar exclusivamente com processos ou – ainda mais grave – com dados sobre população carcerária, mesmo sendo possível e necessário, é arriscado e provavelmente condenado a erro, caso as conclusões sejam projetadas por inferência sobre o conjunto do mundo do crime. Esta a razão de nossa primeira decisão metodológica: cobrir todo o universo, recorrendo também aos inquéritos – além dos processos, naturalmente. Um preço resolvemos pagar, desde o início: descartaríamos qualquer esperança de levantar informações suficientes sobre os suspeitos. Ao ampliar o espectro do objeto empírico (ousar dizer algo sobre o conjunto dos crimes letais) e optar por instrumentos mais extensivamente disponíveis (os inquéritos), assumimos o ônus de restringir nosso foco ao conjunto das vítimas e de reduzir nossas expectativas quanto à qualidade das informações sobre as circunstâncias de cada ocorrência.

Procedimentos adotados e suas razões

Por que 1992? Por que considerar apenas a cidade? Iniciamos a pesquisa em dezembro de 1993. Seria irrealista tentar reunir os casos de 1993. O ano anterior oferecia as melhores chances de que viéssemos a contar com dados ainda atuais e razoavelmente completos. Por outro lado, certamente seria importante conhecer a situação de todo o estado, particularmente da baixada fluminense, até para que o contraste lançasse luz sobre cada específica realidade investigada. No entanto, prazo curto e orçamento apertado recomendam cautela. Em pouco tempo atestamos o acerto desta decisão. As dificuldades práticas são consideráveis, mesmo quando nos restringimos ao âmbito da cidade. Dispondo, agora, de modelos já testados e experiência acumulada, os passos mais ousados talvez estejam maduros.

Houve, em 1992, na cidade do Rio de Janeiro, 3.548 vítimas de homicídios dolosos, correspondentes a 3.236 registros, e 157 registros de latrocínios (ver tabelas 1, 2 e 3, nas quais constam as respectivas distribuições pelas delegacias em que foram feitos os registros) (1). O estudo destes fenômenos requer a definição de uma amostra, e através de sua análise o conjunto dos casos pode vir a ser indutivamente conhecido. O desenho desta amostra apresentou, na experiência de nossa pesquisa, um desafio especialmente relevante: compreender, entre as variações observáveis no universo em foco, a dispersão ecológica das ocorrências, de modo que o maior número possível de unidades de produção dos dados, isto é, a maior quantidade possível de delegacias, pudesse ser incluído.

Como algumas delegacias apresentaram números relativamente muito pequenos das ocorrências que nos interessavam, incluí-las todas elevaria demasiadamente o número de inquéritos pertinentes à amostra, tornando-a improdutiva. Algumas, portanto, foram agrupadas, respeitando-se a correspondência entre as áreas da cidade sob suas respectivas jurisdições e os espaços definidos pelas RAs. Este primeiro trabalho resultou na construção de uma amostra de 486 inquéritos relativos a homicídios dolosos. Com o preenchimento dos questionários, reunimos 422 casos, envolvendo um total de 500 vítimas. Este número de casos, graças à sua distribuição proporcional pelas delegacias selecionadas, garante o poder indutivo de nossos dados, tornando-se dispensável considerar os 486 inquéritos apontados pelo cálculo amostral. Neste caso específico, a amostra é representativa e tecnicamente adequada, tanto para os inquéritos, quanto para as vítimas.

Os 157 registros de roubos seguidos de morte exigiram estratégia diversa. Sendo pequeno o número, preferimos incluir todos os casos que encontrássemos nas delegacias selecionadas pela amostra referida a homicídios dolosos. Reunimos, adotando este procedimento, 45 casos, que envolvem 49 vítimas (2).

Elaboramos um questionário a partir do exame do modelo de inquérito e de um breve pré-teste. Incluímos três unidades: sobre o inquérito (inclusive o tipo de acusação, homicídio doloso ou roubo seguido de morte); sobre as vítimas, os acusados (ou suspeitos) e as testemunhas; sobre o crime. Para que se entenda o percurso da pesquisa é preciso conhecer o itinerário dos dados.

Eis o caminho das informações, ou as etapas de construção do dado primário – percorrido na contramão, desenha o calvário do pesquisador: 1) a ocorrência é denunciada ou simplesmente descoberta pela própria polícia; 2) no documento chamado Registro de Ocorrência (RO) da delegacia, em cuja jurisdição o corpo foi encontrado, é lançada sua descrição sucinta; 3) a descrição é transferida – e ampliada (se possível) – para o Livro Tombo, onde todos os registros de todos os delitos são anotados, na ordem em que são conhecidos; 4) o delegado obrigatoriamente abre um inquérito relativo ao crime cuja consequência é a morte da vítima; 5) no prazo de um mês o inquérito deve ser encaminhado à Central de Inquéritos, instância do Ministério Público responsável pelo exame da consistência do documento elaborado pela Delegacia Policial e (5.1) por seu envio a alguma Vara de Justiça, onde, convertido em processo, receberá o tratamento jurídico adequado, cujo desfecho mais eficiente corresponde a (5.1.1) um julgamento, em que uma sentença é pronunciada, determinando (5.1. 2) absolvição ou condenação dos acusados e, neste último caso, (5.1.3) seu encarceramento, sob responsabilidade do Juizado de Execuções Penais (5.2). Quando o inquérito é considerado insuficientemente instruído, é devolvido à delegacia para posteriores investigações, respeitado, mais uma vez, o prazo máximo de um mês, quando, independentemente do sucesso no aprimoramento da instrução do inquérito, ele tem de ser novamente remetido à Central de Inquéritos. As idas e vindas frequentemente se estendem por muito tempo. O movimento prossegue até que o Ministério Público acolha o inquérito e o transforme em processo, oportunidade em que a responsabilidade transfere-se para o Poder Judiciário ou (5.3) que seja decidido seu arquivamento.

A rotina dos pesquisadores de campo previa, consequentemente, as seguintes etapas: 1) dirigir-se a uma delegacia incluída na amostra; 2) procurar, no Livro Tombo, os registros dos delitos que nos importavam; 3) selecionar determinada quantidade destes, segundo a tabela de números aleatórios especialmente confeccionada para aquela delegacia. Identificados os casos pertinentes, tratava-se de : 4) descobrir onde se encontravam tais inquéritos (na própria delegacia, na Central de Inquéritos ou em alguma Vara, já transformados em processos); 5) encontrado o documento, o questionário passava a ser preenchido. Suas perguntas – esta a nossa intenção – interpelavam o inquérito com o mínimo de ambiguidade, visando a absorver o máximo de informações.

Checados e codificados os questionários, o banco de dados pôde ser alimentado. O ciclo se fechou com o estudo dos dados agregados, combinados e cruzados, segundo variáveis analiticamente relevantes. O presente relatório representa o resultado mais geral da análise dos dados.

Síntese dos principais resultados

As reações generalizadas na opinião pública à criminalidade violenta no Rio de Janeiro têm atuado como fator de agravamento da situação, em três níveis distintos: 1) sendo uma experiência humana plena, a violência é vivida como fenômeno simultaneamente objetivo e subjetivo, a tal ponto que sentir medo desnecessário não dói menos que temer por motivos objetivos ou racionais. Portanto, mesmo que as situações objetivamente não sejam violentas, passarão a sê-lo para os atores sociais que as experimentarem com medo, sentindo-se ameaçados ou sob risco. Uma vez que a voz geral fantasia um quadro terrível, descontrolado e irreversível, a tendência será a intensificação das experiências negativas; 2) quem supõe a iminência do ataque alheio previne-se com a agressão defensiva antecipada. A generalização do medo amplia a incerteza virtualmente presente nas interações sociais, reduzindo a estabilidade das expectativas e incrementando as chances de que violências sejam efetivamente perpetradas. A profecia negativa tende a cumprir-se por obra e graça de sua própria difusão; 3) visões gerais simplificadoras sobre a problemática da criminalidade violenta constituem a contrapartida natural do que temos chamado “cultura do medo”, cuja característica principal seria a identificação de qualquer fenômeno violento, não importando a medida, como apenas mais uma manifestação da “decadência do Rio de Janeiro” ou da “degradação da sociedade carioca”. Desse modo, confundem-se problemas comuns a todas as metrópoles, questões mais especificamente culturais – ou psicoculturais –, como brigas de adolescentes, com crimes perpetrados por profissionais da delinquência. A confusão serve às ideologizações, mas jamais à elaboração de políticas públicas eficientes.

Como os únicos instrumentos de que dispomos são a palavra e a informação, temos procurado bloquear e dissolver a cultura do medo, discutindo-a, informando a opinião pública e, sobretudo, chamando a atenção para a necessidade de diferenciar tipos de práticas violentas e delituosas, de distinguir e compreender a especificidade de cada dinâmica geradora de violência. Assim, talvez as tensões se diluam parcialmente e os objetivos apontados para políticas públicas socialmente orientadas comecem a substituir, no imaginário social, o clamor por ordem autoritária.

Nesse sentido, são bastante úteis os resultados da pesquisa. Desde logo porque demonstram claramente que não há uma distribuição homogênea da vitimização e, portanto, do risco, na cidade, entre as classes sociais, os grupos de idade, os sexos, as etnias. As situações são profundamente diferenciadas. Convivem, entre nós, padrões europeus – no que diz respeito a homicídios dolosos e roubos seguidos de morte – e padrões americanos. Taxas elevadíssimas e outras, muito diferentes, bastante razoáveis. As cidades que convivem no município do Rio de Janeiro são divididas basicamente pela renda, pelo acesso à riqueza expresso pela escolaridade; e a diferença entre as “cores” retrata a primeira divisão iníqua, em prejuízo dos não brancos. O crime letal continua compondo um universo quase exclusivamente masculino. Os que pagam o preço mais dramático são os jovens. Ou seja, as vítimas principais da pior forma de criminalidade violenta, em nossa cidade, são jovens, pretos e pardos, pobres, com baixa escolaridade.

É importante ter esta diferenciação em mente quando pensarmos na violência do Rio de Janeiro. Existe risco elevado? Depende da renda, da cor, da idade e do sexo. Qualquer resposta genérica será injustiça e obscurecerá os fenômenos que pretendia esclarecer.

Quando analisamos a disposição das faixas etárias em nosso universo, podemos prescindir de ponderações por RAs ou zonas da cidade, uma vez que se trata de uma relação constante. Basta, portanto, contrastar o perfil etário da vitimização com a distribuição dos grupos de idade na sociedade carioca. O resultado é impressionante: enquanto os jovens entre 18 e 29 anos representam 20,38% da população do Rio de Janeiro, correspondem a 57,7% do conjunto das vítimas de homicídios dolosos, na cidade, em 1992. Na faixa subsequente, entre 30 e 34 anos, continua a haver uma inclinação expressiva, no mesmo sentido: equivalem a 8,34% da população, e apresentam 15,3% das vítimas. A relação inverte-se quando consideramos as pessoas com mais de 35 anos: sendo 38,3% da população, não passam de 19,7% do conjunto das vítimas. Se desagregarmos as faixas consideradas, veremos que o desvio se concentra sobretudo entre 18 e 24 anos, grupo etário que representa 35,2% do conjunto das vítimas e apenas 11,88% da população da cidade (ver tabela 12).

Gráfico 2 (p. 69)

Quando focalizamos os roubos seguidos de morte, o quadro se altera (anexo há tabelas). Os jovens entre 18 e 29 anos continuam super-representados (são 36,3% dos casos observados, contra 20,38%, na população da cidade, conforme tabela 13), mas a composição deste particular grupo de vítimas é especialmente concentrada: 57,1% das vítimas descritas como “pretas” encontram-se nesta faixa jovem, assim como 55,6% daquelas registradas sob a rubrica “pardos”. Por contraste, entre as vítimas do latrocínio classificadas como “brancas”, apenas 26,9% tinham entre 18 e 29 anos no momento em que foram assassinadas, enquanto 61,5% tinham mais de 35 anos (ver tabela 14). Esta forte concentração, tão contrastante com as distribuições observadas entre pretos e pardos, força os números totais para cima: 47,7% do conjunto das vítimas de roubos seguidos de morte ocupam (ou ocupavam) a faixa etária superior aos 35 anos. Lembremo-nos que somente 38,3% da população do Rio de Janeiro compõem este grupo de idade, segundo o Censo de 1991 (IBGE). Observe-se que, quando se trata de latrocínio, a variável étnica (ou cor) não parece independente. Em outras palavras, apesar do baixo número de casos impedir um cálculo exato, os dados sugerem que a cor, qualquer que seja, não está associada a maior ou menor incidência de (e talvez tendência a) vitimização, se pensarmos na dinâmica específica do roubo seguido de morte. Entretanto, se combinarmos idade e cor, aí sim, diremos que pretos e pardos jovens (situando-se entre 18 e 29 anos) e, sobretudo, brancos com mais de 35 anos são mais sujeitos a se tornarem vítimas desta modalidade de crime.

Dividindo a cidade em três grandes conjuntos de RAs, para examinar a relação entre cor e vitimização por homicídio doloso, verificaremos que os desvios são fortemente significativos, indicando a significância da correlação entre as cores pretas e pardas e as probabilidades de se tornarem vítimas.

Os brancos são 81,22% da população do conjunto que chamaremos Zona Sul-Tijuca, mas representam apenas 33,3% das vítimas. Enquanto isso, os pretos são 7,43% da população e 32,4% do conjunto das vítimas residentes nessa região. Os pardos são 11,35% da população e 34,3% do conjunto das vítimas, segundo nossa amostra. O mesmo se verifica na região Centro-Zona Norte: os brancos são 37,6% das vítimas, os pretos 19,7% e os pardos 42,7%. Na população, representam, respectivamente: 61%, 10,1% e 28,8%. No conjunto de RAs, que denominamos Zona Oeste-Subúrbios, entre as vítimas, 41,5% são brancos, 18,9% pretos e 39,6% pardos, contra suas respectivas participações na população, respectivamente: 55,6%, 13,1% e 31,3% (ver tabela 15, com a classificação das RAs anexada).

Gráfico 3

Dada a pobreza de informações contidas nos inquéritos, não foi possível construir o perfil sócio-econômico da vítima, diretamente. No entanto, a magnitude da significância da associação entre as variáveis cor e vitimização letal, no contexto sociológico brasileiro, autoriza a inferência já mencionada: a criminalidade atingiu, em 1992, na cidade do Rio de Janeiro, predominantemente os mais pobres e aqueles que apresentam índices inferiores de escolaridade. Quando nos referimos ao contexto sociológico brasileiro, pensamos nos estudos realizados por Carlos Hasembalg e Nelson do Valle e Silva, que têm demonstrado a natureza etnicamente discriminatória de nossas iníquas estruturas sociais. Em outras palavras, é perfeitamente razoável, do ponto de vista sociológico, deduzir da concentração étnica de nosso padrão de vitimização a natureza heterogênea e concentrada da distribuição dos riscos entre as classes sociais: os mais pobres e menos instruídos (ou os menos instruídos que, no Brasil e no Rio, são os mais pobres) foram as principais vítimas da criminalidade mais violenta, em 1992, no Rio de Janeiro – mesmo consideradas as ponderações pela distribuição de renda e escolaridade que caracteriza a sociedade carioca – neste caso, um retrato do Brasil.

Entre as vítimas de homicídios dolosos, apenas 9,6% são mulheres (ver tabela 16). A proporção é praticamente a mesma quando se trata de roubos seguidos de morte: 8,9% das vítimas são mulheres (ver tabela 17). A variável gênero se associa positivamente a crimes de natureza interpessoal, os quais correspondem a 20,1% do total (como os inquéritos são extremamente pobres e precários, apenas uma parcela apresenta informações suficientes para que se depreenda a natureza do crime) – este percentual diz respeito à participação deste tipo de crime no conjunto de 164 casos sobre o qual há informações pertinentes (ver tabela 18). Quando os homicídios apresentam esta característica, 15,25% das vítimas – e não mais 9,6% – são do sexo feminino (ver tabela 19). A associação é corroborada pelo fato de, quando as vítimas são mulheres, a arma de fogo continuar predominando, como instrumento do crime, mas em menor proporção: armas brancas e outros são instrumentos da morte em apenas 8% dos homicídios dolosos cujas vítimas são homens. Em 92% dos casos, as armas de fogo são usadas. Quando as mulheres são as vítimas, em 14,3% dos casos armas de fogo não são usadas (ver tabela 20).

As mulheres vítimas de homicídios dolosos são assassinadas sobretudo entre 18 e 29 anos (48,9%), mas a distribuição etária mostra um padrão diferente daquele desenhado pela vitimização masculina. As mulheres continuam expostas a risco considerável por mais tempo. Em 1992, 29,8% das mulheres assassinadas no Rio de Janeiro tinham mais de 35 anos, enquanto apenas 18,6% dos homens mortos encontravam-se nesta faixa (ver tabela 21). Por outro lado, as mulheres morrem mais em casa do que os homens: 22,9% contra 10% (ver tabela 22 e gráfico 1). Os dados confirmam tendência já identificada pela PNAD (Vitimização e Justiça), IBGE. As mulheres sofrem mais que os homens a violência doméstica. Geralmente, os agressores são exatamente os homens: maridos, companheiros, parentes, amigos e conhecidos. (Ver SOARES et alii, Violência contra a mulher: levantamento e análise de dados sobre o Rio de Janeiro em contraste com informações nacionais, Núcleo de Pesquisa do ISER, apoio FAPERJ, 1993).

Não há mulheres vítimas de homicídio classificado como “extermínio”, na amostra, enquanto 15,2% dos homens assassinados aparecem como vítimas deste tipo de crime. Por outro lado, apenas 19,3% dos homens vitimizados morreram em “conflito interpessoal”, enquanto, entre as mulheres vítimas de homicídio, estes casos representam 26,3% do conjunto. Quando há envolvimento da vítima com droga, a diferença entre os gêneros é pequena: a constatação de envolvimento ocorre em 56,6% dos casos em que as vítimas são homens e 63,2% dos casos em que as mulheres sofrem o crime (ver tabela 23). Por envolvimento com drogas entendemos relações diretas ou indiretas com as drogas: tráfico, consumo ou relações estreitas com traficantes e/ou consumidores frequentes ou regulares.

Assinale-se o fato de que em muitos inquéritos não há informações a respeito, o que não significa negação das relações em pauta. Estamos inclinados a crer que nossos números estejam subestimando o valor desta variável.

Os tipos de conflito que qualificam o homicídio, as armas do crime, o local em que ocorre e os principais grupos de idade atingidos constituem, quando analisados em conjunto, padrões diferenciados por gênero.

A variável “provável motivo do crime” sugere uma correlação entre os motivos “conflito interpessoal” e “extermínio” e a vitimização de grupos de idade mais elevada: entre os que foram assassinados supostamente por motivos ligados a conflitos interpessoais, em 1992, 35,5% tinham mais de 35 anos (ver tabela 19), enquanto 45% encontravam-se na mesma faixa etária quando foram mortos, supostamente por práticas criminosas denominadas “extermínio”, no mesmo ano (ver tabela 24). Quando as drogas ocupam o centro das suspeitas, configura-se um universo no qual apenas 15,6% das vítimas tinham mais de 35 anos (ver tabela 25 e gráfico 2).

Isto provavelmente sugere que, na medida em que avança a dinâmica violenta das drogas (acionada pelas disputas por poder, armas e territórios entre grupos de traficantes), tende a expandir-se a proporção de jovens no conjunto das vítimas. O crescimento do mercado das drogas equivale a um processo em que o perfil da vítima fatal torna-se cada vez mais jovem.

Gráfico 4 (p. 71)

Outra hipótese plausível poderia ser formulada: com o comércio das drogas (e das armas) em expansão, haveria uma tendência no sentido da indistinção crescente entre práticas de extermínio e conflito entre grupos de traficantes. Afinal, se os “exterminadores” são, por definição, cooptáveis – sendo profissionais do crime, a serviço de interesses locais ou de supostas “causas saneadoras” –, terminariam atraídos pela gravitação do novo pólo que concentra recursos, potenciais e estratégias “promissoras”: o tráfico de drogas. Uma informação preocupante nos sugere a magnitude da impunidade: somente 8,1% dos inquéritos sobre homicídios dolosos e 8,9 % dos inquéritos sobre roubos seguidos de morte (ver tabelas 10 e 11), instaurados em 1992, foram, até junho de 1994, suficientemente instruídos pelas investigações da Polícia Civil e se converteram em processo, propiciando ao Poder Judiciário a chance de cumprir suas funções, pronunciando-se sobre responsabilidades e penalizando culpados. Além disso, é significativo que, entre os inquéritos de nossa amostra que já se transformaram em processos, 61,1% referiam-se a causas interpessoais, exatamente as menos graves, do ponto de vista da dinâmica criminal. Lembremo-nos que os crimes interpessoais são apenas 20,1% do total de casos. Em poucas palavras, os crimes efetivamente graves, isto é, associados a carreiras criminais e a dinâmicas tendentes a reproduzir-se, praticamente não são apurados (ver tabelas 18 e 26 e gráficos 3 e 4). Os dados são tão impressionantes que talvez traduzam mais que ineficiência. Quando se trata, não de delitos em geral (o que seria razoável, mesmo nos países centrais), mas dos crimes de morte, 92% de impunidade é uma taxa assombrosa, que sugere, pela magnitude, cumplicidade da Polícia Civil, responsável pelas investigações na fase de instrução dos inquéritos, ou sua falência definitiva.

Identificar os problemas e hierarquizá-los são passos indispensáveis a um enfrentamento mais objetivo da criminalidade. É tempo de substituirmos as impressões simplificadoras, que têm alimentado propostas autoritárias, pela discussão mais séria e madura dos diferentes problemas, respeitando suas especificidades e atentando para suas profundas raízes sociais. Nesse sentido, devemos reconhecer publicamente a disposição democrática com que o governo do estado do Rio de Janeiro (do período em que realizamos nosso trabalho) abriu todas as suas fontes de dados para pesquisadores independentes, visando à transparência e a um debate público de nível superior ao que temos assistido. Cumpriu-nos responder com rigor no tratamento dos dados e na consistência da análise, colaborando para o esforço comum, que se orienta, seja para o aperfeiçoamento das informações sobre a problemática da criminalidade violenta, seja para a avaliação criteriosa e responsável de políticas públicas de segurança. Esperamos que transparência e cuidado honesto com os dados continuem sendo valores e práticas dominantes na área de segurança pública do governo do Estado do Rio de Janeiro, de agora em diante, não importando as mudanças políticas que se sucederem ou os compromissos ideológicos dos futuros governantes. Esta é uma conquista da sociedade fluminense, que o país precisa adotar. Em meio a tragédias, cifras mórbidas e números lúgubres, afinal há algum motivo de orgulho e de estímulo a mudanças das instituições de segurança pública na direção democrática: aquela em que se combinam eficiência, honestidade e respeito aos direitos civis.

Tabelas 1 e 2 (p. 72) Tabelas 3, 4, 5, e 6 (p. 73) Tabelas 7 a 14 (p. 74) Tabelas 15 a 26 (p. 75)

* Esta pesquisa foi patrocinada pela FAPERJ, com o apoio do ISER, e se realizou no âmbito do Núcleo de Pesquisa do ISER, em colaboração com o Departamento de Ciências Sociais da UERJ.

Notas

(1) A pesquisa contou com a participação de grande número de colegas em suas diversas fases. Foram pesquisadores de campo: Ahyas Siss, Alba Gisele Gouget, Dario de Souza e Silva Filho, Edgard da Cunha Amorim, Fernanda Cristina Fernandes, Maria Helena Viana Souza, Nilton Silva dos Santos, Paulo Henrique Barbosa Dias, Paulo Jorge da Silva Ribeiro, Pedro H. Villas Boas Castelo Branco. André Melo colaborou de distintas formas. Dra. Teresa Barbosa desenhou o plano amostral e nos ofereceu segura assessoria metodológica em vários momentos do trabalho. Seus orientandos José Carlos Martins Leite, Márcio de Souza Pinto e Phillipe George Pereira Guimarães Leite colaboraram na geração do banco de dados e na produção de tabelas e gráficos. A todos eles nosso reconhecimento pela competência e dedicação. De fato, como os pesquisadores de campo, são co-autores da pesquisa. Nossos agradecimentos estendem-se a todos aqueles que tornaram possível nosso trabalho. Em primeiro lugar ao ex-governador do estado do Rio de Janeiro, Dr. Nilo Batista, que desde o início do projeto, ainda quando vice-governador (e secretário de Justiça e de Polícia Civil), apoiou a realização e pesquisas independentes sobre a área de segurança pública, franqueando inteiramente o acesso aos dados disponíveis, nos mais diferentes níveis, sem jamais, por qualquer meio, direta ou indiretamente, intervir em nossos cálculos e análises. Este é certamente um exemplo raro de transparência, rigor ético e atitude democrática por parte de uma autoridade de sua categoria. Nosso desejo é ver este tipo de relação entre estado e sociedade civil generalizar-se. De nossa parte, procuramos responder investindo todos os nossos esforços no trabalho para que ele alcançasse a melhor qualidade possível, credenciando-se a apoiar a formulação de políticas públicas. Além do Exmo. governador, é necessário manifestar nossos agradecimentos à Dra. Vera Malaguti Batista, cujo apoio permanente e sempre gentil ajudou-nos a enfrentar e vencer qualquer dificuldade. Agradecemos também, por nos franquear e acesso aos processos que se encontravam nas Varas, ao Exmo. Sr. Juiz Antonio Cesar Siqueira, corregedor geral da Justiça, e ao Exmo. Sr. Desembargador José Domingos de Moledo Sartori. Por nos permitir o acesso aos inquéritos que se encontravam na Central de Inquéritos do Ministério Público, agradecemos aos Exmos. Srs. Promotores Luiz Otávio de Freitas e Guilherme Eugênio Vasconcelos e ao supervisor da Central de Inquéritos-Centro, Dr. Amauri Lima Jr. Nosso reconhecimento estende-se aos Drs. Delegados e Escrivães das delegacias visitadas, particularmente ao Dr. Paulo Roberto da Silva, pela orientação na leitura de informações que só a experiência torna inteligíveis. Somos gratos à cooperação do Dr. João Batista Porto, Chefe da Seção de Estatística da Secretaria de Estado de Polícia Civil, que realiza, longe do olhar do grande público, uma tarefa da maior importância. Finalmente, devemos mencionar que, desde os primeiros passos deste projeto, o Dr. Fernando Peregrino, superintendente da FAPERJ, esteve presente, apoiando e sinalizando, para nós, o ideal que poderia ser representado pela combinação entre rigor acadêmico e responsabilidade social.
(2) Três outras rubricas, com as quais opera a Polícia Civil, podem incluir casos que, a rigor, se houvesse investigação adequada, aumentariam os números relativos a homicídios dolosos (ou mesmo a roubos seguidos de morte): “encontro de cadáver”, “morte suspeita” e “encontro de ossada” (vide tabelas 4, 5, 6, 7, 8 e 9). Seria mais grave inflacionar artificialmente as rubricas com as quais trabalhamos do que respeitar a classificação policial. É importante, todavia, ter presente que os números de vítimas e registros, evidências básicas da pesquisa, muito provavelmente não traduzem com fidelidade a “realidade dos fatos” (isto é, a quantidade exata das ocorrências visadas), mas indicam a dinâmica das práticas por eles referidas, suas respectivas acelerações ou desacelerações etc. Afinal, não há razão suficientemente forte e consistente que desautorize a suposição de que a parcela relativa de perda (ou de subnotificação) seja constante, não influindo, assim, na descrição diacrônica propiciada pelos indicadores “homicídios dolosos” e “roubos seguidos de morte”.
(3) É importante lembrar que a vítima fatal pode ser o próprio assaltante.

EDIÇÃO 36, FEV/MAR/ABR, 1995, PÁGINAS 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76