Irmãos!
Existe neste planeta que chamamos Terra e no continente que chamamos Americano um país cuja forma parece ter recebido uma grande mordida no oriente e que estende um braço ao ocidente no oceano Pacífico, para que os furacões não o arrebatem de sua história. Este país é conhecido por seus habitantes e estrangeiros pelo nome de México. Sua história é a de um longo combate entre o desejo de ser ele mesmo e as vontades exteriores que gostariam de submetê-lo a outra bandeira. Este é o nosso país.

(…) Frequentemente o poderoso de outras terras vinha tentar nos roubar o amanhã. Por isso está escrito no canto guerreiro que nos une: “Se um inimigo estrangeiro ousa profanar teu solo pisando nele, pensa, ó Pátria querida, que o céu te deu um soldado em cada filho”. Por isso lutamos no passado. O estrangeiro veio nos conquistar com outras bandeiras e outras línguas. Veio e se foi.
Continuamos sendo mexicanos porque não queríamos ter outro nome nem marchar sob outra bandeira que não a que tem uma águia devorando uma serpente sobre fundo branco flanqueado de verde e vermelho. Resistimos. Mas nós, os primeiros habitantes destas terras, nós, os indígenas, fomos ficando esquecidos num canto enquanto os outros se tornavam maiores e mais fortes: só tínhamos nossa história para nos defender e a ela nos agarrávamos para não morrer.

Depois chegou esta parte da história que até parece escárnio, porque apenas um país, o país do dinheiro, colocou-se acima de todas as bandeiras. E então eles falaram de “globalização”. E compreendemos que era assim que eles denominavam esta ordem absurda em que o dinheiro é a única pátria à qual servimos e onde as fronteiras desaparecem, não sob o efeito da irmandade, mas sim devido à sangria que engorda os poderosos sem nacionalidade.

A mentira se transformou em moeda universal em nosso país, o sonho de bem-estar e de prosperidade de alguns foi tecido sobre o pesadelo de quase todos. Corrupção e falsidade se transformaram nos principais produtos de exportação de nosso país. Éramos pobres e travestíamos de riqueza nossas carências e a mentira era tão grande que nós mesmos acabamos acreditando nela. Nós nos preparávamos para os grandes fóruns internacionais e, por vontade governamental, a pobreza era declarada como uma invenção que se desvanecia frente ao desenvolvimento proclamado a altos brados e às cifras econômicas.

E nós? Haviam-nos esquecido, éramos relegados para fora da história, só nos restava morrer, esquecidos e humilhados. O sofrimento da morte não é nada diante do esquecimento. Descobrimos que já não existíamos, que os que governam nos haviam esquecido na euforia de cifras e taxas de crescimento. Um país que se esquece de si mesmo é um país triste, um país que esquece seu passado não pode ter futuro. Então pegamos em armas e entramos nas cidades onde éramos animais. E fomos dizer ao poderoso: “Estamos aqui!” E bradamos para o mundo inteiro: “Aqui estamos!”

E vejam como são as coisas: para que nos vissem cobrimos o rosto; para que nos dessem um nome ficamos no anonimato; para ter futuro pusemos em jogo nosso presente; e para viver… morremos.
Então, vieram os aviões e os helicópteros e os tanques e as bombas, as balas e a morte, e regressamos a nossas montanhas e a morte nos perseguiu até lá; e gente de toda parte nos disse: “Falem!” E os poderosos disseram: “Falem!” E nós dissemos: “Está bem, falemos!”. E lhes dissemos o que queríamos e eles não entendiam e nós repetíamos que queríamos democracia, liberdade e justiça, e eles continuavam a não entender e procuravam em seus planos macroeconômicos e em todos os seus tratados de neoliberalismo e nunca encontravam essas palavras e continuavam a nos dizer: “Não entendemos”. E nos ofereciam um lugar mais bonito no museu da história e uma morte mais em longo prazo e uma corrente de ouro para acorrentar nossa dignidade.

E nós, para que entendessem o que queríamos, começamos a fazer em nossas terras o que queríamos. Nós nos organizamos de acordo com a maioria e mostramos o que significava viver com democracia, liberdade, justiça.

Durante um ano a lei dos zapatistas governou estas montanhas. Eu não vou contar o que vocês já sabem: os zapatistas somos nós. Nós que não temos rosto, nem nome, nem passado e que somos indígenas na maioria – porém, ultimamente, irmãos de outras terras e de outras raças se unem a nós. Somos todos mexicanos. E eis o que fizemos quando governamos estas terras.

Quando governamos reduzimos a zero o alcoolismo, e isso porque as mulheres se mobilizaram dizendo que a bebida só serve para que os homens batam nas mulheres e nas crianças e se comportem como brutos, e elas ordenaram: “Nada de bebida!” E ninguém mais bebeu, e não toleramos mais que ninguém bebesse, e os primeiros beneficiados foram as crianças e as mulheres e os mais prejudicados, os comerciantes e o governo.

E, com o apoio de organizações que chamamos de “Não-Governamentais”, fizemos campanhas sanitárias, e a esperança de vida da população civil cresceu enquanto o choque com o governo reduzia a própria esperança de vida dos combatentes.

E a mulher, ou melhor, as mulheres começaram a ver o resultado das leis que elas nos fizeram impor aos homens; e um terço de nossa força combatente é hoje composto de mulheres que mostraram sua coragem e força nos convencendo a aceitar suas leis e que participam igualmente da direção civil e militar de nossa luta. E nós achamos isso muito bom.

E também se proibiu o abate de árvores e se fizeram leis para proteger as florestas e se proibiu a caça de animais selvagens, mesmo os animais ferozes do governo, bem como o cultivo, consumo e tráfico de drogas. E estas proibições foram respeitadas.

E a taxa de mortalidade infantil ficou tão minúscula quanto os próprios recém-nascidos. E as leis zapatistas foram aplicadas a todos, sem distinção de posição social ou nível de renda. E todas as decisões importantes, ou “estratégicas”, de nossa luta foram tomadas pelo método que chamamos de referendum ou “plebiscito”.

E acabamos com a prostituição, o desemprego e também a mendicância desapareceram. E as crianças conheceram os doces e os brinquedos.

Cometemos muitos erros e falhas. E também fizemos o que nenhum governo do mundo, independente de qualquer filiação política, é capaz de fazer honestamente, que é saber reconhecer os erros e tomar medidas para corrigi-los.

E assim estávamos, ou seja, aprendendo, quando chegaram os tanques e os helicópteros e os aviões e muitos milhares de soldados. E diziam que vinham defender a soberania nacional, e nós lhes dissemos que eram eles que a estavam violando nos Estados Unidos e não nós em Chiapas e que não se defende a soberania nacional pisoteando a dignidade rebelde dos indígenas.
E eles não ouviam porque o ruído de suas máquinas de guerra os havia deixado surdos, e eles vinham enviados pelo governo, este governo para quem a traição é a escada pela qual se sobe ao poder, enquanto para nós a lealdade é o plano igualitário que ansiamos para todos.

E o governo trazia sua legalidade na ponta das baionetas, enquanto nossa legalidade estava no consenso e na razão, pois queremos convencer enquanto o governo quer vencer, e dizemos que uma lei que tenha que recorrer ao emprego das armas para se fazer cumprir não merece o nome de lei e sim de arbitrariedade, por mais que esteja coberta de roupagens legalistas; e aquele para quem a lei é acompanhada pela força das armas é um ditador, mesmo que afirme ter sido eleito pela maioria.

E veio a gente do governo, e disse que a legalidade estava restabelecida nas terras de Chiapas, e chegou com coletes à prova de balas e tanques, mas não ficou muito tempo porque se cansou de fazer discurso para as galinhas, os porcos, os cachorros, as vacas, os cavalos e um gato perdido.
Eis o que fez o governo, e vocês já sabem porque um bando de jornalistas assistiu e publicou. E é essa a legalidade que hoje reina sobre nossas terras. E eis o que foi a guerra pela “legalidade” e pela “soberania nacional” que o governo empreendeu contra os indígenas de Chiapas. O governo mexicano também guerreou contra os outros mexicanos, mas em vez de tanques e aviões lançou contra eles um programa econômico que também os matará, embora mais lentamente.

(…) Nós soubemos que houve manifestações, comícios e cartas, poemas, canções e filmes, e outras coisas para que não houvesse guerra em Chiapas. Soubemos que disseram “Não à Guerra!” na Espanha e na França e na Itália e na Alemanha e na Rússia e na Inglaterra e no Japão e na Coréia e no Canadá e nos Estados Unidos e na Argentina e no Uruguai e no Chile e na Venezuela e no Brasil, e em outros países. Se não o disseram, pensaram.

E vimos que há gente boa no mundo inteiro, e que essa gente vive mais perto do México do que o governo deste país.

Queríamos dizer obrigado a todos vocês. Gostaríamos de oferecer-lhes uma flor. Digo uma flor porque não temos flores suficientes para cada um, ou para cada uma de vocês. Mas uma basta para que a repartam e guardem consigo um pedacinho dela, e quando ficarem velhinhos ou velhinhas poderão contar às crianças e aos jovens de seu país: “Lutei pelo México no fim do século XX, e daqui apoiei o pessoal de lá. E sei que só queriam o que querem todos os seres humanos que não esqueceram que são seres humanos, ou seja, democracia, liberdade e justiça. Não conheci seus rostos, porém seus corações eram iguais aos nossos”.

Mas percebo que, com esta carta, vocês podem fazer uma flor de papel para colocar na lapela ou no cabelo, dependendo do caso, e sair para dançar com tão encantador adorno.
Eu vos deixo porque outro avião passa e tenho que apagar a vela, mas não a esperança. Mesmo se eu morrer, a esperança não se apagará.

Saudações. Não esqueçam a flor: caule verde, pétalas brancas, folhas vermelhas, e não se preocupem com a serpente. A águia se encarregará dela.

Das montanhas do Sudeste mexicano
Subcomandante insurgente Marcos
México, março de 1995.

* Traduzido por Olívia Rangel.

EDIÇÃO 37, MAI/JUN/JUL, 1995, PÁGINAS 49, 50