A conturbada trajetória do povo chinês
Juang Chang, “Er-hong”, é a segunda Cisne Selvagem e sua mãe, “De hong”, a primeira Cisne Selvagem. A poesia do título, que na verdade corresponde ao nome de batismo da autora e de sua mãe, poderia sugerir uma leitura de pictogramas chineses emoldurados por juncos e salgueiros. “Lírios dourados de oito centímetros”, “Cruzando os cinco passos da montanha”, “Subam aos céus e varem a Terra” são três capítulos entre os vinte e oito que organizam o livro, reafirmando a hipótese de um longo poema. Na verdade, logo se descobre que os lírios dourados se referem ao comprimento máximo – oito centímetros – dos pés que as mulheres chinesas deveriam ter para cumprir o ideal de beleza, feminilidade e fragilidade.
Elas deveriam andar parecendo “um tenro broto de salgueiro na brisa da primavera”, imagem considerada afrodisíaca ao olhar masculino. Para alcançá-la, as mães tomavam as filhas aos dois anos de idade e cumpriam um ritual que consistia em dobrar os dedos sob a sola dos pés, menos o dedo grande, e os enrolar com longas faixas de pano branco. Sobre os pés depositavam uma pesada pedra, até quebrar seu arco. Apesar das dores contínuas e lancinantes, esse enfaixamento era mantido para impedir que os dedos e as articulações se recompusessem. Somente à noite as faixas eram ligeiramente afrouxadas. Resultado: uma enorme deformidade e uma atrofia muscular permanente. Quanto menores os pés, maior o sinal de nobreza, riqueza e melhores possibilidades de um bom casamento.
Esta informação logo às primeiras vinte páginas desfaz a fantasia e revela a densidade de um relato dramático: o resgate da história contemporânea da China e a violência de procedimentos culturais, políticos e militares em um país de dimensões continentais.
Juang Chang, nascida em Sichuan no ano de 1952, vive desde 1978 em Londres, onde é professora universitária e historiadora. Seu livro descreve a conturbada trajetória do povo chinês, contada a partir das vicissitudes de sua família, desde os bisavós nascidos em tempos do Império Manchu. Sua avó (1909), a primeira das três filhas da China, belíssima e portadora dos pesinhos de oito centímetros, foi tomada como concubina de um general – ligação acertada pelo seu pai. Desta avó a autora considera ter herdado a elegância e, sobretudo, o artístico cuidado com seus longos e negros cabelos. As recordações afetuosas se revelam na dedicatória do livro, compartilhada com a homenagem a seu pai.
Contudo a preocupação dominante de Juang Chang é a sistemática denúncia das arbitrariedades cometidas sob os imperadores manchus (1644-1911), sob Chang Kai-Chek e sob a ocupação militar japonesa de 1931, iniciada a partir da Manchúria.
No capítulo quinto, “Filha à venda por dez quilos de arroz”, seu pai e sua mãe passam a protagonizar a história como militantes e dirigentes do Partido Comunista Chinês.
Desde a longa marcha (1934-1935) à queda do Bando dos Quatro (1976) o leitor se vê engalfinhado com relatos ainda inéditos, sobretudo referidos à insana prática da guarda vermelha, sustentáculo da chamada Revolução Cultural iniciada em 1966. Seu pai, destacado dirigente comunista, governador de Yibin (1952) e subchefe de Assuntos Públicos do Departamento de Sichuan, à época com 65 milhões de habitantes, viria a ser preso em 1966, submetido a sistemáticas assembléias de denúncia e achincalhado publicamente. Morre em 1975, três anos após ter sido solto. Precocemente envelhecido aos 55 anos de idade, amargou o banimento político em função de críticas feitas aos procedimentos da Revolução Cultural. Sua mãe, também dirigente, ocupou cargos políticos e foi presa duas vezes; à época da prisão do marido, empreendeu incansáveis esforços para sua reabilitação, já que toda família ficou sob suspeição enquanto a reabilitação política do chefe da família não ocorresse.
A figura do presidente Mao Tsetung é duramente criticada pela autora, que se tornou uma apaixonada guarda-vermelha aos 14 anos de idade, tendo trabalhado como camponesa, operária siderúrgica e metalúrgica e como médica descalça. Entre as revelações estão as consequências nefastas da consigna para a produção massiva de aço; a perseguição violenta a pintores, escritores, intelectuais e dramaturgos rotulados como “autoridades burguesas reacionárias e inimigos de classe”; e a perseguição aos velhos, sobretudo professores, que foram espancados em sala pelos próprios alunos. Os clássicos chineses foram proscritos e os livros, queimados. Juang Chang conta que a única vez que viu seu pai chorar foi quando teve que queimar sua preciosíssima biblioteca, repleta de clássicos e obras cuidadosamente lidas para os filhos. Após este episódio seu pai foi tomado de um colapso mental, do qual não se recuperou totalmente.
Ao lado da admiração e respeito pelo pai, a autora relata episódios ocorridos com sua mãe, com ela própria e com os irmãos. O final de sua vida, desterrado politicamente, revela a complexidade do processo político chinês.
“Por favor, aceite minhas desculpas, que chegam com uma vida de atraso” é o título do capítulo que relata a vida de sua mãe e de seu pai no campo e a dureza dessa experiência.
De qualquer maneira o que conduz o leitor pelos labirintos da China é o jeito de contar, que entrelaça um relato parcialmente histórico com a experiência de militante política, misturados à fascinante cultura chinesa.
O campo para onde sua mãe foi mandada em 1969 com quinhentos ex-colegas do Distrito Leste, tanto rebeldes quanto sequazes do capitalismo, chama-se Planície do Rapaz do Búfalo, nome de uma lenda que até hoje atrai os chineses.
A deusa tecelã que se banhava na Terra, às águas de um lago, apaixonou-se e casou com um rapaz, Altair, que cuidava dos búfalos da região ribeirinha. Sua mãe, a Rainha Mãe Celeste, invejosa da felicidade da filha, sequestrou-a. Altair tentou alcançar a Rainha, que abriu com uma agulha um rio imenso entre eles, o Rio de Prata, separando para sempre o casal – “a não ser no sétimo dia da sétima lua, quando as gralhas voam por toda a China e formam uma ponte para a família encontrar-se” (p. 405). Para Juang Chang o encanto desta lenda atrai há séculos os chineses, tantas vezes divididos por guerras, pela pobreza e por governos cruéis.
Cines Selvagens é um livro necessário para os que conhecem a história da China, para os que acham que conhecem e, sobretudo, para os que se juntaram e praticaram o pensamento de Mao Tsetung. É um privilégio ter acesso a este depoimento em um texto denso, às vezes difícil, ainda proibido na China e que já vendeu 6 milhões de exemplares no mundo. As críticas suscitadas às vezes são díspares e por isso mesmo instigantes.