Conheço Clóvis Moura desde 1975. Eu era então um rapaz muito curioso sobre a história de nosso país, que tentava estudar meio às cegas. Já tinha lido um livro do Clóvis, Introdução ao pensamento de Euclides da Cunha, e sabia que se tratava, pelo menos, de um autor marxista, condição que fazia aquele primeiro contato significar também, para mim, a chance de reencontrar o PCdoB – eu havia perdido a ligação com o partido depois de uma série de prisões que ocorreram no ABC paulista nos anos anteriores.

Nascia assim uma amizade que me honra. Pude trabalhar ao lado do Clóvis quase que diariamente, até 1977. Por intermédio dele obtive, de fato, notícias dos comunistas, de vez em quando pude mesmo ter acesso a algum documento clandestino, como edições de A Classe Operária (é preciso lembrar, para os mais novos, que a época era ainda de ditadura pesada!). Clóvis Moura tornou-se, para mim, um orientador político e um grande professor.

Lembro-me, por exemplo, de minha tendência a seguir os autores consagrados pela Universidade e pela mídia. Contra essa tendência, Clóvis insistia que o essencial é o conhecimento da luta de classes, não a história dos regimes políticos, dos governos, não a história da elite. O essencial, ensinava, é a história do povo brasileiro, que ainda não está feita. E indicava a riqueza de nosso passado, as lutas do povo, a luta de idéias que as refletia.

Era comum Clóvis mostrar livros de autores brasileiros que não frequentam listas de best sellers – entre eles, poetas como o telegrafista baiano Sosígenes Costa; ou como a gaúcha Lila Ripoll. Ambos comunistas e esquecidos pela mídia.

Outra coisa que aprendi com Clóvis é que não pode haver teoria política fora do partido. O pensamento político precisa estar ligado, e estar a serviço, do instrumento da luta política, que é o partido. Fora disso, é diletantismo, passatempo, jogo intelectual sem maiores consequências.

Mas a maior lição que aprendi com ele é a de que a história do povo se confunde com a história do trabalho e, no Brasil, essa é, principalmente, a história da escravidão e da luta dos escravos contra aquele estatuto iníquo. E que, em decorrência disso, a história do negro no Brasil é a história do povo brasileiro, a história dos povos – negros, índios, mestiços – oprimidos primeiro pela colonização e pela escravidão e, depois, pelo capitalismo e pelo imperialismo.

Aquele que é, talvez, seu livro mais importante – Rebeliões da Senzala, publicado inicialmente em 1959, reeditado em 1972, 1981 e 1988 – foi a primeira tentativa de apresentação sistemática da luta dos escravos em nosso país. Ele assinala o início de um esforço de compreensão teórica das lutas do povo brasileiro e do papel que o intelectual tem a desempenhar nela, de denúncia permanente do racismo e do estudo de seu significado numa sociedade como a nossa, que traz ainda muito vivas as marcas deixadas pelo escravismo. Um esforço que, neste ano, será enriquecido com a publicação do Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, que promete ser outro marco na história de nosso povo e que enriquecerá uma obra extensa – que inclui poesia, história, sociologia, etnografia e não recua face à multiplicidade da manifestação do fenômeno humano e social em nosso país.

Clóvis Moura está completando 70 anos neste mês de junho. Esta entrevista, concedida a Pedro de Oliveira e Bernardo Joffily, foi a forma que encontramos para homenageá-lo.
José Carlos Ruy Princípios: Como é que você analisa esses cinquenta e tantos anos de estudo de história do Brasil, os prós e contras dessa saga de descobrir como é a história do povo brasileiro?

Clóvis Moura: Nesses cinquenta anos, avançamos pouco ainda na interpretação da história do Brasil, a partir das relações de produção, das lutas populares etc. Vamos pegar como ponto de partida 1933, quando surgem três livros que marcaram época: Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, Evolução Política do Brasil, de Caio Prado Jr. e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda. Desde então a historiografia brasileira gira em torno dessas três matrizes.

“A historiografia perde seu cunho independente quando se subordina ao pensamento acadêmico”.

Caio Prado tenta dar uma primeira visão da história do Brasil através de lutas populares, sem conseguir; o Nordeste responde com o Casa Grande e Senzala, uma tentativa de amenizar o regime escravista, a escravidão, o patriarcado; e Sérgio Buarque de Hollanda deu uma abertura para a interpretação da fase posterior, que é a fase pós-abolição, através do conceito de “homem cordial”. Então, o que aparece depois vai ter sempre ligação com essas três vertentes. A do Caio Prado poderia ter sido “a visão dialética da história”, mas se esgota em sua própria obra. Não houve continuadores. A de Gilberto Freyre teve muitos seguidores, porque interessava às ciências sociais daquela época (como até hoje) mistificar e mitificar o passado. Nós temos pouco mais de cem anos de trabalho livre, e temos quatrocentos anos de trabalho escravo. Sérgio Buarque de Hollanda, quando lança seu livro, entra também na vertente do processo de industrialização no Brasil, na tentativa da visão do Brasil novo, do Brasil moderno. É uma visão que incorpora e muitas vezes se completa com a visão de Gilberto Freyre, o “patriarcalismo da escravidão”. E a partir daí surgem as universidades, e o trabalho dos historiadores perde aquele cunho independente, e começa a ser subordinado ao crescimento, ao pensamento do meio acadêmico. E, então, se pegarmos hoje em dia aquilo que poderíamos considerar um pensamento historiográfico mais ou menos independente, que tentou uma abordagem que não seja aquela repetitiva das universidades, vamos encontrar fora da universidade a obra de Nelson Werneck Sodré, de José Honório Rodrigues, de Victor Nunes Leal, de Raymundo Faoro, e poderia citar até outros, como Odilon Nunes, Jacob Gorender, Otávio Tarquínio de Souza, Darcy Ribeiro e Hélio Silva. Estas são obras independentes, que se transformaram em trabalhos considerados clássicos por quem quiser estudar a história do Brasil de uma forma que não seja a história tradicional, que tem o “ranço” das universidades.

Princípios: O Rebeliões da Senzala é de 1959, mas a pesquisa é anterior. Imagino o jovem Clóvis Moura quando começou a se interessar pela questão das lutas do escravo. Como você se situava em relação a essas três vertentes?

Clóvis Moura: Comecei meus estudos em Salvador, que é uma cidade negra, onde até hoje você encontra reminiscências da escravidão nas ruas, no comportamento, no tratamento que o dominante dá ao subalterno, da posição humilde do subalternizado, de como o subalternizado se organiza, como os senhores dão ordens. Fora os problemas políticos que surgem e que muitas vezes são ecos da escravidão. Encontramos uma ideologia racista que, de um lado, justifica a escravidão e, de outro, dá o combustível para você continuar dizendo que as classes subalternizadas continuam nos espaços em que estão porque descendem de uma “raça inferior”. O primeiro estudioso das populações africanas no Brasil surgiu na Bahia, Nina Rodrigues, que tinha uma visão racista e paternalista do negro. Como cientista, como ele se dizia, não tinha nenhuma dúvida de que a raça negra era inferior, e que foi um prejuízo para o processo civilizatório brasileiro termos como uma das matrizes da colonização a raça negra. Ele deixa isso explícito.

“Candomblés são vistos como borras que saíram do processo civilizatório, elementos marginais”.

Quando comecei a estudar, já tinha essa realidade na minha frente. Independentemente da curiosidade intelectual, era um problema que eu tinha de conhecer porque fazia parte do meu cotidiano. Comecei a me dedicar ao estudo da etnografia negra, que é por onde tudo começa. O estudo das rebeliões negras já virou praticamente um hábito do brasileiro, porque nós consideramos as religiões africanas como exóticas. Dizem que elas não fazem parte do contexto de desenvolvimento da sociedade brasileira, porque esse contexto é cristão. Na medida em que a igreja católica se desenvolve, ela acompanha o desenvolvimento da nação brasileira. Agora os candomblés são vistos como borras que saíram do processo civilizatório. E vão ficando como elementos marginais. Com isso querem dizer que o negro não acompanhou a dinâmica do processo civilizatório, e suas religiões, como a sua língua, o seu comportamento, foram ficando para trás, e o que sobrou foi exatamente o ethos do branco, que é o ethos capitalista, o ethos da sociedade dominante. Então, quando comecei a estudar, logo depois me interessei não pelo comportamento do negro, mas por suas revoltas contra a escravidão. Daí surge a chave das minhas pesquisas lá no Arquivo, que deu a primeira edição do Rebeliões da Senzala, que foi uma pesquisa da juventude. Tinha pouco mais de vinte anos quando comecei a pesquisar no Arquivo Público da Bahia. Arquivo que não tinha absolutamente organização nenhuma. Era um labirinto.

“A regra era negar a luta dos escravos, encarar a escravidão como benigna e o negro como inferior”.

A primeira edição do livro teve pouca repercussão. Da crítica universitária não tive uma linha. Só começou a ser citado no Brasil depois que passou a ter referência nos Estados Unidos. Aí começaram a citar aqui. O Eugene Genovese, por exemplo, cita meu livro em um livro dele, chamando-o de excelente. Aí todo mundo se dá conta: ”Oh, precisamos encontrar esse livro!” Aí começam a citar.
O pessoal começou a levar a sério o livro, porque no começo a regra era negar a existência da luta dos escravos. Primeiro porque a escravidão era encarada como benigna, e segundo porque o negro era tido como inferior. Raça inferior que não contribuiu para o processo civilizatório. Tem muita gente que ainda levanta a hipótese de que, se os holandeses continuassem a colonização, o Nordeste seria mais desenvolvido do que é hoje em dia.

Princípios: – Apesar de eles terem mandado trazer um bocado de escravos…

Clóvis Moura: Eles tinham o monopólio do tráfico durante a ocupação. Ocuparam até o Forte da Mina, na África.
Então, foi aí que começaram a ler o meu livro. A segunda edição já teve uma certa repercussão. E hoje o livro é considerado um clássico. Mas, para ele abrir espaço, para comprar um “passaporte”, deu um trabalho, rapaz! Eu tenho as cartas do Caio Prado me desaconselhando a escrevê-lo. José Honório Rodrigues foi um dos que me ajudaram. Ele conseguiu um funcionário lá no Arquivo Nacional. Copiou uma série de documentos para mim, incluídos na 2ª edição. Mas contribuição do saber universitário, não tive nenhuma. Além disso, há livros que leio com trechos e frases inteiras do meu livro, mas ninguém cita a fonte. É como diz o Tinhorão: “Esse pessoal, Clóvis, come Tinhorão e arrota Mário de Andrade” (Risos.) O autor só esquece das aspas.

Princípios: Quero dar o meu depoimento. Comprei o seu livro em 1970, e foi uma revelação. Foi a primeira vez que ouvi falar de negro fora de Palmares. Chego à conclusão de que Palmares, sem querer, prestou um grande desserviço porque serve como álibi para não se falar sobre luta de negro: “Ah, luta de negro? Teve, sim: Palmares”. E esquecem todas as outras lutas.

Clóvis Moura: O processo da quilombagem. O processo que a luta de classes assumiu sob a escravidão se caracteriza por isso que chamo de quilombagem, e os americanos de “marronagem”. Quer dizer, a luta do escravo contra a escravidão, o tempo todo. Você encontra do Rio Grande do Sul até o Pará. Então, entra o outro problema: por que o Brasil é um país mestiço e ao mesmo tempo um país onde ninguém quer ser mestiço, ninguém quer ser negro? Por que nós escondemos a nossa concretude étnica? Você chega lá nos Estados Unidos, uma pessoa da minha cor não tem vergonha de dizer que é negro. Aqui quando digo que sou negro, dizem: “Que é isso, Clóvis?” (Risos.) Como se eu estivesse dizendo que sou doente, uma pessoa com uma doença incurável. Isso no fundo é racismo, é o racismo brasileiro. Quero saber, do ponto de vista antropológico, o que é que eu sou. Nós não somos brancos. Nós somos uma nação não-branca, um continente não-branco, que foi colonizado pelos brancos e explorado pelos brancos. Por que vou ter vergonha de dizer que sou negro? Por quê? É um negócio assim que até hoje não me entra na cabeça. Há pessoas mais escuras do que eu dizendo-se brancas.

“Criamos um arco-íris étnico, em que o ideal tipo é o branco e o antiideal o negro, a sua negação”.

Então, fiquei pensando: por que diabos nós não podemos dizer “eu sou negro”? Nos Estados Unidos não há o mulato, e isso ajuda a consciência étnica. Nós criamos esse arco-íris étnico, em que o ideal tipo é o branco e o antiideal é o negro, a sua negação. Você se qualifica socialmente na medida em que procura se aproximar do ideal tipo e é desqualificado socialmente na medida em que é identificado como o antiideal negro. E você fica com essa angústia, de saber onde é que vai se situar: sou mulato, sou negro, sou branco? Isso cria no brasileiro uma neurose étnica, pois, ao tentar fugir da concretude, está criando uma neurose para si. Então comecei a pesquisar. Fui ver, por exemplo, minha ficha no Exército. Está lá: pardo claro. Eu disse: bom, pardo não quer dizer nada. O conceito de pardo apareceu quando se fez o primeiro recenseamento do Brasil, em que se coloca brancos, pretos e pardos. Mas o pardo não é uma qualificação étnica. É apenas uma cor de pele, ou uma identidade, mas indica que eles não sabem se é negro escuro ou se é negro claro, e chamam de pardo.

Mas voltemos ao plano da historiografia. Eu falava das três vertentes. Depois, quando vem a produção universitária, não surge nenhuma vertente nova em relação à compreensão da participação do povo na história do Brasil. Não temos nada sobre a participação das classes subalternizadas na história do Brasil, de como o povo brasileiro fez a história. Existem aqueles esquemas ortodoxos de como estudar a história. Temos essa História Geral da Civilização Brasileira, que foi coordenada por Sérgio Buarque e agora por Boris Fausto. Os primeiros volumes são A Época Colonial e Brasil Monárquico. Ora, começa pela superestrutura… Por que não colocar “Brasil escravista”, que seria como dizer que as relações de produção determinam tudo o mais? Mas não querem entrar na infra-estrutura. Por isso, Brasil Monárquico. Então vamos discutir o que o imperador disse: “Eu quero já”, e por aí vai. Assim vamos discutir como a monarquia se comportava em relação à escravidão, mas não como os escravos se comportavam em relação à escravidão. É uma história de cabeça para baixo.

“Tem áreas proibidas na nossa história. E ficam com Caxias, com a participação do exército na Abolição”.

A primeira tentativa de fazer uma revisão, tímida, foi a História Nova do Brasil, de Nelson Werneck Sodré, Joel Rufino e outros. Eles foram parar na cadeia. Porque fazer história do Brasil é também um ato de coragem. Quem é que escreve sobre a Revolta da Chibata? Edmar Morel escreveu e teve os direitos políticos cassados. Benjamin Peret, um poeta francês, veio ao Brasil e escreveu uma história da Revolta da Chibata, do João Cândido. Quando a Marinha descobriu, Peret foi preso. Invadiram a tipografia, destruíram o livro dele, destruíram as matrizes, e ele foi expulso do Brasil como agitador. Esse é que é o problema. Nossa história tem áreas proibidas. Em vez de pisarem nessas áreas proibidas, por exemplo, ficam com a história de Caxias, a participação do exército na defesa da Abolição. Dizem que, na última fase da escravidão, o exército era antiescravista. É mentira. Falam que o exército protestou contra a perseguição aos escravos fugidos. É mentira. Quem protestou foi o Clube Militar. O exército como instituição nunca foi contra a escravidão, como a Igreja nunca foi. Esse pessoal fica com essas histórias, e os heróis populares não têm biografia. Preto Cosme, da Balaiada, não tem biografia. Zumbi dos Palmares não tinha biografia, diziam que ele era uma lenda. Até Zumbi entrar como personagem histórico, deu um trabalho desgraçado. E o Eduardo Angelim, da Cabanagem? Quem já fez a biografia dele? Ou dos líderes das revoltas mineiras como Felipe dos Santos? Inclusive o pessoal da Revolta dos Alfaiates, João de Deus Nascimento e os outros – quem já se preocupou em escrever uma biografia deles? Ninguém, porque o povo, os heróis populares, têm que ficar na penumbra. E com isso nós deixamos de colocar o povo como participante, como agente histórico.
Nessa História do Brasil, do Boris Fausto, que acaba de sair, tem só oito linhas sobre Palmares. Isso não é nem ignorância, é cegueira teórica, porque de qualquer maneira foi um acontecimento de cem anos.

Princípios: Foi um fato histórico relevante, não é?

Clóvis Moura: De cem anos. Que resistiu às duas potências coloniais mais experientes da época: Portugal e Holanda. Para isso, precisava ter uma infra-estrutura econômica muito séria. Ora, a estrutura de Palmares ninguém quer estudar! Pelo contrário, há uma má vontade muito grande. A Cabanagem, por exemplo, precisou de um italiano – Pasquale Di Paolo – para escrevê-la: A Cabanagem e a Revolução Popular da Amazônia. Só agora estão fazendo uma série sobre João Francisco Lisboa, só agora notaram sua existência. Há o padre Carapuceiro, de quem o Amaro Quintas publicou a biografia.

Princípios: Esse padre eu não conheço…

Clóvis Moura: Ah, é o padre Lopes Gama, conhecido como Carapuceiro. Ele tinha um jornal chamado O Carapuceiro. Ele sofreu, foi muito perseguido. Há também o jornal O Progresso, que o Amaro Quintas republicou. O Antonio Pedro Figueiredo, que foi o editor desse jornal, era um negro que se julgava mulato, e com muito orgulho. Ele abordou os problemas mais importantes de sua época, a época da Revolução Praieira. Como estava falando, nossos heróis não têm biografia. Os inconfidentes baianos não têm biografia. Os cabanos não têm biografia. Os heróis dos Malês não têm biografia.

Princípios: Só de Tiradentes para cima, vamos chamar assim.

Clóvis Moura: É, de Tiradentes para cima. Porque Tiradentes é uma indústria. Sua história foi remontada.

Princípios: Pelos republicanos.

Clóvis Moura: Tiradentes foi transformado em algo que ele não foi. E com isso nós desviamos a atenção da Inconfidência Baiana, que ocorreu dez anos depois, na qual quatro foram enforcados, e deles ninguém fala. E tiveram uma posição heróica diante dos algozes. Tiradentes se mijou todo, beijou os pés do carrasco. E fora outras coisas. Tiradentes tinha escravos. E os outros – da Inconfidência Baiana – eram escravos ou forros.

“Se você mexer com Tiradentes estará mexendo com Minas Gerais e a historiografia mineira”.

Hoje, não se pode sequer fazer uma revisão nesse sentido. Quais os verdadeiros heróis e os heróis postiços da nossa história? Porque, se você mexer com Tiradentes, estará mexendo com Minas Gerais e com a historiografia mineira. Ninguém procura fazer a história dos heróis da plebe no Brasil. Nem aqueles que tiveram uma visão menos radical dos movimentos ou que participaram dos chamados movimentos liberais têm biografia.

Princípios: Cipriano Barata, por exemplo.

Clóvis Moura: Cipriano Barata tem uma biografia, mas ele tem dois aspectos: tem o aspecto radical, do radical liberal, e tem o da sua posição frente à escravidão. Porque todos os liberais no Brasil eram liberais e escravistas. Não se encontra movimento liberal no Brasil que tenha colocado no seu programa a abolição dos escravos. Nem a Inconfidência Mineira. A Inconfidência Baiana foi a única que colocou. A Praieira não colocou, a de 1817 não colocou, a de 1824 não colocou… Quando chegavam na abolição do trabalho escravo, paravam. Eram liberal-escravistas, e não ultrapassavam a fronteira da escravidão.

“Não temos uma história escrita por seus agentes, contando como o povo a criou trabalhando”.

Princípios: Para fazer a política dos senhores de escravos.

Clóvis Moura: Sim. A prática dos senhores de escravos, que era quem fazia a política da época. Então, por isso não temos uma história escrita pelos que foram os seus agentes históricos. Não temos uma história que conte como o povo brasileiro criou a história trabalhando. Criando o trabalho, querendo o trabalho. Como ele lutou para melhorar o trabalho, para se libertar praticamente de tipos cada vez mais abusivos de trabalho. Ninguém fez a história do trabalho no Brasil. Temos a história das ideologias, a história das religiões… Mas não como o trabalhador se organizou, se compôs. Como ele lutou contra os níveis de exploração sucessivos que apareceram.

Princípios: Então, depois de Rebeliões da Senzala, você volta recorrentemente a esta tese. Como é que você vê essa passagem do escravismo para o seu sucessor na transformação social?

Clóvis Moura: Esse processo eu abordo em O Negro, de Bom Escravo a Mau Cidadão?, que é praticamente a continuação de Rebeliões da Senzala. Foi um livro que teve pouca repercussão. Mas é nele que faço uma análise da passagem do trabalho escravo para o trabalho livre. E numa sociedade em que todos os pólos dinamizadores da economia já estavam ocupados pelo capital estrangeiro. Então já entramos no capitalismo dependente.

Como capitalista dependente, a sociedade brasileira soube manipular um mito: a inferioridade do negro, a incapacidade do trabalho negro – para justificar a passagem da escravidão e do tráfico negreiro para o tráfico branco, que era exatamente o tráfico de imigrantes. Em tudo isso entra um componente étnico, porque o problema da imigração tem dois aspectos: primeiro, o branqueamento da sociedade brasileira; segundo, o grande comércio que foram as empresas de imigração no Brasil, controladas pelas grandes famílias. Martinico Prado tinha empresas de imigração… Todo esse pessoal ganhou fortunas em cima do tráfico de escravos e também de imigrantes.

Princípios: Há dados indicando que as mesmas pessoas que haviam se dedicado ao tráfico negreiro antes da proibição, depois da proibição, passaram a se dedicar ao tráfico de imigrantes europeus.

Clóvis Moura: Inclusive a família Prado. Rui Barbosa denunciou que, quando Martinico Prado era dono de uma imigração, o irmão dele era secretário da Fazenda de São Paulo e conseguiu um grande empréstimo para subsidiar os imigrantes. Agora, tinha uma coisa: o governo subsidiava, mas os imigrantes, quando chegavam, tinham de pagar as suas viagens e ficavam endividados. Quer dizer, o governo emprestava, e você recebia do imigrante. Era um negócio excelente.
Voltando ao problema da história, eu vi que o problema étnico no Brasil é muito sério. Nós não o encaramos porque criamos o mito da democracia racial. Mas o brasileiro tem um inconsciente racista, essa é que é a verdade. Por mais democrático que aparente ser.

“Quando se fala que nos EUA têm guetos, se esquece que em Santa Catarina havia até pouco tempo”.

Princípios: Concordo inteiramente com sua crítica da democracia racial. Agora, quero chamar a atenção para o seguinte. A sociedade brasileira se formou como uma máquina de triturar culturas. Nós recebemos uma massa grande de imigrantes, forçados ou voluntários, tipos mistos e tudo. E, ao fim de duas gerações, vira, ou quase vira, brasileiro. Todo mundo tem as suas raízes. Às vezes, até oprimidas, discriminadas. Nos Estados Unidos têm aqueles guetos de italianos, irlandeses, negros, judeus, armênios, albaneses etc. Na Europa, mais ainda. Quer dizer, as culturas são as mesmas, só que aqui elas são moídas…

Clóvis Moura: Sim. O problema é que, quando se fala que nos Estados Unidos têm guetos se esquece que em Santa Catarina, por exemplo, havia até pouco tempo. Não se diz que todo mundo vira brasileiro, não é? Aqui tem focos de resistência muito sérios.

Em segundo lugar, num país como os Estados Unidos, há culturas distintas. Nova Iorque, São Francisco… São Francisco faz parte da cultura latina dos Estados Unidos. Em Washington mesmo temos uma visão daquele país. No Texas, na Califórnia, a visão que temos é completamente diferente. Por quê? Porque essa grande parte pertencia ao território mexicano. Lá existem áreas onde não se fala inglês, e sim o “tchicano”.

No Brasil, principalmente nas áreas urbanas, encontramos uma série de padrões cosmopolitas. Hoje é difícil dizer se alguém é italiano, ou americano, ou inglês. São Paulo tem uma série de áreas chamadas de caipira, onde se encontra influência de outras culturas. A cultura caipira se preservou. Veja a música, a forma de falar, a forma da família. No Amazonas é a mesma coisa. Se formos ao Nordeste, vamos encontrar no interior de Pernambuco outro Brasil, traços de resistência de uma cultura centenária. Quer dizer, não tem coisa mais diferente de um gaúcho que um piauiense. A única coisa que os liga é a língua e a religião. O comportamento, o modo de tratar a mulher, de tratar os subalternos, o modo de se vestir, de comer, de educar, tudo, tudo, tudo é diferente.

“Não acho que criamos um tipo brasileiro que seja a síntese de muitas culturas”

Princípios: E isso é até um patrimônio do povo brasileiro. Mas em comparação com outros países, essas diferenças são relativamente débeis, tirando fora esses núcleos de resistência, essas colônias do sul, claro.

Clóvis Moura: No Brasil não tivemos exatamente os problemas de nacionalidades que enfrentam os bascos, na Espanha. Os suíços mesmo possuem cantões suíços, italianos, alemães e franceses, falam quatro idiomas.
No Brasil, que é um subcontinente, houve evidentemente uma diversificação maior. Não acho que tenhamos criado um tipo brasileiro que seja a síntese de todas as culturas trazidas para cá.

Princípios: Parece ser o contrário, jogamos muita coisa fora. O imigrante vem para cá e, em grande parte, perde a sua identidade, a sua raiz cultural.

Clóvis Moura: Não digo que seja uma perda, o que acontece é uma troca. Em São Paulo, há muitos traços italianos que já se incorporaram ao cotidiano do paulista. Você encontra traços culturais que antes não existiam, e hoje são reverenciados. Festas populares, costumes, modos de organizar a família. Isso não me parece fundamental. Fundamental é conviver com as diferenças.

Princípios: Mudando de assunto, qual a sua opinião sobre o nosso presidente da República, um sociólogo, que aliás estreou com um livro sobre escravidão?

Clóvis Moura: Fernando Henrique Cardoso é uma… Está momentaneamente vitoriosa uma contra-revolução mundial, através de um período tecnocrático. Evidentemente, a intelectualidade se diversifica nesses momentos! É aí que dá para testar o comportamento do intelectual, da intelectualidade. Porque a intelectualidade é muito ambígua. O FHC já tinha uma produção ambígua, a sociologia da dependência e outras coisas… É só pegar os livros dele para ver que ele nunca criou uma teoria para emancipar o Terceiro Mundo do imperialismo. Ele fez sempre um projeto integracionista.

Princípios: Uma explicação da dependência e não uma contestação de fato.

Clóvis Moura: Ele quer civilizar, modernizar, a dependência. O que ele está fazendo no Brasil, na minha opinião, é um governo criminoso. Porque ele sabe o que está fazendo. Ele sabe muito bem que o José Serra é um agente dessa nova tecnocracia imperialista que está aí. Eles estão dando golpes irreversíveis no patrimônio e na soberania nacional. Porque a venda das estatais, que estão querendo realizar em curto prazo, é um troço criminoso. Veja o seguinte: nós havíamos criado um modelo alternativo de desenvolvimento em que o Estado entra como mecanismo de defesa contra a recolonização pelo Primeiro Mundo. Quer dizer, as estatais não foram feitas para dar lucro, elas existem como mecanismos de defesa, para resguardar as reservas que temos aqui e que o Primeiro Mundo cobiça. Querem o petróleo. Não o petróleo em si, mas para resguardar as suas reservas, que estão em extinção. Os Estados Unidos só têm reservas para sete ou dez anos. As estatais estão sendo entregues, e isso é o mesmo que destruir os anticorpos de um organismo. Quando todas as estatais estiverem nas mãos do capital internacional, vamos ser recolonizados, vamos virar entreposto colonial. Vão transformar o Brasil num grande entreposto das mercadorias e dos capitais do Primeiro Mundo, principalmente do imperialismo americano. A filosofia do Primeiro Mundo é a seguinte: se um terço da população for constituída pela classe média consumista do Terceiro Mundo, o resto pode ir para o lixo, pode morrer. Porque com um terço da população consumista no Brasil, eles mantêm a taxa de lucro dos capitais investidos aqui. Na medida em que a tecnologia avança, eles vão precisando menos dessas populações. Eles estão lumpenizando o Terceiro mundo. E o FHC sabe disso. Nós vamos virar países de lúmpens e de uma aristocracia que se beneficia das rendas altamente concentradas, ligadas aos capitais do Primeiro Mundo. Ora, isso é um processo que vai progredindo. A política de FHC, neoliberal, é a política do imperialismo. Nós temos uma economia mundial cartelizada e monopolizada, em que não há mais a economia competitiva. Nela, a Índia fica para fulano, a América Latina para os Estados Unidos e o Japão, uma potência emergente, fica com a Ásia. E com isto esses países vão lumpenizar a população dessas áreas. Agora, até que ponto esses povos vão aguentar carregar o peso dessa miséria é que é o problema. Não é considerado o fator humano, o ser humano como ele é. Em minha opinião, essa “última onda” do imperialismo, que veio após o colapso da União Soviética e dos países do Leste europeu, vai levar a movimentos violentíssimos no Terceiro Mundo dentro de uns dez ou quinze anos. Em todo o planeta não há outra alternativa a não ser o socialismo. Não vou dizer que todo socialismo vai ser idêntico, mas sim que esse sistema de lucro vai estourar com os movimentos violentíssimos que vão ocorrer. O que está começando no Brasil já começou no México, na Argentina. Isso é apenas o início. Até Kissinger já gritou: “Precisamos de uma lei para controlar os capitais especulativos internacionais!”

“Não acredito mais em eleições, não representam a vontade do povo. Assim é no Brasil, no Peru…”

Só o socialismo pode evitar o naufrágio da sociedade, criar um mundo que não seja baseado no lucro, em que a produção seja socializada. E como chegaremos a ele? Como vamos influir na política? O liberalismo, como política, está falido. Não acredito mais em eleições, pois não representam a vontade do povo. Assim é no Brasil, no Peru, na Argentina… Não podemos mais acreditar que o povo está sendo representado pelos partidos criados com essa lei eleitoral, que favorece exatamente os ricos. Vamos continuar participando por uma questão de coerência política. Mas não há mais possibilidade, nem teórica nem prática, em nenhuma sociedade do mundo, de mudança pelo voto.
O neoimperialismo tecnocrático pode ter fôlego para cem, ou talvez vinte anos. Não podemos fazer profecias. Mas suas bases vão ficar piores. Veja, todo dia surge uma nova guerra. Eles vão para o Iraque, do Iraque para a Somália, da Somália para o Haiti, do Haiti para o diabo!

A espécie humana não existe para isso. O ser humano, à medida que se desenvolveu – como diz Engels –, foi perdendo a sua porção animal. Quando se humanizou, o homem se socializou. Mas agora estão querendo nos convencer exatamente do contrário, e a versão biológica do homem vai tomando o primeiro plano. Se partirmos do princípio de que a sociedade tem de ser competitiva – ora, todos sabemos que a competição gera conflito –, então a base dessa sociedade não pode ser estável, e sim conflituosa. E chega o momento em que a sociedade, que por princípio está baseada na competição, entra em conflito e se torna um caos. Abre-se, assim, a possibilidade de se construir uma nova era. Estamos nos umbrais do terceiro milênio. Esta é a perspectiva que ele nos apresenta.

Obras do autor

1959 – Rebeliões da senzala, Zumbi, São Paulo. Reedições: 1972, Conquista, Rio de Janeiro. 1981, Ciências Humanas, São Paulo. 1988, Marco Zero, Porto Alegre.
1961 – Espantalho da feira (poesia), Fulgor, São Paulo.
1964 – Argila da memória (poesia), Fulgor, São Paulo. Reedição: 1982, Corisco, Teresina.
1964 – Introdução ao pensamento de Euclides da Cunha, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
1964 – Âncora no planalto (poesia), do Brasil, São Paulo.
1976 – O preconceito de cor na literatura de cordel, Resenha Universitária, São Paulo.
1976 – Sociología de la Praxis, Editorial Siglo XXI, México, DF.
1977 – O negro: de bom escravo a mau cidadão?, Conquista, Rio de Janeiro.
1977 – Manequins corcundas (poesia), La Palma, São Paulo.
1978 – A sociologia posta em questão, Ciências Humanas, São Paulo.
1979 – Sacco e Vanzetti, o protesto brasileiro, Brasil Debate, São Paulo.
1979 – Diário da Guerrilha do Araguaia (apresentação), Alfa-Omega, São Paulo.
1981 – Os quilombos e a rebelião negra, Brasiliense, São Paulo.
1983 – Brasil: raízes do protesto negro, Global, São Paulo.
1984 – A imprensa negra, Imprensa Oficial, São Paulo.
1987 – Quilombos: resistência ao escravismo, Ática, São Paulo.
1986 – História de João da Silva e dos obstáculos que encontrou na “terra do amor e da fartura” ou cantoria em oito movimentos para o homem do carrascal, Corisco, Teresina.
1987 – Da insurgência negra ao escravismo tardio, Separata de Estudos Econômicos, FEA/USP, São Paulo.
1988 – Sociologia do negro brasileiro, Ática, São Paulo.
1989 – História do negro brasileiro, Ática, São Paulo.
1990 – As injustiças de Clio – O negro na historiografia brasileira, Oficina de Livros, Belo Horizonte.
1994 – Dialética radical do Brasil negro, Anita Garibaldi, São Paulo.

EDIÇÃO 37, MAI/JUN/JUL, 1995, PÁGINAS 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57